Kraftwerk no EDP Cool Jazz: o berço da electrónica continua a pulsar
Primeira confissão: antes desta noite, eu nunca tinha ouvido nenhuma música dos Kraftwerk. Ou assim julgava, porque ao longo do concerto percebi que uma ou outra linha melódica me era já familiar, provavelmente por terem entrado no cânone da cultura popular. Mas nunca os tinha ouvido de forma consciente, deliberada, nem com atenção. Decidi ir a Cascais apenas por saber o quão influentes eram no nascimento da música electrónica, e com aquela ansiedade de não saber se voltaria a ter uma oportunidade de os ouvir. Assim, como cada vez mais me vem a acontecer, dei por mim num concerto de uma banda que nunca ouvi antes, apenas à boleia da expectativa que o seu histórico me contava – e de boca aberta com o que testemunhei pela primeira vez.
Calá-lo seria injusto: o concerto dos Kraftwerk no hipódromo de Cascais conta-se entre os trinta melhores que já tive a oportunidade de viver (e, pelas minhas contas, vou quase nas três centenas).
O futurismo dos Kraftwerk é hoje lido de uma forma diferente – aproxima-se mais, na verdade, de um passado imaginado. Nos anos 70, quando a banda alemã estava a contribuir para a invenção da música electrónica, fazia-o tendo por referentes a tecnologia de ponta – estamos a falar de vozes robóticas, sintetizadores de timbre kitsch que eram o último grito da tecnologia musical, um imaginário que ia pescar muito aos transportes rápidos (comboios de alta velocidade, auto-estradas), sem deixar de fora os homens-máquina e a radioactividade. Todo este pacote, que acaba por resumir muitos dos elementos apresentados no seu espectáculo ao vivo, dizem-nos mais sobre os anos 70 do que sobre o final desta década que vivemos. Aquele futuro imaginado é fruto da sua era, e foi ponto de orientação na construção do futuro real. Ao reapresentar-nos todo este mundo, os Kraftwerk sabem que a plateia que têm diante de si está hoje num outro paradigma – os ouvidos que já os conheciam têm mais trinta ou quarenta anos de experiências e conhecimentos em cima; os ouvidos novos escutam de um ângulo diferente, em comparação com quem os conheceu no século passado.
À entrada do recinto, um pronúncio da ambição visual do espectáculo: todos recebem uns óculos 3-D, dentro de uma bolsinha vermelha com o nome da banda; também as hastes do objecto cartonado contêm a mesma inscrição. Embora a formação dos Kraftwerk se apresente estática em palco – cada um dos quatro membros diante de uma mesa com os teclados e programadores nela embutidos – o fundo do palco reserva muita dinâmica e cor, com direito aos efeitos tridimensionais que irão ser responsáveis por tornar o espectáculo ainda mais imersivo. Há direito a formações geométricas, imagens de arquivo da volta à França em bicicleta, animações rudimentares de carros e comboios, e cenários espaciais com satélites em órbita. Cada cenário ajuda a circunscrever o tema de cada canção. Mas… sejamos honestos: até de olhos fechados a música dos Kraftwerk irradia cor e movimento.
O espectáculo tem início com uma sequência que, em quatro breves actos, apresenta o bilhete de identidade da banda. “Computer Love” e “The Man-Machine”, com as suas melodias emocionantes, são acompanhadas de um trabalho rítmico interpelativo. Afinal de contas, cada um dos membros da banda está aos comandos de diferentes instrumentos digitais, adicionando variações e aos comandos de uma sonoridade que se revela mais intrincada do que a aparência. Em dados momentos chegamos a aproximar-nos de um ambiente de clubbing, que convida notoriamente à dança; mas há linhas de ritmo meio partidas, há uma consciência harmónica variada e muito inspirada. É um concerto. E conquista logo de entrada.
Seguem-se três outros temas do clássico de 1978, Die Mensch-Maschine; as projecções tornam-se mais figurativas, e a música muda ligeiramente de tom – ora para um som mais ambiente em “Spacelab”, ora para o formato de canção em “The Model”. Mas o espectáculo volta verdadeiramente a ganhar tracção nos vinte minutos seguintes, com o crescendo labiríntico de “Autobahn” a introduzir um dos mais belos momentos do concerto: “Radioactivity” brinca com o stereo para criar um efeito profundamente emocional, na frequência aguda que se passeia por cima das harmonias.
Os temas seguintes estendem-se por longos minutos; destaque para “Tour de France”, a melhor conseguida desta fase do concerto. Inicia-se quase aborrecida, mas a secção central explora facetas mais interessantes da electrónica, que vão contagiar o último segmento da música, colorindo-o (também visualmente este upgrade se fez notar, com cores garridas a pintarem geometricamente as imagens de arquivo a preto e branco projectadas na tela).
Já próximos do término, “The Robots” surge com a intensidade de uma autêntica rave, abrem-se espaços maiores entre as pessoas e formam-se alguns grupos que dançam sem pudor. Pena que na metade da frente do público todos estivessem sentados – neste momento temos a oportunidade de ver um casal que desafia as regras e se levanta para dançar, mas é convidado a sentar-se novamente. É possível desfrutar daquela música sentado – mas, num outro ambiente, o concerto dos Kraftwerk teria sido outra coisa. As duas horas não teriam parecido tão excessivas, por exemplo, se tivesse sido mais estimulada a ideia de o público se mexer.
Os pais e padrinhos da música electrónica mostraram que nas raízes mora muita da vitalidade que o género tem para oferecer. E que a música do grupo pode continuar a envelhecer como um bom vinho. O concerto em Cascais foi testemunha de uma fatia inspirada da história da música, que continua a servir de afluente para muitos caminhos hoje em construção.