Paredes de Coura 2019 (dia 2): a festa gloriosa dos New Order e o concerto consagração dos Capitão Fausto
Comecemos pelo fim – pelo momento em que o baixista dos Capitão Fausto partilhou estar emocionado por ver a colina cheia para os ver, à uma e meia da manhã, depois de terem actuado os cabeças de cartaz do dia. Os New Order tinham dado um concerto glorioso, que para além ter conquistado os seus fãs de longa data, pusera pormuitos novos ouvintes a dançar pelo monte acima – uma festa de raro brilho adornada em boa parte pelos sintetizadores límpidos e sequenciados com muito bom gosto. A opção de colocar os Capitão Fausto a fechar a noite era arriscada, mas provou que o público de Coura é um dos mais respeitadores, atentos e ecléticos do nosso panorama nacional – uma escola de se aprender a ser público, que também a nós nos ajuda a crescer na arte de ouvir música.
O dia começara com os Cave Story, banda portuguesa de Caldas da Rainha. Mas infelizmente não chegámos a tempo de os ouvir. Com o bom tempo com que os campistas têm sido presenciados, torna-se difícil resistir à tentação de prolongar à estadia à beira-rio. Vê-se muita gente a ler (e sente-se muitas vezes curiosidade de espreitar as capas); toca-se guitarra; dorme-se a sesta; joga-se ao jogo da aldeia e dos lobos; mergulha-se da prancha e da árvore, e de vez em quando lá se ouve um doloroso chapão, seguido de aplausos solidários vindos de ambas as margens. Não se pode estar sempre bem – dizem os Capitão Fausto – mas ali está-se.
Ainda soavam as guitarras dos Cave Story quando os Khruangbin subiram ao palco principal. O baterista de semblante sério, guitarrista e baixista com cortes de cabelo a fazerem lembrar Cleópatra do Egipto. Seguiu-se uma hora de groove a piscar o olho ao psicadélico, sempre fundado na segurança do baixo e da batida, e conduzidos pelos passeios meio improvisados da guitarra. O concerto foi aquecendo. Se numa primeira parte nos sentimos particularmente agarrados às linhas de baixo, numa segunda a guitarra assume o protagonismo de forma menos abstracta, com mais corpo a que nos agarrarmos. No final, os temas mais conhecidos arrancam reacções mais efusivas da plateia: “Evan finds the third room” transfigura-se ao vivo, ganha variação e intensidade – e “Maria Tambien” é tema vencedor (e parece definir em si muita da energia do Paredes deste ano, à semelhança de “Lightenup” dos Parcels). Um concerto quase todo instrumental, com muita classe e muita técnica aliadas ao doce sabor de um final de tarde.
Foi pena perdemos o início do concerto de Stella Donelly, numa das parciais sobreposições mais difíceis de conciliar nos horários deste ano. A indie pop de Stella, que se estreou este ano com o seu primeiro álbum de estúdio, concilia uma sonoridade positiva e de melodias carinhosas com uma voz sem papas na língua. Stella fala sobre temas difíceis e não se poupa no tom. Mas fá-lo de uma forma absolutamente encantadora, distribuindo sorrisos e respostas vívidas a quem lhe dirige a palavra nas filas da frente. Após uma primeira parte acústica, em que interpretou algumas das suas baladas de embalo contagiante, chamou a banda – e foi de som cheio que a segunda metade do concerto se desenhou, com direito a algumas coreografias, e às incursões arriscadas (mas belíssimas) dos dotes vocais da cantora. “Boys will be boys”, no fim, foi um momento arrepiante que teve o condão de tocar a consciência de quem a ouvia. Exige-se o rápido regresso a Portugal, em contexto de uma sala pequena. Um espectáculo que é uma pérola de luz a reluzir, e que certamente terá consolado muitas das pessoas que ansiavam por ver Julien Baker (ausente por motivos de saúde).
Ainda não entendemos exactamente de onde apareceram os Boy Pablo, nem como raio se tornaram tão populares em Portugal; mas a grande massa de público que se ajuntou em frente ao palco Vodafone.fm para os ver não engana. Depois do reverb quente de Alvvays, chegamos a outro lado do espectro de calor musical: um indie rock de praia reminiscente de Vampire Weekend. No entanto, a comparação mais premente será devida às guitarras preguiçosas de canções como “everytime”, lembrando-nos bastante de Mac DeMarco.
A jovem banda norueguesa, liderada pelo animado Nicolas Pablo Muñoz, tem uma leveza que transparece através das canções alegres – apesar de pouco inovadoras – e retém um certo charme adolescente na forma entusiasmada como agradece ao público ou experimenta com vários ritmos do indie pop. Tivemos até direito a um momento à quarteto barbershop, com Pablo a cantar na beira do palco, enquanto os restantes membros faziam um coro a capella. Certo é que o público delirou, provando a aposta de sucesso em mais um hit da era da Internet.
Era a vez de Will Toledo, o músico americano que compôs uma mão cheia de discos no seu quarto e os publicou no bandcamp, antes de ser resgatado por uma editora que não deixou escapar o sucesso que já começava a surgir na internet. “Twin Fantasy”, um clássico desta década que foi sendo consagrado à medida lenta a que os ouvintes tinham conhecimento dele e o ouviam, conta-se já entre os álbuns lo-fi mais reconhecidos da história da música. Gravado com pouco equipamento e no microfone do computador, “Twin Fantasy” é uma prova de que a musicalidade é em larga medida independente da tecnologia – e que haverão por esses quartos fora outros excelentes compositores à espera de ouvidos atentos.
Mas falemos do concerto: Car Seat Headrest (o nome do projecto artístico de Will) apresentou-se com uma estranheza não comum aos músicos do seu calibre. De cabelo à frente dos olhos, postura introvertida, e timidez no trato, traz nos espectáculos ao vivo uma música que não pertence exactamente a este universo do espectáculo ao vivo. Felizmente tinha diante de si, na secção inferior da colina, uns dois milhares de fãs acérrimos, que não se pouparam na fruição daquela experiência. E que rapidamente ajudaram a transformar o ambiente numa explosão de energia. Terá sido o mosh mais intenso desta edição do Paredes até agora? Saltámos e gritámos muito em “Bodys”. O pó obrigou-nos a recuar um pouco.
Seguiu-se um concerto musicalmente estimulante, em que as versões ao vivo se distanciavam frequentemente dos arranjos de estúdio (ou, no caso de Will, os arranjos caseiros). Foi o caso de “Sober to Death”, que nasceu muito mais lenta, e que foi um dos momentos chave do concerto. Entre temas de Twin Fantasy, de Teens of Denial e até um inédito a abrir o concerto, o concerto de Car Seat Headrest não terá sido o mais agradável e transparente para quem não o conhecesse, mas para os fãs terá enchido as medidas – isto apesar de se ter apresentado em formado reduzido, com uma banda mais pequena do que aquela que costuma levar para palco. “Beach Life-in-Death”, a fechar, foi a oportunidade de vivermos ao vivo uma experiência de partilha e comunhão de uma das canções mais fortes desta década (arriscamo-nos a dizer). Um concerto que em alguns momentos terá rondado o bizarro, no contexto em que aconteceu; mas que pulsou emoção.
Chegava por fim o mais ansiado momento da noite para grande parte da audiência – pela banda responsável pelo recinto esgotado no 15 de Agosto. Os New Order carregam o legado de ser o segmento sobrevivente dos lendários Joy Division; mas a sua carreira aventurou-se para territórios mais latos ao longo dos anos seguintes à sua formação, tendo os membros da banda ajudado a inventar géneros como a synthpop e a dança alternativa. Com o anfiteatro natural repleto de gente – entre os fãs de longa data e os novos ouvintes, numa mescla de gerações que tão bem soube observar ao longo do dia – os New Order entregaram-se com energia e alegria, e revelaram um reportório rico de ideias que influenciaram muitas bandas que nasceram ao longo dos últimos trinta anos.
Depois de uma sequência inicial interessante, e de uma primeira incursão a temas dos Joy Division, sentimos que o espectáculo se abriu mais após a quinta música que interpretaram – “Your Silent Face” foi janela escancarada de frescura e criatividade. A partir daí o espectáculo tomou um rumo mais assumidamente dançável, a roçar um ambiente disco que contagiou grande parte da plateia. Era ver-se os saltos e a alegria em quase todos os temas, com destaque para “Bizarre Love Triangle” e “Temptation” – esta última foi mesmo a última antes de um muito reclamado encore. O tema, que surge glorioso e acompanhado dos efeitos deslumbrantes de uma bola de espelhos, estende-se ao longo de quase dez minutos em repetições capazes de induzir euforia. Os New Order voltaram ao palco para duas últimas canções dos Joy Division, desta vez com a cara de Ian Curtis projectada no fundo do palco. A plateia reagiu à altura – era impossível não sentir o apelo. “Love Will Tear Us Apart” foi a última acha na grandiosa fogueira – que concerto! Uma festa que Coura terá dificuldade em esquecer.
A colocação dos Capitão Fausto à 1 da manhã no palco principal do festival terá surpreendido muita gente. No entanto, tendo em conta os restantes artistas do dia e o estatuto da banda, talvez tenha sido mesmo a escolha mais sensata. A hora propensa a uma certa ebriedade revelou-se ideal para o público entoar as cantigas da banda portuguesa a plenos pulmões, fazendo uma enorme festa nas filas mais próximas do palco, com moches, crowdsurfing e muita, muita efusão – talvez até demasiada, tendo em conta a relativa tranquilidade do cardápio musical mais recente dos Capitão Fausto.
Problemas de som assombraram quase todo o concerto, que acabou por soar sempre mais baixo e menos intenso e definido do que deveria, perdendo-se a força de alguns dos seus maiores sucessos, como “Amanhã Tou Melhor” ou “Morro na Praia”. Ainda assim, deu para dançar bem o malhão com “Faço as Vontades” e sentir a doçura de momentos mais baladeiros, como “Amor, a Nossa Vida” ou “Final”, belissimamente interpretadas. A felicidade da banda era notória e terá passado também um pouco ao público, que acabou por não arredar pé depois da actuação dos cabeças-de-cartaz e ficar para assistir à consagração de uma das maiores bandas nacionais em recente memória.
Hoje será a vez de Father John Misty liderar a noite no palco principal, além de Deerhunter, Spiritualized, e os estreantes Black Midi que certamente serão responsáveis por um tremendo concerto no palco secundário.
Reportagem de Tiago Mendes com contribuições de Bernardo Crastes e Ana Lídia