Vodafone Paredes de Coura (dia 4): num dia morno, Arlo Parks brilhou e Kelly Lee Owens trouxe a noite

por Bernardo Crastes,    20 Agosto, 2022
Vodafone Paredes de Coura (dia 4): num dia morno, Arlo Parks brilhou e Kelly Lee Owens trouxe a noite
Arlo Parks © Hugo Lima
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Depois de um terceiro dia de Vodafone Paredes de Coura muito forte e com concertos que constarão dos palmarés do festival, o dia de ontem ficou um pouco aquém das expectativas. A perda do concerto dos BADBADNOTGOOD para o segundo dia de festival enfraqueceu o alinhamento, que se tornou um pouco repetitivo, mas não sem algumas boas surpresas.

Uma das primeiras boas surpresas foi o concerto da chanteuse belga Sylvie Kreusch. É um daqueles nomes que não conhecíamos e que o festival nos permitiu descobrir. O que vimos foi uma artista que poderia actuar no Roadhouse de “Twin Peaks”, tanto pela sua música misteriosa e enevoada, como pela sua silhueta sedutora, envolta em sedosas vestes bordôs, e performance teatral. A sua voz delicada por vezes transformava-se num rugido fogoso, como em “Please to Devon” ou “Seedy Tricks”, os seus dois singles mais antigos. Não havia nem metade da quantidade de festivaleiros do terceiro dia à mesma hora, mas achamos que Sylvie merecia bastante mais. Ainda assim, fez um óptimo papel e conseguiu cativar o público.

Sylvie Kreusch © Hugo Lima

De seguida, no palco Vodafone.fm, os recém-promovidos Baleia Baleia Baleia ocuparam o lugar que seria de Kelly Lee Owens com uma proposta diametralmente oposta: punk rock garageiro e brincalhão, como demonstram as letras de canções como “Quero Ser Um Ecrã” ou “Egossistema”. A mudança de alinhamento não terá satisfeito muitos dos festivaleiros que esperavam uma substituição de maior peso, mas ficámos comovidos pela alegria de Manuel Molarinho e Ricardo Cabral. “Há um mês nem sabia que ia tocar aqui e agora já é a segunda vez em Paredes de Coura”, diz-nos Manuel, que cumpria o sonho de tocar no festival, depois de um concerto no Festival Sobe à Vila. O seu concerto festeiro é divertido o suficiente para instigar uma pequena festa nas filas da frente, mas nada que não tenhamos visto antes.

Baleia Baleia Baleia © Hugo Lima

Entretanto começaria uma das confirmações mais certeiras do festival: Arlo Parks. Vinda na senda do lançamento do aclamado Collapsed in Sunbeams, que recebeu uma batelada de prémios, incluindo o reputado Mercury Prize, a artista de 22 anos estreou-se em Portugal com um concerto muito competente que cumpriu todas as expectativas do que é a sua música. A sua mistura de indie, soul, R&B e pop é ilustrada por letras específicas e realistas que tocam em temas universais — principalmente a saúde mental. “Black Dog”, a canção escrita para a sua melhor amiga e inspirada em “House of Cards”, dos Radiohead, conjura bem a implacabilidade da doença mental: “It’s so cruel / What your mind can do for no reason”.

Ainda assim, Arlo dá-nos esperança em “Hope” (“You’re not alone / Like you think you are”) e “Hurt” (“I know you can’t let go / Of anything at the moment / Just know it won’t hurt so / Won’t hurt so much forever”). São mensagens importantes e especialmente tocantes quando envoltas em música tão acolhedora como a que a artista faz. Depois do concerto mediano de Yellow Days no dia anterior, Arlo Parks confirma-nos que é possível dar um concerto de música adjacente à soul com alma e algo mais a dizer.

Arlo Parks © Hugo Lima

O pôr-do-sol trouxe o negrume a Paredes de Coura, começando pelo darkwave de Boy Harsher. A banda de culto apresentou as suas canções industriais, de batidas mecânicas que se repetem ad eternum sem grandes variações. A vocalista Jae Matthews sussurra alguns doces nadas sedutores ao microfone, mas não fica clara qual é a mensagem ou a intenção da banda. Quando o ritmo aumenta, como em “LA” ou na mais reconhecida “Pain”, é demasiado infeccioso para não se dançar, mas em geral não sentimos uma grande conexão com a sua música fria e hermética. Se calhar teria sido um concerto mais adequado a um after hours, para dar início a uma noite de clubbing.

Boy Harsher © Hugo Lima

No entanto, agora teremos de nos contradizer. A mudança de Kelly Lee Owens de um concerto de final de tarde no palco secundário para o início de noite no maior palco do festival preocupou-nos. A sua música ocasionalmente fantasmagórica, ocasionalmente destrutiva não parecia ser a melhor opção para o contexto. Ainda assim, a galesa deu o seu melhor, com uma postura confiante e um set desenhado para convencer uma geração de fuzz rockers que aguardavam o santo patrono Ty Segall a dançar techno. Envergando uma capa de feiticeira, Kelly começou com a sua versão minimalista de “Weird Fishes/Arpeggi”, dos Radiohead (no segundo aceno do dia à gigante banda), completa com a sua quebra de breakbeat.

Logo de seguida, libertou-se da capa, revelando um body colorido que complementava perfeitamente a sua figura. Apesar de muitos dos sons estarem pré-gravados, a atitude poderosa de Kelly enquanto controlava os sintetizadores modulares convenceu-nos. Serpenteando-se ao ritmo das batidas chiques de “Jeanette” ou “On”, ou emprestando a sua voz (demasiado escondida na mistura de som) a experimentações pop como “Re-Wild” ou “L.I.N.E.”, o set terá agradado mais a quem já conhecia a artista, mas o poderio do final foi inegável. “Night” e “Melt!”, os seus maiores bangers, foram elevados por passagens ruidosas que até instigaram alguns moches. Foi a maneira respeitosa que os festivaleiros encontraram de agradecer a Kelly, aplaudindo faustosamente o espectáculo.

Kelly Lee Owens © Hugo Lima

Antes de se iniciarem os concertos dos cabeças-de-cartaz, espreitámos brevemente a festa de Arp Frique & Family, um projecto holandês que funde a música de dança com a tradição de música africana, à semelhança do que fazem projectos como Voilaaa ou DjeuhDjoah.

Depois, tivemos um cheirinho de nostalgia recente com o regresso de Ty Segall e a sua Freedom Band a Paredes de Coura. O fuzz rock já viu dias mais populares, mas Ty continua a ser um dos seus nomes mais sonantes. Prolífico como sempre, o músico lançou recentemente “Hello, Hi”, um disco maioritariamente acústico que quebra o molde do que costuma ser a sua música. O concerto foi uma amálgama de todas as coisas que caracterizam a sua música: distorção que torna o som da guitarra quase irreconhecível, muita reverberação, solos de guitarra, um toque de americana, entre outras coisas. Os acólitos de Ty Segall fizeram a festa nas filas da frente, mesmo quando a música não era particularmente exaltante; o que, na verdade, foi regra no concerto. Se calhar já é hora de deixar o fuzz rock para trás.

Uma longa pausa entre Ty Segall e The Blaze fez-nos pensar: porque é que este momento no alinhamento não está preenchido com algum concerto no palco Vodafone.fm? Deve haver alguma justificação, mas achamos que uma pausa tão demorada num festival de música deveria ser algo a evitar.

Ty Segall © Hugo Lima

O aparato visual do duo francês The Blaze demorou a ser montado, mas compensou. Os cinco ecrãs que se moviam à frente, por cima ou atrás dos primos Guillaume e Jonathan Alric formavam arcos, altares, diagonais e outras formas, passando imagens de contornos suaves e complementando a música electrónica de batidas beliscantes e poucos graves. As suas melodias são particularmente emotivas, complementando a dança com uma sensação melancólica ou ansiosa que ocasionalmente é demasiado sacarina. A voz modulada dos artistas modera os sentimentos, o que funciona tanto a favor como contra a sua música: por um lado ameniza o dramatismo, mas por outro neutraliza um pouco as melodias. Apesar do espectáculo visual interessante, é um concerto que se desenquadra da proposta do festival e parece-nos que não justifica um regresso tão pronto a Paredes de Coura.

O nosso dia no festival terminou com a última surpresa do alinhamento: Ata Kak. Artista ganês que lançou apenas uma cassete em 1994, redescoberta mais tarde pelo criador da editora Awesome Tapes From Africa, está agora a gozar de um regresso ao mundo da música devido à crescente popularidade da música de dança global e do desejo da comunidade club de conhecer novas maneiras de dançar. A música de Ata Kak mistura o clássico highlife do Gana, synthpop e funk em canções divertidíssimas que ocasionalmente soam a hip-hop clássico tocada no dobro da velocidade (ouça-se “Moma Yendodo” para entender a comparação). A repetitividade das músicas, que pouco ou nada se desenvolvem, é compensada pela atitude positiva do artista e pela frescura das melodias. Foi um belíssimo ponto final que nos elevou os espíritos depois de um dia mais morno.

No final, o australiano Mall Grab tomou as rédeas da mesa de mistura com a sua música de elevadas octanas. É daqueles casos em que o DJ do after hours toma tanto destaque como alguns dos nomes do cartaz de horário nobre.

O último dia de Paredes de Coura volta a estar esgotado, depois de dois dias menos preenchidos. Tal se deverá em grande parte ao regresso dos Pixies, mas o alinhamento conta com outros nomes fortes: Slowthai, Yves Tumor, Perfume Genius, Princess Nokia, Tommy Cash, La Femme, Far Caspian, Xenia Rubinos, Manel Cruz e Nuno Lopes.

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