No Folio, em Óbidos, foi tempo para Ralph Rothmann enfrentar o medo
As estreitas e sinuosas ruas de Óbidos parecem veias e artérias de um corpo por onde vagueiam milhares de turistas. A Livraria de Santiago, lá bem no alto, parece bombear vida pelos caminhos descendentes e delimitados por lojas, cafés, a Casa José Saramago, a Casa do Pelourinho, o Museu Municipal, a Galeria Nova Ogiva, a Livraria do Mercado até chegar à Casa da Música, onde decorreram grande parte das conversas programadas pelo Folio- Festival Literário de Óbidos.
Dentro dessa corrente, vários autores estrangeiros caminharam incógnitos, comprando aqui e ali algumas lembranças, bebendo, por vezes, ginja em copo de chocolate. O mesmo não se pode dizer do Primeiro-Ministro António Costa, que passeou informalmente por Óbidos, ou do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, presença assídua nas edições deste festival. Foram imediatamente identificados pelos poucos portugueses existentes nas ruas da vila.
O primeiro fim-de-semana do festival, entre 11 e 13 de Outubro, foi data marcada para ouvir Elena Varvello (Itália), Mathias Énard (França), Tati Bernardi (Brasil), John Freeman (EUA), Paulo Werneck (Brasil), Donald Ray Pollock (Estados Unidos) e, entre estes e outros autores, Ralph Rothmann, o único autor alemão presente no programa do festival.
A 5.ª Edição do Folio recebeu o autor de “Morrer na Primavera” (Sextante), para o ouvir sobre o inesgotável tema da II Guerra Mundial em conversa com Gabriela Fragoso, da Universidade Nova de Lisboa. Os últimos três livros do autor tratam da temática referente à “mesa”: ”A II Guerra, Tema Inesgotável”.
Na altura da Segunda Guerra Mundial, a mãe foi violada quando fugia e o pai foi recrutado. Por isso, em “Morrer na Primavera” o ambiente é de agressividade. O conhecimento dessa situação fez-lhe ver a mãe, que era agressiva e lhes batia, de outra maneira. No entanto, o autor nascido em Schleswig não sabe até que ponto a sua vida entra na produção literária. Mas sabe que não é um autor clássico; não se tornou um escritor após uma graduação académica. Rothman começou a trabalhar aos 14 anos, foi cozinheiro, enfermeiro, entre outras profissões. Foram essas experiências que lhe deram a linguagem para os seus livros.
Ao abordar a guerra, tentou conhecer o pai que adorava. Tentou entender aquela melancolia, quase depressão.
“A guerra estava sempre sentado à nossa mesa”
Como o seu pai não falava sobre a guerra, o escritor criou personagens e situações para colmatar esse vazio, para o conhecer melhor.
A reacção dos leitores foi muito curiosa. Muitos disseram que depois de ler o livro perceberam melhor o próprio pai. Aquele silêncio era comum a muitos pais alistados no exército nazi. Depois daquele drama bélico, o vazio. Não havia catarse. A geração de 68 viria a denunciar o esquecimento que os ascendentes tentavam impor.
O movimento estudantil de 68 foi subscrito mais tarde pelo autor, pois naquela altura tinha apenas 15 anos. O movimento apontava o dedo às principais figuras do país que tinham sido nazis. Ele não fez isso com o pai, pois amava o pai. Em vez de lhe apontar o dedo, ele tentou compreendê-lo.
A cena da execução do amigo, em “Morrer na Primavera”, só foi conseguida depois de ele e a sua mulher terem sido alvos de assalto à mão armada. Esteve meses de volta daquela cena, sem sucesso, chegando ao ponto de dizer que queria desistir do livro.
Em conversa com alunos, numa escola alemã em Portugal, perguntaram-lhe o que faria se tivesse que executar o melhor amigo. Não deu uma resposta clara. As acções individuais tem de ser entendidas num contexto.
Nas escolas trata-se o tema da guerra e do nazismo, para depois se tentar um ponto final e parágrafo. O tema é “torpedeado”. Mas esta não é a tarefa da literatura. A literatura tem de manter viva a memoria. A guerra nunca acaba. Tem sempre consequências para as gerações futuras.
A 5.ª edição do Folio continua a analisar o tempo e o medo até ao dia 20 de Outubro, em Óbidos.