Sério Fernandes, um velho mestre na “cidade mais cinematográfica do mundo”
São 18h00 e o sol já se deitou na Baixa do Porto. Sério Fernandes e Rui Garrido sobem ao Café Rivoli para falar com a Comunidade Cultura e Arte sobre o documentário que vai ser exibido no primeiro dia da sexta edição do Porto/Post/Doc… Talvez.
Sério tira das nossas mãos o papel onde estão rascunhadas diferentes questões e depois atira: “Posso?”. Lê o documento na diagonal e ri-se: “Estas perguntas são quase todas para mim! Mas olhe que o Rui aqui é que é o realizador!”. O jovem cineasta lança um olhar entretido sobre a folha de que o seu “mestre” se apoderou e comenta: “Oh, professor… Eu sou o realizador mas o filme é sobre si”.
A relutância inicial logo desaparece e Sério Fernandes começa a abrir o livro. Conta um par de histórias sobre os seus primeiros passos enquanto director de publicidade na Havas. Depois, reflecte sobre a decisão de abandonar tudo para montar a sua própria agência. Lembra a forma como abraçou o cinema experimental depois de ficar farto da “produção comercial” com que se ocupou durante os seus tempos formativos. Olha para o ponto de viragem que foi realizar Chico Fininho. Discorre sobre Os Lusíadas e tece considerações sobre um filme seu de 24 horas que conta com uma declamação integral da obra de Luís de Camões. Recorda com saudade os mais de 20 anos em que foi professor na Escola Superior Artística do Porto (ESAP). Divaga com paixão sobre o Porto e o mar. Pensa na praia de Francelos e na quinta que tem em Mirás. Pensa também nos seus vários gatinhos. Fala sobre tudo e mais alguma coisa – e até pede desculpa por “não ir mais além” quando conversou durante pouco mais de uma hora.
A conversa revela-se longa mas nunca desinteressante. Um relato resumido de uma vida tão imprevisível quanto preenchida. É essa vida que merece um lugar de destaque em Sério Fernandes – O Mestre da Escola do Porto.
Rui Garrido assume que a vontade de fazer o documentário surgiu com naturalidade. O realizador de 28 anos foi aluno de Sério no segundo ano da faculdade, no início da década, e confessa que as primeiras aulas constituíram “um choque”, mas “um choque interessante”. Para o jovem artista, o professor foi importante ao ensinar que “existem outras maneiras de fazer as coisas” no cinema. Rui fala de “uma pessoa que tem um passado bastante interessante”, e interessou-lhe “mostrar o caminho que percorreu até chegar aos dias de hoje”.
O filme mostra, por exemplo, o Sério frenético e cheio de energia dos primeiros anos. “Na altura fui o mais jovem director de publicidade da Havas. Era um autêntico enfant terrible”, admite.
O ritmo de trabalho, no entanto, era alucinante. Por vezes, demasiado alucinante. “A publicidade não é brincadeira nenhuma. Exige muito. E não se pode falhar”, sublinha. Sério Fernandes funda a Bei Film quando nasce a vontade de “constituir uma produtora de raiz no Porto”, e a agência começa por fazer principalmente filmes publicitários – porque, essencialmente, “era aí que facturava” –, mas, em pouco tempo, Sério acordaria para um admirável mundo novo.
Quando Rui Garrido pensa em Chico Fininho, pensa numa obra que desvia a trajectória do “Mestre” para sempre. “Depois disto”, adianta, “ele já não conseguia olhar para o que andava a fazer da mesma maneira”. No filme de 1982, onde uma equipa de cinema percorre as ruas do Porto e tenta saber se a mítica personagem de quem tanto se fala na famosa canção realmente existe, Sério Fernandes quebra as regras. “Usei planos desfocados. Usei planos tremidos. Servi-me da liberdade criativa que a publicidade não me permitia ter”, assinala.
Chico Fininho “muda tudo” e despoleta uma paixão por novas formas de contar histórias. O artista refere que começa a filmar como se não houvesse amanhã e alega que o seu arquivo pessoal cresce incomensuravelmente num curtíssimo espaço de tempo. Assegura que passa a pensar na ideia do filme como um diário audiovisual: regista na sua câmara tudo o que vai dos passeios flaneurísticos que regularmente faz às viagens na carrinha com os seus cães. Tenta fundir na tela o expressionismo de Pollock e uma teatralidade própria das artes performativas. A 35mm de Sério transforma-se na caneta, e o papel é, sobretudo, a cidade que o vê nascer. “O Porto é a minha paixão. É a cidade mais cinematográfica do mundo”, declara.
É esse Porto que percorre, desenfreadamente, com os seus alunos durante mais de 20 anos na ESAP. “Gosto muito dos alunos e adorei fazer filmes com eles. A minha mulher dizia que nunca me tinha visto tão feliz na vida”, recorda.
Sério Fernandes não se ficou pela Invicta, tanto profissionalmente como nos diferentes filmes académicos experimentais que ajudou a realizar com as várias turmas que por ele passaram – “Temos o país todo filmado, de Monção a Vila Nova de Santo António”, afirma –, mas para ela reserva sempre um carinho especial. Tanto que gostava de ver o seu trabalho nela enterrado.
Em Odisseus, o tal filme de 24 horas em que Os Lusíadas são lidos de uma ponta à outra, “há uma parte apolínea e uma parte dionisíaca”, bem à moda grega. “Metros e metros de filme” que compõem a segunda parte foram lançados ao mar, a partir de uma traineira, nas águas da Afurada. Restam as películas da primeira, que Sério gostava de depositar no solo de Massarelos, freguesia onde nasceu. “Era simbólico, acho eu, bonito. Nós, quando morremos, também vamos para a terra, não é verdade?”, observa.
E os “dias de hoje” de que Rui Garrido nos falava no início? Sério Fernandes está reformado, “mas”, diz o “discípulo” do “Mestre”, “continua a fazer filmes”. Acredita que estes “têm um toque muito familiar”, são como que apontamentos pessoais sobre as diferentes fases da sua vida que estão a começar ou acabar. Dedicatórias de amor aos seus cantinhos preferidos, ao seu Porto seguro de sempre, à casa em Francelos, à quinta de Mirás, cheia de “árvores belíssimas” e “carvalhos fantásticos”.
O documentário parte do cariz íntimo e diarístico do trabalho de Sério e mostra a rotina de um velho mestre que, mais do que qualquer outra coisa, quer paz e sossego. “Era tal a intensidade do meu trabalho na Havas que eu nem olhava para as árvores. O meu espírito começa a crescer quando abandono a actividade comercial. Deixei esse lado que não me deixava sentir. Começo a ter tempo para a natureza”, remata no final da nossa conversa, antes de devolver a folha com um sorriso enternecido. No filme, como no dia-a-dia, Sério brinca com os muitos animais que passeiam pelo seu quintal verde. Dá de comer a gaivotas que pousam no passeio da Avenida Rodrigues de Freitas. Sai de casa às três da madrugada para alimentar os gatos que vagueiam pelo jardim de São Lázaro. Esta lista de actividades parece profundamente banal. Mas, para alguém que trabalhou tanto em tão pouco tempo e renasceu “nem sei quantas vezes”, é mais do que suficiente.
Sério Fernandes – O Mestre da Escola do Porto estreia hoje, 23 de Novembro, no Cinema Passos Manuel, no primeiro dia da sexta edição do Porto/Post/Doc.