“Martin Eden”, de Pietro Marcello: amor, arte e política perdidos no tempo
Estreado no Festival de Veneza, onde venceu o prémio de melhor ator para o protagonista, Luca Marinelli, o filme de Pietro Marcello fez parte da seleção oficial Fora de Competição do Lisbon & Sintra Film Festival.
Baseado no livro de Jack London com o mesmo nome, adaptando-o à realidade italiana, Martin Eden retrata a vida de um jovem proletário que aspira tornar-se escritor. Pescador de profissão, com pouca ou nenhuma escolaridade, Martin vive em casa da irmã, em Nápoles. Na sequência do auxílio prestado a um jovem, é convidado para casa de uma família de classe alta, em reconhecimento do seu gesto. Seduzido pela realidade com que se depara, o protagonista trava conhecimento com a irmã do rapaz, Elena (Jessica Cressy), e com o mundo das artes, que a rodeiam. Decide então conjugar o trabalho, do qual necessita para sobreviver, com a leitura obsessiva de literatura, emprestada por Elena ou adquirida a precários alfarrabistas.
Tomado pela veia artística e no sentido de se tornar merecedor do amor de Elena, Martin aventura-se no mundo da escrita, submetendo os seus textos a uma revista, na esperança que um dia sejam publicados. Simultaneamente, mantém o seu interesse pela leitura, que vai influenciando os contos que redige e as suas convicções e ideais políticos.
Pietro Marcello cria, na sua nova obra, uma realidade atemporal em dois sentidos. Primeiro, pelo facto de não ser claramente identificável a data da realização da obra. A textura das imagens, filmadas em 16mm, que detalham minuciosamente a vivência na cidade portuária italiana, transportam-nos para o início do século XX. Em segundo, pela desorientação provocada propositadamente entre os vários tempos do filme e os flashbacks que vão sendo introduzidos amiúde, criando incongruências referentes à época do guarda-roupa e do meio onde os personagens se inserem. Esta abordagem remete-nos para Transit, de Christian Petzold, espelhando uma permanência no tempo das temáticas problematizadas pelos seus autores.
Contribuindo para este desnorte, o cineasta italiano vai costurando o seu filme com excertos de imagens de arquivo, a cor ou em preto e branco, ilustrando a labuta portuária napolitana ou simplesmente revelando paisagens marítimas. De alguma forma, salvaguardadas as devidas diferenças, estes planos lembram-nos os pillow shots, do cineasta japonês Yasujiro Ozu. Pela sua desconexão com o arco narrativo e aparência aleatória, constituindo-se como uma forma subtil de evocar as emoções que habitam as entrelinhas da obra. Esta tendência, é influenciada pelo passado do italiano enquanto realizador de documentários, onde trabalhava com este tipo de imagens históricas.
O filme desenvolve-se numa tensão constante entre a burguesia e o proletariado, cruzando ideologias neoliberais, comunistas, coletivistas e individualistas, defendidas consoante o posicionamento de cada um na escada social. Através de uma elipse repentina, que nos rouba o conhecimento visual da sua ascensão burguesa e literária, encontramos Martin pleno de sucesso, uns anos mais tarde. No entanto, diretamente proporcional ao êxito, deparamo-nos com um avançado estado de decadência e infelicidade do protagonista, agravado pelo desaparecimento de Elena da sua vida, cuja ausência vai pairando sobre as imagens do filme.
Martin Eden narra uma história convencional da ascensão e queda do artista de forma subversiva, assente na carismática representação de Luca Marinelli, onde a arte se mistura com a política, influenciada por algo tão simples e puro quanto o amor entre um homem e uma mulher.