Letizia Battaglia apontou a câmara à Máfia e o seu gatilho fez “click”
Kim Longinotto está farta de ver filmes sobre a Máfia a partir de uma perspectiva “muito estranha”. A realizadora londrina, de 67 anos, diz que somos sempre convidados a conhecer e simpatizar com o ponto de vista dos gangsters – por norma, homens “muito bonitos”, com o seu cabelo impecavelmente penteado e os seus “fatos incríveis” –, mas nem sempre vemos os efeitos secundários da sua conduta, “os corpos estendidos no chão”, “as crianças que estão a ir para a escola e encontram poças de sangue” no pavimento, a “mágoa que os assassinatos provocam”. Nem sempre vemos, no fundo, “as pessoas que foram suficientemente corajosas para enfrentar a Máfia”.
Shooting the Mafia, o filme que Longinotto traz à sexta edição do Porto/Post/Doc, olha para essas pessoas. Mais concretamente, olha para a vida e o trabalho de Letizia Battaglia, fotógrafa natural de Palermo que começou a trabalhar no jornal L’Ora em 1974, e que, durante quase 20 anos, documentou a vida na sua cidade e as maneiras como a Máfia siciliana a mudou. Uma fotógrafa que registou com a sua objectiva um “arquivo de sangue”, e que, como desabafa no documentário, pensa em queimar as suas fotografias porque “as pessoas acham que são lindas”.
Por telefone, Longinotto fala da “incrível tensão” que existe nas fotografias capturadas por Battaglia: se nelas há “coisas de extraordinária beleza”, há também “coisas de um tremendo horror e de uma tremenda tristeza”. A cineasta inglesa usa uma série de imagens de época para dar conta da presença da Cosa Nostra na Sicília, e, através delas, aponta para a “cultura de medo” a partir da qual a Máfia operava. Esse medo chegava aos fotojornalistas do L’Ora, que, diz Longinotto, foram expostos a “quantidades desumanas de violência” e conviviam diariamente com situações de grande perigo. Todas as noites, eles davam a volta ao quarteirão antes de regressarem à redacção porque tinham de ter a certeza que “não estavam a ser seguidos por ninguém”.
Para além da Letizia fotógrafa, activista e (mais tarde) deputada, Kim Longinotto também quis dar a conhecer a Letizia para lá do trabalho. O que definitivamente não foi fácil. “Eu consegui perceber que ela não queria falar muito da sua vida pessoal”, sublinha a realizadora de Shooting the Mafia. “A Letizia estava habituada a ouvir perguntas sobre as suas fotografias. Não estava habituada a ouvir perguntas sobre a sua vida pré-fotografia e a sua família”, refere Longinotto.
Ainda assim, Letizia mostrou um bocadinho do que se esconde por detrás da cortina, e, na primeira metade do documentário, o espectador acompanha o percurso que a levou ao jornal L’Ora e a uma vida passada de punhos cerrados. Ficamos a saber, por exemplo, que, conforme sublinha Kim Longinotto, “esta é uma mulher que vem de uma família muito conservadora”: o pai não deixava a filha falar muito com rapazes, não queria que desse continuidade aos estudos, achava que o lugar da mulher era em casa a tomar conta dos filhos. Letizia passou por “um trauma severo”, e, após descobrir a máquina fotográfica, apenas aos 40 anos, deu início a um processo de reinvenção total. “Ela construiu uma vida nova para si através de uma dedicação extraordinária ao seu trabalho, o que era impensável para uma mulher naquela altura”, reflecte a realizadora.
Letizia assinala em Shooting the Mafia que não foi uma “pessoa de verdade até encontrar a câmara”. Ao jornal The Guardian, diz que “a fotografia não muda nada”, que não põe um fim à violência ou à pobreza que capta. Por outro lado, no entanto, fala da “confiança” e da força que conquistou quando começou a encontrar na máquina uma aliada e uma arma de guerra: de repente, Letizia sentia que era capaz de expressar “a inquietude do mundo”.
Nas suas fotografias vê-se essa inquietude. Letizia contou com poucos amigos e companheiros de guerra durante os anos em que fotografou a actividade da Cosa Nostra em Palermo. Contou, por exemplo, com Paolo Borsellino ou Giovanni Falcone – o júri que fez de tudo para tentar caçar os “grandes peixes”, nomeadamente Luciano Liggio –, e chorou muito as suas mortes. Nem todos os que ousaram remar contra a maré conseguiram fugir da tempestade como Letizia. Muitos foram silenciados antes que pudessem sequer levantar a voz. “A Máfia podia facilmente ter eliminado a Letizia”, reflecte Kim Longinotto. Mas, por outro lado, provavelmente “os assassinos gostavam bastante que ela os fotografasse”: tinham quem os eternizasse, e tinham sobretudo quem ajudasse a propagar a tal cultura de medo de que a Cosa Nostra se alimentava.
Hoje, com 84 anos e “um cabelo rosa extraordinário”, Letizia Battaglia parece preservar a coragem que precisou de ter para trabalhar como fotojornalista numa Sicília dominada pela corrupção e pela tragédia. Reformada, passa agora os seus dias com um fotógrafo que é 38 mais novo. “Ela diz que repara na maneira como o mundo olha para eles”, observa Longinotto. “A Letizia colocou o trabalho à frente da família. Os filhos não concordam com as decisões que tomou ao longo dos anos. Ela teve de se habituar a não dar ouvidos ao que as outras pessoas dizem. Toda a vida dela tem sido uma luta”, conclui a realizadora de Shooting the Mafia.
O documentário mostra a caminhada conturbada e improvável de uma mulher que descobriu a fotografia quase por acidente, e que com ela encontrou uma arma de guerra. O seu gatilho não fazia muito barulho, mas as vidas e mortes que documentou imortalizam um sofrimento ensurdecedor.
Shooting the Mafia faz parte da Competição Internacional da sexta edição do Porto/Post/Doc. O filme foi exibido a 26 de Novembro no Teatro Rivoli e passa hoje, 28 de Novembro, no Cinema Passos Manuel.