Lina e Raül Refree usam a electrónica para levar Amália a novas alturas
Com a ascensão que a música nacional tem tido nos últimos 10 anos, é natural que o fado não tenha ficado estático no canto escuro e empoeirado da melancolia portuguesa. Muitos projectos contribuíram para uma nova acessibilidade deste género tão característico, ao cruzá-lo com novos mundos. Em 2009, surgiu o projecto Amália Hoje, que deu um cunho mais épico e pop às canções de Amália. Em 2012, Ana Moura fundiu o jazz com o fado no seminal álbum Desfado. Mais recentemente, artistas como Xinobi e Stereossauro levaram o fado para o campo dos samples e da música de dança electrónica: Xinobi assina uma versão dançável de “Fado Para Esta Noite”, de Gisela João, com a ajuda da fadista; Stereossauro usa a voz de Amália Rodrigues por cima de batidas decididamente urbanas.
A abrir 2020, o projecto Lina_Raül Refree atira-se também ao legado de Amália. Para isso, liberta-se do retinir da guitarra portuguesa, substituindo-o maioritariamente pelo piano e, mais impressionantemente, pelos sintetizadores analógicos. Os sons mais graves conferem às canções emotivas uma nova austeridade e intimidade, tornando ouvir canções esparsas como “Medo” numa experiência solispsista. Nessa canção, a vibração dos sintetizadores e a voz comandante de Lina – que deve ao cânone do fado – impressionam e tornam-nos um com a canção.
Lina e Raül conheceram-se após uma actuação da fadista no Clube de Fado, casa tradicional lisboeta. A união das suas visões resultou neste projecto, que pretendia fazer com o fado aquilo que Raül fez com o flamenco, quando produziu o álbum de estreia do astro Rosalía, Los Ángeles. O resultado é mais desafiante e voltado para o futuro, mas também ancorado nas raízes de um estilo tão clássico como o fado.
A voz de Lina é ideal para esta experimentação, na medida em que tem, à semelhança de Amália, a perfeita noção de como e quando conter a emoção e a voz. Veja-se “Foi Deus”, música que oscila entre o comedimento e desenfreamento, em que o vibrato esperançoso de Lina sobrevoa um acordeão até chegar ao refrão, em que prepara quase sozinha o clímax esperado, altura em que a canção desabrocha como uma flor. É tudo ainda mais impressionante pelo minimalismo que caracteriza a música (e também o álbum).
Por vezes, o álbum toma até contornos fantasmagóricos, reminescentes da capa de contornos suaves. No início de “Destino”, ouvimos apenas a vibração grave de um sintetizador e a voz distante e ecoante de Lina, quase como um espectro ao fundo de um corredor escuro. Entretanto, a luz vai aparecendo com um piano suave, um insistente silvo e um quase ritmo de marcha, mas nunca explode realmente para o épico que este crescimento prenuncia, em mais uma demonstração de controlo e da visão que os artistas quiseram para este álbum. Em “Maldição”, as coisas mantêm-se soturnas, mas não sem alguns detalhes curiosos dos sintetizadores, como a adição de alguma textura e uns arpeggios que tornam a canção numa criação quase mecânica.
O final traz a derradeira homenagem a Amália, através da curta versão de “Voz Amália de Nós”, original de António Variações. A belíssima letra espelha bem o legado de Amália, afirmando que todos nós temos Amália na voz e que a sua voz também tem a voz de todos nós. Quase de forma irónica, é a única vez em que uma guitarra aparece no álbum, tocando a melodia pop doce da original. Depois de explorarmos o negrume que caracteriza as temáticas das canções, este acaba por ser um final esperançoso. No ano em que se comemora o centenário do nascimento de Amália Rodrigues, é difícil imaginar uma melhor homenagem à Rainha do Fado.