Ana Moura fez do Palácio de Cristal (e faz do país) a “Casa Guilhermina”

por Lucas Brandão,    19 Março, 2023
Ana Moura fez do Palácio de Cristal (e faz do país) a “Casa Guilhermina”
Fotografia de Cristiana Morais
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Ana Moura é um dos casos paradigmáticos da transformação da música portuguesa nos últimos dez anos. Fruto de um crescente fenómeno de um Portugal suburbano em afirmação multicultural, também as próprias expressões mais típicas e tradicionais vão sendo tentadas a dialogar e, até, a tratar por tu o que vem de fora. É o caso do que traz o kizomba e o semba de Angola, o funaná e a coladeira de Cabo Verde, o samba e o funk do Brasil. Tem sido, em muito, cozinhado com outros géneros mais convencionais dentro da música popular portuguesa, mas também com outros caminhos mais universais.

Porém, quando se fala de Portugal, é inevitável recorrer ao fado como porta-estandarte da sua cultura. É o fado que rebusca aspetos mouriscos — isto é, da cultura mediterrânica que bebe, em muito, da presença árabe que por cá se foi sentindo. Porém, tornou-se sempre um fenómeno à parte, um tanto ou quanto distante das ruas e mais centrado em casas de fado ou em grandes salas. Momentos de admiração, de contemplação e até de introspeção auditiva. Porém, tudo se vem transformando com os tempos, com os espaços ocupados e com as pessoas que os habitam de vez, para além de outros que os povoam de passagem. Sem este fenómeno de evolução e de transformação contínua, não poderíamos acolher “Casa Guilhermina”.

Ana Moura chega-nos precisamente como resultado de um processo de metamorfose, que só foi possível com a abertura a novos caminhos musicais e artísticos. Só foi possível olhando para o futuro com referências ao passado, como Carlos do Carmo e a incontornável Amália Rodrigues, e a sonoridades que remetem a familiares seus, em especial à sua avó materna, angolana de nascença. Só foi possível com os contributos preciosos dos seus mais recentes e próximos colaboradores: a irreverência lírica e estética de Conan Osiris, a produção musical de Pedro da Linha, a direção artística de Pedro Mafama, seu companheiro. Numa fase em que, já na faixa etária dos quarenta anos, a sua carreira musical poderia fixar-se num quadrante, não foi isso que aconteceu.

Antes, já havia mergulhado em colaborações com nomes de diferentes texturas musicais, desde o angolano Bonga até ao israelita Idan Raichel, em constantes tentativas de arrancar o fado da sua zona de conforto. Isto sem deixar de esquecer o reconhecimento do mítico músico Prince, que, implicitamente, lhe abriria as portas para o estrangeiro em 2010, ano em que a fadista participou no seu concerto no Super Bock Super Rock. Aliás, tinha sido ele que havia dito à cantora que faltava um beat à sua música.

Só com esta amálgama de etapas, num crescimento em constante questionamento criativo, foi possível colocar as fundações de uma Casa aberta a todos sem exceção: do mais rico ao mais pobre, do mais central ao mais periférico, do mais melancólico ao mais eufórico. Com Ana Moura, assistimos a um fado diferente, que não é totalmente alheio a conversas em outros idiomas, e que não hesita, também, a deslocar-se ao interior do país, colhendo as modinhas e os fandangos que estão na génese de muito do que de popular existe em Portugal. Assim, na Casa Guilhermina, o idioma falado diverge do fado convencional e promete perdurar, encontrando-se cada vez mais falado por mais gente.

Na sua forma de disco, traz convidados que prenunciam este fenómeno: a Angola de Paulo Flores (em “Mázia”), de Toty Sa’Med e de Kalaf Epalanga, um dos cérebros dos Buraka Som Sistema, em “Janela Escancarada”; chegando até o histórico Liceu Vieira Dias na faixa “Birim Birim”. Ao mesmo tempo, mantém o elo com o convencional e repesca a religiosa “Nossa Senhora das Dores”, de José Luís Gordo, ou a “Estranha Forma de Vida” de Amália. Isto sem deixar de ir ao Brasil e trazer a “Calunga” do compositor Capiba, que também havia passado pelo repertório da lendária fadista. Nesta última faixa, vai mais longe e cruza o tema com a sua própria versão de “Mona Ki Ngi Xica”, interpretada originalmente por Bonga.

Como cartão de visita deste lugar especial que é a Casa Guilhermina, chega a mística “Andorinhas”, o florir exótico de “Jacarandá” (que dedicou a Prince, na qual colocou o tal beat), a sensualidade arabesca de “Arraial Triste” e, com a presença de Mafama, a caliente “Agarra em Mim”. A estética dos seus videoclips confirmam as premissas de pluralidade de camadas de sons e de vibrações e da novidade de um idioma que nasceu do cruzamento de raízes que se vão erguendo autonomamente, mas que conhecem muitas zonas de encontro e de perfeita sintonia. O típico “amalandrado” e pitoresco com o mais sofisticado e trabalhado que a produção musical contemporânea traz. É a missão deste espaço que, na verdade, não conhece barreiras nem tem limites, continuando a remodelar-se e a receber quem a quer visitar.

Foi isso que se proporcionou no Palácio de Cristal, no Porto, uma cidade que não deve tanto ao fado (e mesmo à música de origem africana) quanto Lisboa, que a recebe no Coliseu dos Recreios e que é o lugar que a viu crescer e ganhar amplitude musical. Não obstante, é um lugar cada vez mais habituado a deparar-se com estas fragrâncias e fê-lo, inicialmente, com a receção a Gonçalo Afonso, DJ na ocasião e que não é alheio ao percurso de Ana Moura nos últimos tempos. Aliás, é o mesmo responsável por muita da divulgação gráfica de “Casa Guilhermina”, exemplificado pelas fotografias que vem captando e pela direção de videoclips, como o de “Nossa Senhora das Dores”. Um rapaz que, segundo a própria cantora, é seu vizinho e conheceu através do Instagram. Um rapaz que trouxe um repertório lusófono e que plantou a semente das sonoridades que se avizinhavam.

Depois de quinze minutos de sinais da sua aparição, Ana Moura surgiu irreverente, arrebatadora, interativa, inovadora, envergando a indumentária que levara para o belíssimo vídeo de “Nossa Senhora das Dores”. A Casa Guilhermina já estava pronta, heterogénea nas idades, entre os amantes do fado e os do kizomba e do semba, bem repleta nos seus lugares sentados e nos de pé (as laterais abriam-se em forma de pistas de dança para os mais soltos e (des)coreografados). A sua anfitriã chegou e não descansou enquanto não abriu o livro das perfumadas e incensadas faixas do novo álbum, desde a “Janela Escancarada” até, entre outras, às “Andorinhas” e “Calunga”.

Foi a mesma que levou a Londres, a França e à Bélgica, inaugurando os concertos que o belga Stromae (um profundo admirador de Cesária Évora, como indica o seu tema “avé Cesária”) deu nesses países. Porém, Ana Moura fez questão de personalizar a experiência sentida no Porto, havendo espaço para a contemplação e para a diversão, à imagem do que o álbum nos proporciona. Até deu para, discretamente, colocarem um pequeno conjunto de degraus no meio do recinto para a cantora lá ir interpretar um tocante fado à maneira antiga: “Sozinha Lá Fora”.

Como convidados, trouxe o seu companheiro Pedro Mafama, que foi muito bem acolhido e que, para lá de a acompanhar em “Agarra em Mim” e de, com ela, dançar de forma apaixonante e sensual, criou mais um momento de grande intimidade e beleza: a interpretação do seu original “Linda Forma de Morrer”. Numa tela que estava acima do palco, ia surgindo a fadista a interpretar a canção, embora sendo captado no próprio momento do concerto, estando Mafama ajoelhando a contemplá-la como se de uma deusa se tratasse.

De igual modo, a inesperada mas fantástica visita de Paulo Flores ganhou proporções na interpretação de “Mázia”, mas também de um seu original, “Poema do Semba”, original esse que foi pressuposto suficiente para Flores abordar o público e pedir que o amor se expressasse entre os pares que lá estavam, de amigos a casais. Assim foi e muitos abraços e beijos reconfortantes tomaram lugar na pista de dança em que se transformara o recinto do Pavilhão Rosa Mota. A Casa Guilhermina não viveu só de si mesma e também acolheu momentos passados do percurso da fadista, em especial a tão conhecida “Desfado”, que tantos gostaram de relembrar e de experienciar ao vivo.

De igual modo, a cantora contou, com maior detalhe, as verdadeiras origens da conceção deste álbum remonta: elas levam-nos às suas memórias de infância, aos seus avós maternos e às danças que a cantora e a sua (já falecida) prima, Cláudia Mázia (daí a canção), faziam ao som dos sembas que eles lhes apresentavam. Aliás, havia sido a própria Mázia que lhe convidou para participar num karaoke num bar em Carcavelos, karaoke esse que mostraria ao mundo a voz que se apoderou do Porto por aquela hora e meia e que continua a bradar pelos vários cantos do globo.

Um destaque especial (proporcional aos agradecimentos que Ana Moura dedicou no final a toda a sua equipa) ao baixista André Moreira, ao co-produtor João Bessa (que sublinhou ser do norte), aos técnicos de luz e de som, aos roadies e ao seu road manager. Sem, claro está, esquecer a fabulosa prestação dos dançarinos que, com coreografias inclusivas da diversidade artística portuguesa, trouxeram adufes e lenços típicos para mostrar do que é feita a portugalidade de Ana Moura e companhia. No fim, deu para voltarmos uma outra vez a “Mázia”, ouvirmos um fado de agradecimento (o “Loucura”, popularizado por Carlos do Carmo e pela sua mãe Lucília) e escutarmos o delicioso “Arraial Triste” no encore. A festa viria a continuar no after, no Pérola Negra, para os mais incansáveis e assíduos da plural e diversa Casa.

Ana Moura trouxe, de facto, a Casa Guilhermina tal como ela o é: determinada e objetiva sem abdicar de ser divertida, abrangente, divergente. Um caminho que leva o fado a mares que começam a ser navegados por outras vozes, por outros cantares. No Porto, foi rápida a instalação da Casa no Palácio de Cristal, que cintilou perante a voz tão preenchida e ampla da fadista e as presenças que ornaram a sua presença de portugalidade e de africanidade. É uma Casa portuguesa, com certeza, mas que também é angolana, é moçambicana, é marroquina, é espanhola. É uma Casa que, em si, alberga um pouco de todo o mundo. É uma Casa que veio para ficar e para se ir decorando e enriquecendo, onde as divisões são cada vez menos e o espaço comum cada vez mais real. É uma Casa que cada vez gera menos interrogações e mais exclamações. Os aplausos e os gritos ouviram-se e, como tal, também o Porto já é parte da Casa Guilhermina. Resta dizer: bravo!

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