Recordar o diário de Salvador Dalí
O Surrealismo está, indelevelmente, ligado a Dalí assim como um peixe às suas guelras mesmo que, depois, se tenha divorciado do movimento surrealista de André Breton que, muito “gentilmente”, lhe dedicou um anagrama que o perseguiu para sempre, “Avida Dollars”. Aqui, bem que poderíamos enquadrar aquela célebre frase que Woody Allen cita no início de Annie Hall, “nunca pertenceria a um clube que me aceitasse como membro”, que vem, na verdade, no livro “Wit and its relation to the unconscious”, de Freud. Verdadeiro e mentiroso ao mesmo tempo (o que é a verdade?), excêntrico, cheio de si mesmo até à mais ínfima partícula — sim, referia-se a si próprio na terceira pessoa — incomparável, inconfundível e chocante, assim era Dalí. É verdade que não ficou a dever nada à falsa modéstia, mas também é verdade que foi detentor de uma técnica e talento ímpares que acabam, muitas das vezes, por ser engolidos pela grande marca da sua personalidade. Daí a associação de Dalí a uma vertente mais comercial do surrealismo que não é bem compreendida e ofusca o seu real e verdadeiro génio. Dalí era tudo e era só ele. Mas como poderíamos levar isso a mal? Quem poderia ser Dalí, a não ser Dalí? Independentemente da performance, ou muito por causa da performance, nunca abriu mão, verdadeiramente, do seu mistério, por isso é sempre difícil abordá-lo — principalmente quando se julga que é fácil. O dia de hoje marca, exactamente, 31 anos após a sua morte [1989]. Por isso mesmo, voltei a fazer uma leitura do seu diário, “Salvador Dalí, Diário de Génio”, e é, justamente, esse o livro que vamos recordar em conjunto.
Dalí ensina: escreve com sapatos de verniz bem apertados. O incómodo auxilia na capacidade oratória e ajuda a verdade a vir ao de cima
Seguindo a sua fórmula, foi mesmo com sapatos de verniz alguns números abaixo do seu que Dalí escreveu sobre André Breton e o seu afastamento do movimento surrealista — assim o exigia o tema — no seu diário. O pintor, com a sua destreza de escrita, despudor e humor, não escapou aos temas fracturantes entre si e o movimento e reafirmou que, nas suas obras, não existiam mensagens políticas — não, pelo menos, no entendimento que o movimento de Breton tinha de “mensagem política” — nem responsabilidade social per si. Outra questão, o artista não escondeu o gosto que tinha em esticar e explorar até ao máximo a paciência de Breton e os próprios limites dos Surrealistas (e isto já por si é bastante paradoxal, porque estamos a falar do próprio movimento surrealista). Tal como escreveu em Maio de 1952, “Nunca recusei os mais rigorosos processos de estudo à minha fecunda e elástica imaginação. O que só enrijeceu a minha congénita extravagância. Foi assim que no próprio seio do grupo surrealista, todos os dias me esforçava para fazer aceitar uma ideia ou uma imagem em completa contradição com o ‘gosto surrealista’.” Em primeiro lugar, veio a fase dos elementos escatológicos, depois as supostas acusações de fascista e hitleriano. Ainda para mais, o pendor místico e religioso que o próprio pintor confessava ter, não ajudou na sua integração no grupo surrealista. Ideologicamente, quer se goste ou não deste aspecto, a verdade é que os surrealistas e Dalí não poderiam ter sido mais diferentes.
Mas vamos por partes, Dalí não foge a estes temas e, aliás, tal como no resto do diário, escreve sobre eles de forma bem despudorada. “Bastou-me uma semana passada no meio do grupo surrealista para descobrir que Gala tinha razão. Dentro de uma certa medida toleraram os meus elementos escatológicos. Em compensação, declararam «tabu» uma quantidade de outras coisas. Reconhecia nisso as mesmas interdições que no seio da minha família. O sangue era-me permitido, Podia até acrescentar um pouco de cocó. Autorizavam-me a representar sexos mas nada de fantasmas anais. Às lésbicas agradava-lhes bastante, mas o mesmo não acontecia com os pederastas. Nos sonhos podia-se utilizar o sadismo, os chapéus-de-chuva e as máquinas de costura, mas excepto para os profanos todo o elemento religioso, mesmo com carácter místico, era banido. Se simplesmente se sonhava sem blasfémias aparentes com uma madona de Rafael, os comentários eram proibidos…”
As acusações de hitleriano também foram uma constante na vida de Dalí por parte do movimento. O próprio facto do catalão escrever — “ as costas moles e roliças de Hitler, sempre tão bem cingidas no seu uniforme, fascinavam-me. De cada vez que começava a pintar a correia de cabedal que, vindo da sua cintura, passava sobre o ombro oposto, a moleza da carne hitleriana comprimida por debaixo da túnica militar, causava-me um estado de êxtase gustativo, leitoso, nutritivo, e wagneriano que me fazia bater violentamente o coração, emoção raríssima que eu não sentia, nem quando fazia amor” — também não ajuda nada, é verdade. Mas não sei se seria do gosto dos verdadeiros nazis ouvir alguém falar do aspecto feminino de Hitler, nem sei se gostariam, particularmente, do quadro “O enigma de Hitler” ou, então, do quadro “Hitler masturbating”, em que o mesmo era retratado a masturbar-se. Sobre estas questões, o próprio escreve, “pintei um quadro profético da morte do Führer. Intitularam-no o Enigma de Hitler, o que me valeu a excomunhão dos nazis e os aplausos dos antinazis, apesar desse quadro — como aliás toda a minha obra e isso proclamá-lo-ei até ao fim dos meus dias — ser despido de qualquer significação política consciente. No momento em que escrevo estas linhas confesso ainda não ter decifrado o famoso enigma…” E também, “No decorrer do meu discurso pro domo, ajoelhei-me várias vezes, não para suplicar que não me expulsassem como falsamente foi dito, mas, pelo contrário, para exortar Breton a compreender que a minha obsessão hitleriana era estritamente paranóica e essencialmente apolítica. Expliquei-lhe igualmente que eu não podia ser nazi, porque se Hitler conquistasse a Europa aproveitaria para mandar matar todos os histéricos da minha espécie como já o tinha feito na Alemanha onde os tratava como degenerados. Finalmente, o papel feminino e irresistivelmente extravagante que eu atribuía à personalidade de Hitler bastaria para que os nazis me classificassem de iconoclasta. Do mesmo modo que o meu exacerbado fanatismo por Freud e Einstein, um e outro expulsos da Alemanha por Hitler, provava bem que este último não me interessava senão como objecto do meu delírio e porque me parecia de um incomparável valor catastrófico.”
O que é que estas passagens nos ensinam? De todas as vezes que tentavam associar Dalí a algo ou a uma corrente, o pintor arranjava sempre maneira de se esquivar e, o melhor de tudo, mesmo que não fosse intencional, o feitiço acabava sempre por se virar contra o feiticeiro porque tudo ia parar a um surreal humor e, acima de tudo, ironia. Acusaram-no de hitleriano, os próprios quadros em que Hitler figurava acabaram por ridicularizar isso mesmo e a própria figura de Hitler. Pertenceu ao movimento Surrealista que o fez assinar um documento no qual declarava “não ser inimigo do proletariado”, mas pelo qual nutria um gosto enorme em espicaçar e testar a paciência. Prova disso é o próprio quadro “O Enigma de Guilherme Tell”, em que Lenine, nem mais, surge com uma enorme nádega apoiada por uma muleta, e a satisfação que sentia em “chatear” Breton com a temática da religião que queria levar avante. Pois bem, se isto não reflecte o famoso “nunca pertenceria a um clube que me aceitasse como membro”, então não sei o que reflecte. Por isso mesmo, independentemente de acharmos que Dalí, na sua efusão, nos dá tudo, é preciso ter cuidado, e é por isso mesmo que acaba por ser tão escorregadio como a água entre os dedos. Tudo tem várias leituras, a sua confirmação e a sua negação, e Dalí aceitou-as a todas.
“Não te preocupes por ser moderno. É a única coisa que, infelizmente, faças o que fizeres, não poderás evitar ser.”
Todo o Dalí íntimo e controverso aparece neste diário sem grandes pruridos sobre o que deveria escrever ou não. O que achei mais caricato — e na altura em que li o Diário pela primeira vez ainda era mais ingénua do que o que sou hoje — é a forma como escreve sobre a sua ligação visceral, íntima e ascética, até, com o seu próprio corpo. Há a tentativa de um certo ascetismo corporal, sim, mas é curiosa a forma como tenta trazer as excreções e a sujidade do corpo para esse mesmo ascetismo, sem negar os bons e os maus odores. Não escapa nada, relatos sobre idas à casa de banho e a forma das fezes, até como uma simples, inocente e banalíssima crosta de cieiro nos lábios assume, para o pintor, toda uma outra dimensão artística e espiritual. É assombrosa como descreve essa relação com o cieiro enquanto pintava um escamoso peixe, com um modelo real já fétido e rodeado por várias moscas. “Com a ponta da língua exacerbada pelo trabalho do dia inteiro acabei por fim de arrancar todo o cieiro e não apenas uma das suas finíssimas escamas. Escrevendo com uma das mãos, agarro entre o polegar e o indicador da outra, com infinitas precauções, o cieiro. É mole mas partir-se-ia se eu o dobrasse. Aproximo-o do nariz para o cheirar. Não tem odor. Sonhador , deixo-o por um instante entre o nariz e o lábio superior levantado numa careta que resume exactamente a atitude da minha exaustão.” (…) “Um grande desejo de reflexão apoderou-se de mim. Havia um enigma semelhante ao das outras escamas do nariz. Se a dimensão, o efeito e a ausência de dor são os mesmos, o que importa que seja ou não o verdadeiro cieiro? A comparação enraivece-me pois significaria simplesmente que o divino Cristo que eu pinto no suplício das moscas, nunca existiu. A raiva faz-me contrair-me boca até ao paroxismo , o que provoca, com a minha vontade de poder, uma sangria do meu cieiro. Uma lenta gota oval vermelha escorre até à minha barba.” Depois do peixe que pintava, mas que já não aguentava mais devido ao cheiro fétido do modelo, decidiu continuar o seu Cristo. Nesta parte em particular, é que descreve o extraordinário. Sem querer, um diluente cai-lhe sobre o corpo e, com o diluente seco a escamar-se-lhe na pele, conjuntamente com o cieiro seco do lábio, crê que se está a transformar num peixe.
Dalí ensina: Se és pobre, veste-te bem e alimenta-te de caviar e champagne. O arroz tens de o pagar, quanto ao champagne e caviar, as senhoras bem vestidas dão-tos de graça. “That’s the american way of life”
Dalí nunca se descolou do seu humor e o seu diário não é excepção. As histórias são várias e sempre com vários ensinamentos que o leitor poderá achar úteis — depende sempre da perspectiva de cada um. Desde o jovem que o procura para lhe pedir conselhos sobre a melhor forma de singrar nos Estados Unidos, não importa a fazer o quê, entanto o pobre está disponível para vários sacrifícios, até ao empreiteiro que contrata mas que, muito inteligentemente, se engana por três vezes nos cálculos. Sobre esse episódio, escreveria, “Os erros têm quase sempre um carácter sagrado. Nunca tentes corrigi-los. Pelo contrário: racionaliza-os, compreende-os integralmente. Posto isto, ser-te-á possível sublimá-los. As preocupações geométricas tendem para a utopia e são desfavoráveis à erecção. De resto, os geómetras excitam-se pouco.” Ao jovem que queria singrar na vida, aconselha-o a procurar antes por caviar e champagne porque assim pouparia mais. As senhoras ricas dar-lhe-iam isso de graça se estivesse bem vestido, pois claro.
Dalí ensina: tudo não passa, afinal, de um gigante chifre de rinoceronte. Eu vejo (…) um gigante chifre de rinoceronte.
Para o pintor catalão a forma suprema e sagrada vinha na forma de um chifre de um rinoceronte. Era a forma suprema pela base circular e a ponta pontiaguda. O fascínio pela forma era tal que chegou a afirmar que tudo o que lhe pareciam chofres de rinoceronte. Essa influência, tal como a descreve no seu diário, viu-se reflectida na pintura Anti-protónica Assunção. É desta forma que se refere à sua assunção, “A Virgem não sobe ao céu rezando . Sobe pela própria força dos seus antiprotões. O dogma da Assunção é um dogma nietzschiano . Ao contrário da santa fraqueza como a nomeia, por erro e por fraqueza, o grande e admirado filósofo Eugénio d’Ors, a Assunção é o paroxismo da vontade poder do eterno feminino que os discípulos de Nietzsche pretenderam alcançar.”
Iniciado em Maio de 1952 e terminado em Setembro de 1963, o presente livro de Dalí era para ser titulado como “A vida Re-secreta”, como que a assinalar a continuação da autobiografia “A vida Secreta de Dalí.” Ficou, antes, “O diário de um génio”e, de facto ficamos na dúvida se, tal como é dito na introdução, o que é digno de mais apreciação, “a sinceridade na imodéstia ou a imodéstia na sinceridade.” Nada ficou de lado, a sua relação com o ateísmo e a religião, a sua imensa admiração por Nietzsche, o incomensurável amor por Gala e a sua relação com a perfeição. Excessivo, cria-se o derradeiro dos surrealistas, o derradeiro dos racionalistas porque, ao invés da automação, queria domar, atingir e conhecer o irracional. Era o homem sempre moderno porque não o queria ser. Foi-o porque era o homem a sugar a sua essência.