Entrevista. Chico Bernardes e a dualidade da alma. O olhar de dentro para fora do espelho
Com o geometrismo dos quadros do pintor Nadir Afonso, em exposição, e a alma do poeta do Reino Maravilhoso presente em todo lado, foi dessa forma que São Martinho de Anta (freguesia de Sabrosa e terra natal de Miguel Torga) recebeu Chico Bernardes, no passado dia 1 de Fevereiro, no equipamento cultural que herdou o nome do poeta — Espaço Miguel Torga. A verdade é que Sabrosa não era completamente estranha ao artista, uma vez que Chico Bernardes tem raízes portuguesas através do seu tetravô que partiu dessa mesma localidade rumo ao Brasil e casou, assim, com a sua tetravó. Portanto, brincou Chico Bernardes bem humorado e comunicativo no concerto, caso o seu tetravô não tivesse partido da vila portuguesa, ele e Tim Bernardes (seu irmão) não existiriam e nós não estaríamos ali, àquela hora, para o ouvir. Do seu violão, numa primeira parte do concerto, começaram a entoar as músicas do seu álbum homónimo, Chico Bernardes, de 2019 com a chancela do Selo Risco,cuja apresentação o trouxe em digressão a Portugal. Numa segunda parte o piano foi o protagonista e, embora o folk de Bob Dylan e Joni Mitchell sejam a sua grande inspiração, a verdade é houve alguns momentos em que o artista nos conseguia levar e embalar com a mesma suavidade de uma terna valsa. Quanto a uma particularidade que não passou despercebida, a constante mudança de afinação do seu violão, o artista explicou que essa é uma característica do Folk. Para exemplificar, o seu disco tem 10 temas e cinco afinações diferentes. Não deixou, mais uma vez com bom humor, de lançar um repto, quem conhecesse, na zona, alguém ligado à família do tetravô, que não o deixasse de o dizer. A CCA esteve presente em São Martinho de Anta e falou com o artista. Chico Bernardes não conhece bem Miguel Torga enquanto poeta e em off pediu uma sugestão literária para começar. Pode mesmo ser por “Bichos”. Leiam, agora, a conversa que passou pela música, literatura, Machado de Assis e, por fim, a dualidade existencial.
É, mesmo, a tua primeira vez em Portugal?
Sim, é a primeira vez.
Então é a primeira vez que houves falar desta localidade?
Já tinha ouvido falar de Sabrosa. O meu tetravô veio daqui, foi para o Brasil e casou com a minha tetravó.
Ah, então tens raízes transmontanas.
Sim, por isso mesmo está a ser uma experiência muito interessante aqui, hoje.
E Miguel Torga enquanto poeta, já tinhas ouvido falar?
Miguel Torga enquanto poeta não, não conhecia.
É verdade que quando eras mais novo não pensavas em seguir música?
Sim, não tinha uma ideia muito consolidada mas a minha família, como deves saber, é cheia de músicos. Achava que já tinha músicos de mais na família. [Chico Bernardes é irmão de Tim Bernardes e filho de Maurício Pereira].
Então já chegava!!!
Eu queria ir por outro caminho mas, quando vi, já estava envolvido, já estava gostando de fazer música. De qualquer maneira, por mais que também seja músico eu tenho um caminho diferente do meu pai e do meu irmão, cada um tem o seu caminho. Bom, acabei por fazer música.
O teu primeiro instrumento foi o violão, não foi?
Sim mas, na verdade, quando era mais novo eu tocava bateria porque tinha uma em casa. Era, no entanto, a bateria do meu irmão e, um belo dia, ele me disse que não podia mais usar a bateria dele.
Ah, ok [risos]
E aí, não sabia muito o porquê, ele queria gravar umas coisas e não queria que eu mexesse muito. Foi quando eu comecei a tocar violão. Então, embarquei no violão.
Mas é curioso passar da bateria para o violão, uma vez que a bateria é o instrumento musical, por excelência, que te faz perceber bem a marcação rítmica da música além da marcação do tempo dos compassos. Não tens é a percepção do encaixe das notas.
Sim! Eu sempre tive uma coisa muito forte com a coordenação motora, sempre gostei muito. No violão tive de entender, não só, a parte rítmica mas, também, onde se encaixavam as notas. Foi uma experiência importante.
E como foi quanto ao piano?
Depois que me formei no colégio, em 2016, eu entrei na Faculdade de Música, em 2017, e nesse mesmo ano fiz 6 meses de aula de piano. Depois, fui seguindo sozinho. Tenho piano em casa e fui aprendendo por conta própria. Ainda tenho muito para aprender.
Achas que o piano tem mais abrangência musical?
É um pouco mais intuitivo. As notas aparecem mais organizadas no teclado mas não sei dizer. Os dois são bons instrumentos de iniciação, eu diria.
Relativamente ao álbum, é interessante estar cheio de referências psicológicas bastante fortes. Há o astronauta, que nos remete para a ideia de espaço e, acima de tudo, mexe com a nossa concepção sensorial. Depois, há o espelho que é dos símbolos psicológicos mais fortes. Gostas de explorar esses conceitos?
Sim, acho muito interessante explorar essas questões tanto afectivas como pessoais e existenciais — a parte de alguma metáfora. Então, o astronauta pode ser uma música ouvida de uma maneira literal, pensando num astronauta, de fato, que foi para o espaço ou dessa pessoa que se distanciou do afecto da família, que vivia para um determinado objectivo e achava que era o grande ponto da sua vida, mas na verdade já tinha muita coisa importante em volta, mas só se deu conta quando já estava na terra, aqui em baixo. O espelho fala dessa mudança de se olhar nele, todo o dia, e não ver tanto uma diferença física mas uma diferença interna, de como você se está olhando de dentro para fora.
Está intimamente ligado ao conceito de persona e isso leva-nos a Machado de Assis.
Sim, então. Aí tem Machado de Assis que foi o autor do conto “O Espelho” — uma grande inspiração para esta música.
Li o conto ontem [31 de Janeiro].
Oh, que bom. É muito bacana ouvir falar da dualidade da alma. É o modo como a gente olha para o nosso interior — a nossa parte interna — e a nossa parte externa. Como a gente se porta para o outro. É muito interessante.
Jacobina estava tão habituado a ser tratado pelo que emanava da sua alma externa, a ser encarado apenas pela sua persona, que já não aguentava estar sozinho consigo mesmo.
Não se reconhecia…
Exactamente. Aliás, todo o Machado de Assis é bastante psicológico, não é?
Sim, bastante. Acho bem interessante.
Há, até, quem diga que para se entender psicologia era arrumar os livros técnicos e ler-se Machado de Assis e Dostoévsky.
Faz todo o sentido…
Como a literatura e música estão interligadas, o que andas a ler, de momento?
Bem, nas férias estava lendo Clarice Lispector. Agora saiu uma edição lá no Brasil, que é um livro com todos os contos, e um outro com todas as crónicas. Estava lendo, desde Novembro, esse livro com todos os contos porque eu sou uma pessoa um pouco dispersa, então, às vezes, numa leitura longa acabo parando de ler no meio dos livros mas, com os contos, eu leio um ou dois contos, páro, depois pego de novo, leio. Então, tenho lido esse livro de contos da Clarice e um livro de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser”,
Ah, sim!
Um livro muito bonito, muito marcante.
O Eterno Retorno …
De Nietzsche não conheço tanto…
Sim, sim. Mas era só para contextualizar porque “A insustentável leveza do ser”, de Kundera, está intimamente ligado à noção do Eterno-Retorno.
Ahhhhh, claro. Mas também li bastante poesia nas férias. Então li Drummond,um pouco de Pablo Neruda. Que mais que eu li? Um pouco de Leminski, que também é muito bacana.
Leminski, um poeta sobre o qual Portugal deveria saber mais e eu tenho de explorar!
A poesia é algo muito interessante. Gosto bastante.
Sentes uma outra relação com a poesia do que propriamente com a prosa?
Não assim uma preferência, é mais por fases, mesmo.
A nível musical, uma das tuas principais influências é Joni Mitchell e Bob Dylan. O que é que te agrada mais na ideia cantautor folk?
Acho que tem a ver um pouco com o lado do músico ter uma auto-suficiência e poder estar só com o violão. Com o facto dele, sozinho, dar conta de contar uma história. E acho que muita gente olha para o violão como uma coisa simples, como algo não tão sofisticado como quando tem uma banda, arranjos… Penso que assistir um show só de violão você acaba indo para as minúcias do que é o violão que a pessoa toca, como ela se comunica quando fala, como ela se comunica enquanto toca. No fundo, o que o violão dela comunica. Então, é dentro desse minimalismo que é interessante observar um cantautor.
Mas, musicalmente, não te cinges só a isso.
Sim, é verdade. Tenho tocado com uns amigos, desde o final do ano passado, esse repertório solo com banda porque o disco tem arranjos de banda que eu gravei — todos os instrumentos — e aí eles me têm acompanhado para a gente reproduzir esses arranjos. Então, sou eu acompanhado de um baterista e um baixista, e a gente tem feito esse teste de como seria remontar o que eu gravei sozinho. Tem sido uma experiência interessante. Há, também, uma banda da qual eu faço parte, chama-se Fernê — ainda não lançamos nada, mas acho que esse ano lançaremos. É uma banda em que cada integrante compõe uma música e a gente monta junto, então, é uma coisa mais colectiva.
Mas é curioso que esta nova geração de artistas vindos do Brasil, como tu, vão beber muito ao folk, também. A própria MPB, em toda a sua elasticidade e profusão, também tem influências do folk.
Sim, acho que a Bossa Nova, por exemplo, foi uma coisa muito forte, não é? Bom, foi a construção dessa ideia musical do Brasil mas, ao mesmo tempo, se a gente olhar para o contemporâneo, a gente vive num mundo globalizado. Então, antes de eu conhecer a fundo o Caetano Veloso, o Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque — compositores importantes dessa cena dos anos 70, 80 — eu ouvia mais o folk, Beatles e essas coisas que vieram de fora, a maioria em inglês. tive um contacto mais particular com isso, e depois quando entrei na faculdade, comecei a estudar mais a fundo a história e a trajectória musical do Brasil, e aprendi mais sobre os artistas brasileiros. Aí conseguia, sim, ter uma imersão maior no trabalho deles. Então, acho que essa globalização torna difícil de definir o que é a música brasileira ou a música de um determinado país, hoje em dia. Às vezes, você até vai a um país estrangeiro e vê as pessoas tocando Bossa Nova que não é uma coisa de lá. Eu acho que a música tem esse poder de atravessar fronteiras.
A nível de MPB o que começaste por ouvir?
Acho que tenho mais lembranças do Gilberto Gil e do Milton Nascimento. Chico Buarque lembro de ouvir mas, quando era pequeno, não gostava tanto. Mas fui crescendo e amadurecendo o lado lírico e comecei a dar o valor que o Chico Buarque tem porque, musicalmente, trata-se de uma coisa mais simples, é mais parecido com o João Gilberto no movimento da Bossa Nova, nos arranjos, mas a letra dele vai muito além. Você tem que ter um certo debruçamento sobre aquilo.
Vocês todos, aliás, têm um enorme respeito pelas palavras e pelo seu próprio espaço. É como se, metricamente, aquela palavra tivesse, mesmo, de estar ali, naquele lugar. Depois, há uma enorme facilidade em brincar com elas e com o seu sentido.
Sim, com certeza. Tem o Djavan. Não sei se você conhece?
Sim.
Tem muitas palavras que ele coloca nas letras e às quais dá um novo sentido. Então, ele mistura palavras fazendo um jogo ali, que é completamente uma licença poética, acima de tudo. Então, cada artista consegue achar sua maneira, seu próprio contacto com a palavra da maneira como lhe é conveniente. Acho isso muito precioso.