O hiato da humanidade
Pois é, pois é. Só nos faltava isto agora! Um vírus entranhado no bucho europeu e uma barafunda de todo o tamanho causada em milhares e milhares de setores de atividade lucrativa. A pandemia, pé ante pé, desfilou sobre a passerelle vinda de leste do mundo e calcorreou tudo o que é lugar: o Interrail de divertido e enriquecedor não tem nada, mas se colocarmos o nefasto “ao barulho” o enredo da história altera-se. Numa primeira observação, surpreende-nos a Islândia e o número de infetados por milhão (967). A Itália traduz o estado perfeito de carnificina, a Espanha não se quer atrasar na corrida e, a toda a velocidade, corre atrás da camisola verde, vermelha e branca, enquanto que Portugal ainda nem o pico experimentou. Eu não estou assustado, o leitor é que está!
A esperar e a vaticinar uma situação como esta, as apostas de grande parte da população portuguesa não iriam para o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa: pensei que o Presidente da República, através de beijos e abraços, derretesse a pandemia e a convidasse para jantar. Assim, no apogeu da nossa existência, com um Europeu e uma Eurovisão no bolso, a pior coisa que nos podia acontecer seriam casos de corrupção e incêndios subversivos. Agora, de repente, o covid-19 chega e pensa que é gente? Alarmar uma população tranquila e despreocupada, com a economia a crescer e a convergir com a União Europeia? Com que intento? (Reparem que escrevi o nome do bicho com letra minúscula só mesmo para o desprezar e mostrar que não tem importância!).
Para os que “comem tudo e não deixam nada” e para os que se habituaram, desde cedo, a fugir ao fisco, cumprir a quarentena tem tudo para ser uma dificuldade acrescida, porque, em caso de desrespeito, comete-se um crime de desobediência civil. Relativamente à população sénior, sair da residência só em caso de extrema necessidade ou extraordinário: ou seja, aqueles que, nas suas casas, possuem criação de animais, podem e devem continuar a fazê-lo porque não são esses bichos que devem morrer. Tentem explicar isso aos campónios e assegurem-lhe a continuidade da sua maior preocupação.
Face à conjuntura atípica, antevê-se, através da leitura da lista de questões disponibilizada pelo Público que, no nosso país, o bom senso e a decência não são transversais à sociedade. Existirá sempre uma alma iluminada a seguir a pergunta acerca dos transportes públicos e a colocar as mãos na estrutura de ferro lá disposta, a passear de carro ou a pé ou a frequentar estabelecimentos públicos para desopilar do momento vivido. Controlar toda a gente é humanamente impossível…
O discurso de António Costa, no meu parecer, foi coerente do ponto de vista do interesse nacional e dirigido às preocupações e necessidades de uma população que vive assustada face ao panorama hediondo. As medidas de apoio social e económico assentaram o seu foco, principalmente, nos postos de trabalho e na sua garantia, através de linhas de crédito concedidas às empresas e na suspensão do prazo de caducidade dos contratos de arrendamento – no fundo, o objetivo é chegar ao término do surto do vírus com as melhores condições de saúde e com as menores quebras possíveis ao nível do rendimento familiar- de modo a combater a vulnerabilidade e as dificuldades que possam surgir. Por isso, urge aos trabalhadores recuperar o fôlego que até aqui tinham construído.
A consequência desta tempestade não é, contrariamente ao que o aforismo apregoa, a bonança. Avizinha-se uma nova recessão económica ao longo de toda a Europa: neste caso, a solidariedade é uma utopia que dura e perdura e nós, país pequeno posicionado na cauda europeia, estamos inaptos e incapacitados para suportar outra crise financeira e aguentá-la uma vez que dependemos diretamente do apoio monetário oriundo do exterior. Cessar a produtividade e a atividade da economia atirar-nos-ia da falésia mais próxima e traduzir-se-ia numa falência massiva e no desemprego profetizado. Importa mantê-la à tona de uma água turva. Tudo isto depende da duração da estadia do vírus. Quantos cintos vamos apertar, desta vez?
Surpreendentemente, o exemplo foi proveniente do futebol. A união, como eu nunca tinha visto até à data, foi proclamada e cada um ajudou à sua maneira. Com ventiladores, com dinheiro doado ao SNS, com a oferta das suas instalações ou com o contributo da sua formação profissional. O grotesco transformou-se num gesto bonito, mas, mais do que isso, num gesto necessário e altruísta, consciente do cenário em que todos vivemos.
Se calhar, a altura para politiquices e crendices ideológicas não é a mais adequada. Convém suspender todos os ataques. O facto de estarmos perante uma situação sem grau de comparação e pela capacidade que a mesma tem de transgredir, regredindo, todo o país não deve dar azo àquela discussão mesquinha, habitual e aborrecida e o “mais do mesmo” que circunscreveu e continua a circunscrever o país noutros momentos. As ações dos dirigentes máximos, mesmo que os portuguesas queiram fazer delas a sua vontade, não correspondem ao antídoto para a epidemia. Nem é esse o objetivo das suas declarações e tomadas de decisão: tal como nós, eles foram apanhados de surpresa e estão a fazer o que dita a sã consciência e a humanidade que o assunto requer.
Por fim, queria deixar uma palavra de especial agradecimento à IURD, ao vigário Manuel Pina Pedro e aos ilustres que pretendem seguir as suas pisadas. Em tempos de pandemia, rir também é o melhor remédio!