António Arnaut: o pai do Serviço Nacional de Saúde português
O Serviço Nacional de Saúde é uma das traves-mestras da República que se solidificou nos meados dos anos 1970, já após a superação da conturbada ditadura política. É, mais do que uma medida, um modo de funcionamento da saúde, sustentando um serviço totalmente público, destinado a capacitar todos, sem discriminação alguma, de acesso aos cuidados necessários para o seu bem-estar. Para tal, António Arnaut, um advogado de origens beirãs, acabaria por ser preponderante, sendo o grande proponente desta causa, tanto ao ponto de ser, já após a sua morte e até ao presente, reconhecido por esse projeto. Contudo, há mais que o caraterize do que essa iniciativa, embora sem nunca colocar em causa a sua tamanha importância.
António Duarte Arnaut nasceu em Cumeeira, uma pequena aldeia nos arredores de Penela, Coimbra, a 28 de janeiro de 1936. Seria em Coimbra que viria a falecer, a 21 de maio de 2018, aos 82 anos. Foi nessa pequena aldeia que cresceu e que se deparou com o drama dos locais, que tinha de fazer sacrifícios pessoais para poder custear os seus cuidados de saúde, sendo a sua acessibilidade muito difícil. A dignidade social tornou-se, desde então, a sua grande causa de vida e de obra, assumindo-se como o seu imperativo ético e jurídico. Arnaut formou-se em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, curso que completou aos 23 anos, em 1959. No seio dessa atividade académica, foi formando um espírito crítico e participou em várias iniciativas de oposição ao regime ditatorial que era vigente então. Para além de apoiar a candidatura de Humberto Delgado à presidência do país, foi um dos signatários da carta dos católicos escrita a Salazar, no ano de 1959, que levantava questões sobre a repressão que se vivia no país, questões essas postas por membros da Igreja e seus defensores. A carreira política continuaria a ser pautada por atividade concreta, candidatando-se à Assembleia Nacional em 1969, ao abrigo da Comissão Democrática Eleitoral, pelo seu círculo de Coimbra.
Nessa fase, era já militante da então Ação Socialista Portuguesa, que antecipou a fundação do Partido Socialista, no ano de 1973, sendo Arnaut um dos seus co-fundadores (o militante nº 4). Aqui, e movido pela ideia de um Estado Social, seria dirigente até ao ano de 1983 (seria nomeado presidente honorário em 2016), num período que, já após o regime ditatorial cair, em 1974, seria Ministro dos Assuntos Sociais no governo de coligação entre o PS e o CDS, executivo esse chefiado por Mário Soares. Até este momento, havia sido deputado da Assembleia Constituinte, responsável pela elaboração e aprovação da Constituição que norteou o funcionamento da República, para além de ter acumulado experiência administrativa na autarquia de Penela, de onde é natural. Na Assembleia da República, onde havia sido deputado também, chegou ao cargo da vice-presidência.
No entanto, a sua grande conquista foi, precisamente, como Ministro dos Assuntos Sociais, cargo que exerceu durante oito meses, ou seja, a mesma duração do governo no qual esteve. A curiosidade é que, inicialmente, Arnaut iria exercer a pasta da Justiça, mas seria Ramalho Eanes a vetar a sua admissão. Mário Soares movê-lo-ia, assim, para a pasta dos Assuntos Sociais. A sua ideia de desenvolver um Serviço Nacional de Justiça transformou-se numa outra, inspirando-se num dos valores que havia aprovado na Constituição: o direito à proteção da saúde sustentado num serviço universal, geral e gratuito. A prestação de cuidados de saúde no país era bastante precária – as condições dos hospitais eram bastante débeis – e, o que existia, era, por norma, dispendioso e muito centralizado. Estatisticamente, a esperança média de vida não era muito alta (não excedia os 65 anos) e os índices sanitários dos estabelecimentos de saúde eram bastante baixos. Seria ele mesmo que conseguiria, assim, levar avante o projeto do Serviço Nacional de Saúde e a respetiva legislação que a ratificaria. Assim, juntou Mário Mendes, médico de Coimbra, que colocou como seu Secretário de Estado, e o também médico e professor universitário Francisco António Gonçalves Ferreira para delinear as bases técnicas deste serviço.
O anteprojeto do Serviço seria apresentado um mês após o governo assumir funções, que o fez em 23 de janeiro de 1978. Em abril, foi apresentado publicamente e, a 29 de julho, pouco antes da queda desse executivo, Arnaut encaminhou um despacho, publicado em Diário da República, em que o acesso aos serviços médico-sociais seria universalizado a todos os cidadãos, independentemente da sua situação de emprego ou de terem descontos ou não, comparticipando parte significativa dos medicamentos receitados. Ficou conhecido como o “despacho Arnaut”, que seria seguido por uma explicação pública no parlamento: o projeto de lei estava, todo ele, estruturado, garantindo um serviço que, na sua base, assegurava a prestação de cuidados gratuitos a toda a população, sem qualquer discriminação de base social ou económica, garantindo o direito à proteção da saúde constitucionalmente assumido.
O projeto do Partido Socialista, para além de assinado pelo próprio Arnaut, contava com as assinaturas de Mário Soares e de Salgado Zenha, dois dos principais nomes do partido à data. Formalmente, entrou na Assembleia em novembro e seria votado em maio de 1979, acabando aprovado, apesar dos votos contra do CDS, do PPD (atual Partido Social Democrata) e de alguns deputados independentes. A sua formalização seria cumprida aquando da sua publicação no Diário da República, a 15 de setembro de 1979, sendo a data considerada para o aniversário do Serviço Nacional de Saúde. O documento estabelece, assim, a garantia da prestação dos cuidados pela rede de estabelecimentos públicos integrados no SNS e, na sua impossibilidade, por outras que não fazem parte. O executivo de Francisco Pinto Balsemão tentou, em 1981, revogar a lei do Serviço Nacional de Saúde, mas seria impedido pelo Tribunal Constitucional, que declarou inconstitucional a sua extinção. Não obstante, a reforma constitucional que se viria a proporcionar em 1989 alterou o conteúdo da lei de “gratuito” para “tendencialmente gratuito”.
A pasta dos Assuntos Sociais está, neste momento, extinta, sendo que as suas competências se repartem entre o Ministério da Saúde e o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, ambos fundados em 1983, curiosamente o ano em que Arnaut saiu do PS. A saída da política ativa foi precoce tendo em conta o seu descontentamento com a primazia do poder económico sobre o poder político, embora sem deixar de ter um olhar atento sobre o dia-a-dia da política portuguesa. Aliás, foi público o seu desagrado em relação ao crescente subfinanciamento do SNS, assim como a degradação da própria estabilidade dos profissionais de saúde e da própria dependência do setor privado, reconhecendo a própria deterioração da sua criação. Essa mesma primazia do poder económico que denunciou contribuiu para que a sua visão de um possível Estado Social fosse perdendo força, que se tornou proporcional ao seu interesse pela União Europeia, entristecendo-se pelo emergir do neoliberalismo.
Nesse contexto, defendeu, ao lado do deputado do Bloco de Esquerda João Semedo, também ele médico de profissão, uma revisão da Lei das Bases da Saúde. Esta lei, aprovada em 1990, apresenta o quadro geral do funcionamento das instituições de saúde, sendo atualizada em 2002, alterando o regime laboral e financeiro, que levou a um novo regime da própria gestão hospitalar. A intenção de Arnaut e de Semedo seria, assim, a de salvaguardar os direitos e o funcionamento do SNS, que salvaguardasse o seu financiamento e a segurança dos empregados nos estabelecimentos do serviço. Em suma, a saúde como direito fundamental e não como objeto de obtenção de lucro, zelando pelo papel do privado como complemento e não como substituto.
Durante este período, exerceu advocacia, tendo um papel relevante na sua profissão. Para além de assumir cargos na Ordem dos Advogados, especialmente no distrito de Coimbra, redigiu algumas obras de suporte ao funcionamento da associação. De igual modo, foi vogal do Conselho Superior da Magistratura e fundou a Associação Portuguesa de Escritos Juristas. A sua atividade também se debruçou pela cultura, tendo sido um dos fundadores do Círculo Cultural Miguel Torga, de fomento da sua vida e obra. Arnaut havia sido amigo de Torga, nome que o havia ajudado a trazer o seu braço-direito, Mário Mendes, também ele, como o poeta, médico em Coimbra. As suas afinidades não se ficavam pela profissão em comum, mas também pelo gosto pela prosa e pela poesia, em que Arnaut também deu cartas.
Prezo os símbolos, o rasto e os sinais
da minha nostalgia portuguesa.
Mas os meus heróis verdadeiros não vêm na história;
não têm monumentos nas praças domingueiras
nem dias feriados a lembrar-lhes o nome.
São heróis dos dias úteis da semana:
levantam-se antes do sol e recolhem apenas
quando a noite se fecha nos seus olhos.
Lavram a terra, o mar, e são jograis
colhendo a virgindade pudica da vida.
Sobem aos andaimes, descem às minas
e comem entre dois apitos convulsivos
um caldo de lágrimas antigas.
São os construtores do meu país, à espera!
Mouros no trabalho e cristãos na esperança;
famintos do futuro, como se a madrugada
fosse seara imensa apetecida
onde o sol desponta nas espigas
sobre o casto silêncio da montanha.
“Versos da Mocidade” (1954) foi o seu primeiro livro de criação literária, num percurso que se estendeu por mais de uma dezena de obras, que, para além da poesia, contou com ficção e diversos ensaios científicos. A última delas foi a revisão e o aumento da sua “Recolha Poética” (2004, estendida em 2017), onde espelhou um forte sentido fraterno e introspetivo. Seria agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade em 2004, trinta anos após a Revolução de Abril, sendo elevado a essa Grã-Cruz dessa mesma ordem; de igual modo, foi distinguido com o doutoramento Honoris Causa na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. De igual modo, iniciou-se na Maçonaria Portuguesa, no Grande Oriente Lusitano, onde foi Grão-Mestre. Aliás, seria o primeiro a, de forma oficial, transmitir uma mensagem desta obediência maçónica para a comunicação social.
António Arnaut foi, assim, um socialista que deu corpo e expressão à máxima da universalidade e gratuitidade dos cuidados de saúde aos cidadãos. Inspirado pela sua experiência aldeã, onde se deparou com a indigência e com o sacrifício de tantos dos seus conterrâneos, fez da sua formação académica e dos seus valores éticos a base para que o Serviço Nacional de Saúde pudesse ser uma realidade fundamental na democracia portuguesa. No entanto, nunca deixou de procurar vias para a sua melhoria e para a sua sustentabilidade, o que o encaminhou a alguns desaguisados com outros ministros do executivo em que esteve, como o Ministro das Finanças à data, Vítor Constâncio (este levantava questões sobre a viabilidade financeira da sua aplicação). No entanto, Arnaut persistiu e viu vingado o seu projeto de vida, que procurou sempre estimar e cuidar como força máxima do seu socialismo que, mais do que cores, via e prevenia as dores.
Eu sou mesmo socialista mas isto não tem nada a ver com ideologia, é uma questão ética. A reforma do SNS pode ter uma componente ideológica, mas é sobretudo uma exigência ética da civilização. Não é justo que as pessoas sofram e morram por falta de assistência médica por não terem dinheiro. Por isso pagamos os nossos impostos. Este livro é por isso um episódio de uma luta antiga. E enquanto eu tiver um bocadinho de força e vitalidade, continuarei a lutar. Quando o SNS faz as pessoas esperar meses por uma consulta, por um exame ou cirurgia às vezes urgente, deixou de ser um Serviço Nacional de Saúde.
António Arnaut numa entrevista ao Jornal i em 2018.