Entrevista. Podcast Mão Visível: “10% dos portugueses que trabalham, mesmo com emprego, são pobres”

por Comunidade Cultura e Arte,    29 Janeiro, 2023
Entrevista. Podcast Mão Visível: “10% dos portugueses que trabalham, mesmo com emprego, são pobres”
“Mão Visível”, podcast da autoria de Mariana Esteves e Rui Maciel
PUB

A Mariana Esteves e o Rui Maciel são os autores do podcast “Mão Visível” que celebra agora dois anos. Segundo a nota de apresentação do próprio podcast, “Mão Visível” junta dois millennials “para discutirem política, economia, actualidade e outras inquietações”. Apesar da sua formação em economia, pela NOVA SBE, o Rui Maciel é também mestre em Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e, de momento, trabalha no Banco Central Europeu. Já a Mariana licenciou-se em economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto e encontra-se, actualmente, a tirar o doutoramento em economia na NOVA SBE e tem-se dedicado, nos últimos anos, a estudar a pobreza, a exclusão social e a desigualdade como co-autora dos relatórios “Portugal, Balanço Social”.

Caracterizado por conversas sobre os vários temas que pautam a actualidade de forma informal — relembra Rui Maciel em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA) com Mariana Esteves — o podcast “Mão Visível” começou com “lives no Instagram de uma maneira absolutamente corriqueira, mas pelo simples facto de querermos falar, discutir, principalmente, porque na altura havia um candidato de extrema-direita que, pela primeira vez, estava a causar mossa e, então, sentimos que era importantíssimo elevar a nossa voz e não continuarmos calados“, avisa. Já Mariana Esteves foca a formação em economia que ambos partilham e enfatiza que “se nos pudermos desconstruir para que haja um maior alcance possível de temas que são, de facto, complexos, e possam ser democratizados para, assim, chegar à maior parte das pessoas, então já fizemos o nosso papel“, avança. Relembra ainda como o acesso às noções económicas de forma descomplicada “e acessível a toda a gente” tem um papel fulcral na democratização da informação.

Economia tem a ver com política e sociedade, sendo bastante transversal no seu campo de actuação, e isso mesmo reflecte-se nos temas do podcast, que vão desde educação e recente greve dos professores, até à política em geral e a questão da pobreza em Portugal, também focada nesta entrevista. Pelo que Mariana Esteves afirmou, “10% dos portugueses que trabalham, mesmo com emprego, são pobres”. Já Rui Maciel diz que “existe a economia da saúde, existe economia do ambiente, existe economia até da família“, informa. Não é que estas áreas sejam uma só, até porque a Rui Maciel lhe custa ver a economia a intrometer-se em outras áreas, “cada uma vai buscar o seu“, afirma, no entanto “é necessária essa multidisciplinaridade“, relembra.

Mas como a economia se vê no plano político? Será política só economia? E, por sua vez, a economia rege-se só pelos números? Para o jovem economista, o mesmo acontece com a política, que também deveria conjugar essa mesma multidisciplinaridade e avança que “falta a capacidade de sonhar na política“, diz. Mariana, no entanto, relembra que há uma tentativa do ensino da economia se afastar, cada vez mais, da ortodoxia, e dá como exemplo o aparecimento da disciplina de economia comportamental, “que integra a psicologia na economia“, nas suas palavras, nos últimos dez, quinze anos, e as coisas têm progredido a partir daí. Complementa ainda que “ um economista não é um gestor, por exemplo,” frisa. A seu ver, “fazer políticas públicas não é o mesmo que gerir um país no sentido, meramente, de gestão corrente. Não é o mesmo que gerir uma casa, ou empresa, são dimensões diferentes. A forma como os economistas são formados tem essa vertente mais prática de gestão corrente, do que propriamente de visão a longo prazo e de futuro da sociedade e desenho de políticas públicas que, de facto, tenham um impacto humanista na vida das pessoas. Se isso falha por falta de tempo, por falta de vontade, isso já é uma outra questão”, afirma.

Trata-se de algo já muito discutido nas faculdades, que diz respeito à economia ortodoxa, muito neoclássica. As pessoas esquecem-se de que a economia é uma ciência social e há uma visão clara de que as pessoas querem impor esses modelos económicos na política, e que não há outra verdade se não esses modelos económicos. Basta pensar no chavão de que a subida do salário mínimo implica, necessariamente, desemprego“, completa Rui Maciel.

No que diz respeito à educação e habitação, principalmente na dificuldade que os jovens têm em arranjar quarto na cidade onde está a sua universidade, o economista diz que a solução não passará, tanto, por uma visão de esquerda ou direita, mas por dormitórios, casas “por parte do estado para o uso das pessoas. Isto é visível na Holanda, é visível na Suécia, na Dinamarca, na Áustria, também. Estes dormitórios, muitas vezes, são utilizados pelos estudantes para eles poderem dormir lá, para terem esse acesso à educação. Essa é a solução, falta é vontade de implementação. Custa dinheiro, mas o dinheiro é uma questão de prioridades, uma pessoa tem de decidir onde gastar o dinheiro”, explica.

E reforça, “como é que uma pessoa pode ter direito à habitação se não consegue pagar um quarto na universidade onde está? Para garantir o direito à educação há que garantir o direito à habitação.” E explica como o peso do preço dos arrendamentos pode, mesmo, ser maior do que, propriamente, o preço das propinas a pagar. E conclui afirmando que “fala-se muito da redução das propinas e essas coisas todas. Neste momento, a medida das propinas é importante, mas parece-me um fait divers comparativamente a isto. O problema principal é o problema da habitação.” Quanto a esta questão, Mariana Esteves explica que só “na habitação, as famílias mais pobres gastam 40% do seu rendimento. Se tivermos um aumento dos preços da habitação, como estão agora, na ordem dos 18% — a inflação na habitação, na água, no gás, eletricidade e em outros combustíveis — vemos que qualquer aumento que impacte o orçamento destas famílias faz com que tenham de abdicar de outros bens essenciais como a alimentação que, também, está cada vez mais cara e tem níveis de inflação na ordem dos 20%”, indica.

A precariedade laboral e a precariedade laboral jovem não ficaram esquecidas e, como Mariana Esteves recordou, e já se enfatizou, 10% dos portugueses, mesmo a trabalhar, não conseguem alcançar a saída da pobreza. “Muitas vezes, são estas as pessoas que mais trabalham e têm menos valorização pelo seu trabalho, porque são trabalhos mal remunerados”. Quanto à situação dos mais jovens, complementou que “um em cada três jovens tem contratos temporários, o que quer dizer que não consegue um crédito à habitação, muito provavelmente porque não tem um contrato estável para poder pedir esse crédito. O salário mediano em Portugal é de 920 euros, o que é muito abaixo do que é razoável para podermos viver nos centros urbanos do país”, indica.

São as novas realidades laborais, também, de falta de contratação, regimes de part-time ou de recibos verdes que, segundo Mariana Esteves, permitem “contornar a lei, de forma a pagar salários menores do que o salário mínimo, por isso é que há pessoas que não recebem o salário mínimo”, relembra. Estas novas modalidades de trabalho exigem, a seu ver, “dos nossos governantes e das pessoas responsáveis por fazer legislação laboral, novas estratégias para combater a precariedade, principalmente, nos mais jovens, porque são os mais afetados”, relembra. Já Rui Maciel completa que, economicamente, “quando a quantidade de trabalho não é suficiente, quer dizer que não estão a pagar o suficiente. Se querem aumentar a quantidade oferecida de trabalho, no mercado de trabalho, é aumentarem o valor”. Indicadores que, segundo os dois economistas, vão contra a ideia geral que diz que só é pobre quem quer.

Passando pela habitação, o plano político, a pobreza em Portugal, a educação e, até, o ensino superior e a disparidade existente entre o financiamento de cursos como filosofia, por exemplo, e economia, medicina e outros que tais, a Comunidade Cultura e Arte não quis deixar em branco os dois anos do podcast “Mão Visível”, na entrevista que se segue, também ela em formato podcast, em que se exploram todos estes assuntos.

Como é habitual nos episódios do “Mão Visível”, aqui ficam as recomendações dos autores do poscast e, também, dos entrevistadores da CCA:

Mariana Esteves: “Bringing behavioral science to the White House”, de Maya Shankar 

Rui Maciel: “Como perder uma eleição”, de Luís Paixão Martins

Rui André Soares: “A Era do Nós”, de João Ferro Rodrigues

Ana Isabel Fernandes: “Cá dentro, guia para descobrir o cérebro”, de Isabel Minhós Martins, Maria Manuel Pedrosa e Madalena Matoso 

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados