“Devs”, uma reflexão sobre o determinismo e livre arbítrio

por João Fernandes,    28 Abril, 2020
“Devs”, uma reflexão sobre o determinismo e livre arbítrio

Num mundo que parece incerto, Devs defende que tudo acontece por alguma razão. Causa provoca efeito, efeito provoca causa e, portanto, nenhum acontecimento é aleatório. Com isto em mente, não sabendo se esta teoria determinista serve de conforto ou de pânico para suportar a pandemia, contudo serve para criar um argumento cativante e profundo.

Devs gira em torno de uma empresa tecnológica em São Francisco chamada Amaya. Esta designação foi dada após o falecimento da filha de Forest (CEO da empresa) que consequentemente provocou uma mudança no paradigma do negócio para o desenvolvimento de algo diferente: um computador quântico que consegue prever o futuro e ver o passado. Esta máquina é mantida em segredo, numa divisão secreta de desenvolvimento da empresa (Devs).

Criada, escrita e dirigida por Alex Garland (de Ex Machina e Annihilation), a minissérie consegue uma admirável abrangência de temas em apenas oito episódios, como o livre arbítrio, invasão de privacidade, religião, teoria do multiuniverso e teoria da simulação, entre outras. A história é rica não só pelo conjunto de pontos que alcança, mas também pela forma como se desdobra entre eles, quebrando os usuais clichés narrativos e mantendo assim um fator de imprevisibilidade. Além disso, tanto a estética dos cenários como a banda sonora se destacam, criando uma atmosfera única e misteriosa, salientando em cheio a identidade visionária de Garland.

No entanto, não se trata de uma série de ficção cientifica com reviravoltas e explicações vagas ou possivelmente confusas. É, na verdade, uma história bastante humana sobre relações e perda. Devs tem um leque de diferentes personagens que partilham diferentes tipos de amor: Lily Chan (Sonoya Mizuno) tem uma relação romântica com o Jamie (Jin Ha), Forest (Nick Offerman) tem um amor paterno pela sua filha falecida e Stewart (Stephen McKinley Henderson) tem uma forte amizade com o Lyndon (Cailee Spaeny). A dinâmica entre as personagens funciona bem, uma vez que o elenco é spot on. Nick Offerman, conhecido principalmente por papéis de comédia (como Parks and Recreation), realiza uma performance magnética e quase poética de um empreendedor traumatizado. Igualmente bem, Kenton (interpretado por Zach Grenier) é o chefe de segurança de Amaya, e uma das personagens mais ameaçadoras e terríveis que irão ver nos próximos tempos.

As personagens em Devs são distintas e Alex Garland tem esta capacidade de criar sujeitos que fogem a estereótipos, como já vimos nos seus trabalhos anteriores. Lily, por exemplo, não é a típica protagonista fácil de decifrar, sendo até estranha e pouco expressiva na maior parte das vezes. Uma maneira de ser que torna a sua personagem mais real, mais humana.

Apesar disso, a visão de Alex é clara. Devs trata-se de uma viagem gratificante a um mundo distópico que lida com várias questões existenciais e morais. Se tudo é predeterminado o que é que isso significa para o nosso livre arbítrio? Se não temos liberdade sobre as nossas escolhas, temos responsabilidade nas nossas ações? Quão verdadeiro é o nosso amor por alguém se tudo é programado? Estas e outras questões são trazidas ao longo da série através de simbolismos e até mesmo poesia.

Repleta de possíveis interpretações, encontramos novos significados e novas perguntas à medida que nos quisermos questionar também. Devs desafia o espectador a reflectir sobre a realidade e o que significa, de facto, “viver”, através de um thriller de ficção científica com uma produção notável e detalhada. Será que “a vida é apenas algo que assistimos a desdobrar”? Não há grande certeza quanto esta citação de Forest, mas neste momento que vivemos dá essa sensação.

 

 

 

 

 

 

 

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