“The Last of Us” e o peso da adaptação

por Miguel Rico,    22 Janeiro, 2023
“The Last of Us” e o peso da adaptação
Série “The Last of Us” / HBO
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Este artigo pode conter spoilers.

A série norte-americana “The Last of Us” (2023), um drama pós-apocalíptico da autoria de Craig Mazin e Neil Druckmann, é a nova aposta da HBO Max. A adaptação do célebre videojogo da Naughty Dog, com assinatura de Druckmann, estreou na plataforma de streaming dia 15 de Janeiro e já conquistou o lugar de segunda maior estreia na plataforma, apenas superada por “House of the Dragon”, contrariando o velho estigma de adaptações de videojogos ao cinema e televisão.

A Fidelidade ao videojogo

A fidelidade ao texto original constitui um dos elementos mais pertinentes e discutidos no estudo das adaptações de objetos de ficção, estejamos a referir-nos a uma adaptação cinematográfica de uma obra literária, a um remake, ou mesmo à adaptação de um videojogo. A fidelidade, no sentido de aproximação ao texto original, constitui, para uma segura maioria dos fãs, uma prioridade. 

Recentemente, a New Yorker lançou um artigo cujo título impõe uma questão que tem vindo a inquietar os estudiosos dos chamados “adaptation studies” nas últimas décadas: “Can a Video Game Be Prestige TV?”. A carga teórica implicada nesta questão, aparentemente simples, é absolutamente avassaladora. Em causa encontram-se conceitos no âmbito de crítica mediática e de natureza académica como “Quality TV” ou “Complex TV”, interrogações sobre intertextualidade e transposição intersemiótica, entre tantas outras considerações teóricas, formais e filosóficas. 

Ainda que uma esmagadora percentagem do quadro audiovisual contemporâneo seja constituído por adaptações, o processo de transposição de um videojogo a um meio audiovisual como o cinema ou a televisão não deixa de ser, segundo o nosso melhor vídeo-ensaísta, J.B. Martins, “um relacionamento complicado” (ver vídeo abaixo).

O fracasso das adaptações de videojogos entre a crítica e o público pode dever-se à imprecisão de proximidade ao um texto original, no entanto, é igualmente pertinente considerar que pode ser resultado da fraca capacidade de adaptação, ou melhor, à pouca adaptabilidade do próprio texto a um meio distinto. A transposição de um objeto de ficção é, em parte, um processo intersemiótico. Transpor signos (significado e significante) a uma linguagem completamente distinta é, possivelmente, o maior desafio deste processo, pois objetos diferentes implicam linguagens distintas. Ainda que os videojogos possuam uma forte aproximação, ou integrem, o meio audiovisual, a agência do jogador é um fator decisivo na experiência de determinada estória. 

Nos videojogos, a adaptação enquanto “palimpsesto”, onde os traços mais fundamentais de um trabalho original transpareçam para a sua adaptação, mas não constituem o mote narrativo central, pode ser a melhor opção, no entanto dá-se o risco de desapontar a fanbase, algo particularmente problemático num meio tão… caloroso. 

É importante que os criadores, realizadores e argumentistas recorram à adaptação não enquanto método, mas enquanto meio. Possuir em conta esta premissa foi, precisamente, o fator central que elevou a adaptação de “The Last of Us” à posição de segunda melhor estreia da plataforma de streaming da HBO. 

Ao adaptar é pertinente ter como prioridade a adaptação em si e não a aproximação ao texto original, sendo a fidelidade total algo inalcançável e frequentemente despropositado. O texto base deve ser, evidentemente, celebrado, mencionado e encontrar-se sistematicamente presente, no entanto, para que uma adaptação resulte, a proposta não deve ser uma transposição direta, mas antes a soma da mensagem original às potencialidades do novo meio. “The Last of Us” não falha neste aspeto (pelo menos no primeiro episódio) ao reenquadrar a tão repetida frase de Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”. 

Mecanismos Narrativos

Muito do engenho narrativo do videojogo advém de mecanismos familiares à escrita de argumento para cinema e televisão. Neil Druckmann, o criador do jogo e, agora, co-produtor e argumentista da série, possuí um vasto entendimento de como edificar uma narrativa intrigante e emocional, algo que não passa despercebido e, de certa forma, facilita o processo de transposição.

A forma como absorvemos narrativas ficcionais tem vindo a alterar-se profundamente em resposta ao rápido progresso científico, social, artístico, cultural e tecnológico. Como tal, também o exercício da narrativa tem vindo a aprimorar-se e a reajustar-se a novos meios, entre os quais o amplo universo dos videojogos. 

A estrutura do enredo em narrativas interativas constitui, à semelhança de outros meios, um papel fulcral para o desenvolvimento dramático da estória. Os modelos de estrutura narrativa utilizados no processo de escrita para videojogos são, na sua maioria, os mesmos exemplares da escrita de argumento cinematográfico (e.g. Aristóteles, Campbell, Vogler, Field, Mckee). No entanto, na esquematização de um enredo para narrativas interativas acresce aquilo que podemos designar como “fator escolha”. O jogador, quase sempre no papel de protagonista, é o agente desencadeador central da ação narrativa e este torna-se fator determinante para o envolver e compenetrar no enredo. Num videojogo, ações possuem “consequências” e, desta forma, a resposta emocional ao desenlace do enredo é enaltecido pela agência, enquanto numa adaptação de um videojogo a um filme ou série, é fundamental arranjar estratégias para despertar na audiência uma resposta emocional semelhante perante os pontos de viragem da narrativa.

Durante o processo de escrita, Druckmann recorre a este modo de espectador-agente para compenetrar os jogadores através de estratégias de storytelling que desafiam o seu compasso moral. Na série, os turning points da narrativa mantém-se. O incidente desencadeador permanece a rápida disseminação de um vírus aterrador, pontuado pela morte de Sarah, a filha do protagonista. Em contraste com o videojogo, é dada uma ênfase a esta personagem, “It was important for us to present the audience with a Sarah we tought we could follow for the rest of the series. She’s almost the protagonist”, refere o realizador Craig Mazin no making-of do primeiro episódio, apresentado no canal de Youtube da HBO Max. 

Conflito Moral, mudança e arcos de transformação das personagens

Story driven-games ou narrative-based games são termos generalistas que descrevem um tipo de videojogo que mantém o interesse do jogador através da construção narrativa. Este tipo de jogo é caracterizado pelo destaque de elementos dramáticos como o enredo, as personagens, storyworld, subtramas, diálogos etc. A obra de Druckmann não é o convencional shooter a zombies desmiolados, mas, em certa medida, representa, igualmente, algo além do típico story-driven game. Numa entrevista ao site Game Beat, Druckmann referiu, inclusivamente, considerar “The Last of Us” uma estória “coming-of-age”, na qual Ellie, cresce e se adapta ao meio e às circunstâncias através de um arco de personagem trabalhado com minúcia. 

A profundidade e a dimensão narrativa propostas por “The Last of Us” não se assemelham a tantos outros videojogos cuja ação central se desenrola num cenário pós-apocalíptico. As personagens são tridimensionais e apresentam um arco de transformação que nos leva a desenvolver especial empatia por elas. O enredo, por sua vez, encontra-se repleto de marcas ideológicas e objetos de escrutínio sociológico e filosófico. O apelo à causa, a desordeira procura pelo “bem maior”, o pensamento crítico e o sentido de justiça que devem prevalecer acima de tudo são apenas algumas das pontuações temáticas de uma narrativa extraordinariamente bem estruturada.    

Na série, estes elementos prevalecem e são enaltecidos pela comunicação e gramática audiovisual. A fotografia é exemplar, em direção e execução. A performance dos atores exímia, com especial destaque ao trabalho de Pedro Pascal, no papel de Joel e Bella Ramsey, que protagoniza Ellie. Os efeitos visuais e a caracterização das personagens cumprem com o rigor apresentado no videojogo, especialmente no detalhe dos infetados. 

“Stories are the creative conversion of life itself into a more powerful, clearer, more meaningful experience. They are the currency of human contact.”

Robert Mckee

Todo o enredo do jogo e, agora, da promissora série, possuí um grande sentido de humanidade. A estória integra os ingredientes perfeitos para uma série de sucesso ao transcender a sua premissa, “When you’re lost in the darkness, look for the light. Save who you can save”, e, desta forma, alcançar um estado permanente de conflito filosófico. 

As crenças do protagonista, Joel, mudam radicalmente vinte anos após a morte da sua filha e, como tal, também as suas ações se adaptam ao novo contexto que o rodeia. Bebe e toma comprimidos para cooperar com o trauma, torna-se imprudente e implacável, um pouco à semelhança do protagonista da mítica série Breaking Bad, Walter White (Bryan Cranston), após ser diagnosticado com cancro do pulmão inoperável. A sua vida ganha um novo propósito, os seus objetivos mudam e, consequentemente, as suas ações transformam-se e moldam um “novo eu”. A mudança é o conceito-chave para a construção de um protagonista relevante. 

“The only thing one really knows about human nature is that it changes. Change is the one quality we can predicate of it.”

Oscar Wilde em “The Soul of Man Under Socialism”

O ser humano possuí uma necessidade imperiosa em ver e dar continuidade à ação, seja ela qual for. O pensador francês Gilles Deleuze refletia o cinema como uma extensão da perceção humana. Na sua obra “A Imagem-Movimento: Cinema 1”, o filósofo refere que a disrupção de qualquer forma de movimento poderia constituir o agente responsável pela compenetração do espectador, algo que pode acontecer a um nível físico (quando o movimento de determinada performance é interrompido), como no âmbito narrativo (disrupção causada pelo incidente desencadeador). Durante as primeiras sequências de “The Last of Us”, tanto na série, como no videojogo, acompanhamos o quotidiano de Joel e Sarah, um dia-a-dia normal, pontuado por premonições e sinais de alerta. Os militares começam a deslocar-se, as notícias lançam avisos. A determinado momento, tudo muda, e as personagens percorrem aquilo que o antropólogo Joseph Campbell definiu por limiar entre o seu “mundo vulgar” e um “mundo desconhecido”. Vinte anos depois, Joel está completamente adaptado ao “mundo desconhecido” e, agora, o espectador anseia em ver a ordem inicial restaurada enquanto acompanha, concomitantemente, o processo de mudança do protagonista. 

O carácter e a identidade de Joel, construídos a partir de um contexto profundamente emotivo, encontram-se de tal forma trabalhados que, mesmo em “The Last of Us 2”, conhecido por dividir a fanbase do videojogo, os jogadores mantêm o apreço pela personagem. 

Lajos Egri, dramaturgo, académico húngaro e autor da obra “The Art of Dramatic Writing” (1946), sugere que as personagens e os protagonistas são o verdadeiro material de trabalho no ofício de um dramaturgo ou argumentista e não, necessariamente, a palavra em si. O verdadeiro interesse de um espectador por um objeto de ficção encontra-se em ver personagens a agir e a interagir.

O conceito de “The Last of Us” não é particularmente original, sendo que existem inúmeras reproduções de protagonistas enclausurados em cenários pós-apocalípticos, no entanto a dinâmica e o arco de transformação das personagens é algo verdadeiramente singular. 

A última das adaptações

Nesta estória, o vírus é apenas começo. O contexto que sucede, marcado pelo estado tirânico, quase totalitário, de permanente conflito entre fações com diferentes ideologias e modelos de sociedade, tornam o enredo de “The Last of Us” uma metáfora bem mais perturbadora, intensa e memorável do que inicialmente aparenta. Encontra-se, representado nesta narrativa, um medo presente no inconsciente nosso coletivo e agora reforçado pelo recente contexto pós-pandemia, algo que Albert Camus reforça na sua obra “A Peste” (1947).

“The Last of Us” é, à semelhança de “A Peste”, uma alegoria ao “absurdo”. Joel enfrenta a exaustiva demanda de restabelecer a ordem na sua vida e proteger Ellie de um mundo descontrolado. Possuí, desta forma, uma existência de Sísifo, à semelhança das fações radicais e fundamentalistas que imperam a geografia do videojogo (e série). A redenção que o protagonista procura pode ser concedida, somente, através da aceitação e do luto, algo que Joel rejeita quase inconscientemente e o torna, inevitavelmente, um herói trágico, que luta contra a rejeição completa da humanidade, representada tanto pelos infetados, como pelos restantes antagonistas.

O enredo de “The Last of Us” encontra-se no topo da cadeia intertextual e talvez por isso constitua o modelo perfeito para adaptação. A sua mensagem está condenada a ser uma narrativa permanentemente revisitada, precisamente por constituir uma estória presente na nossa história, coletiva e individual. 

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