Joker de Christopher Nolan começou em Victor Hugo e acabou em Francis Bacon
“You have to look to art to teach you and guide you in terms of expressing things beyond dialogue”
Christopher Nolan
Com um novo filme no horizonte de Christopher Nolan, Dunkirk, é normal surgir uma retrospectiva e uma análise do percurso deste realizador que causou impacto e conquistou um grande público nos últimos tempos. Em geral, quando se aborda a sua carreira, o foco principal costuma recair na sua capacidade de contar histórias de uma forma inteligente e ao mesmo tempo inovar na sua metodologia de trabalho, sempre em busca de um realismo, tanto nas gravações como na experiência que este deseja para a experiência do público.
De uma forma subjectiva, podemos descrever Christopher Nolan como um realizador que gosta de explorar ideias. Em diversas entrevistas, já admitiu que a memória e os sonhos são algo que o fascina e continua a despertar interesse para o seu trabalho. Estas ideias acabam por ganhar o protagonismo dos seus filmes, muitas vezes colocando as personagens em segundo plano. A título de exemplo, em Inception o mundo ficou maravilhado com a ideia de sonhos dentro de sonhos e na possibilidade que isso permitiria ao ser humano de explorar o tempo. Por outro lado, Cobb, a personagem principal, não figura num leque de personagens memoráveis do mundo do cinema, foi a ideia que ganhou o protagonismo.
No entanto, na Trilogia de Batman, as personagens tornam-se muito mais importantes. Este mundo da DC Comics, que existe desde 1939, continua a ser um sucesso devido ao carisma e particularidades das suas personagens. Embora o herói seja Batman, o seu principal vilão, Joker, não fica num patamar inferior em termos de visibilidade e carisma. Desde as bandas desenhas até aos filmes, este já foi alvo de diversas representações. Por norma, costuma ser uma personagem que apesar de estar do lado do mau, acaba por conquistar igualmente a simpatia de muitas pessoas. Com um sorriso vermelho permanente no rosto, a inspiração para a personagem veio da literatura: de uma personagem do livro L’Homme qui rit de Victor Hugo, publicado em 1869.
Sinopse do livro:
Em L’Homme qui rit , ou em português O homem que ri, temos outra personagem marcante de Victor Hugo: Gwynplaine, o homem cujo rosto carrega ao mesmo tempo as dimensões trágicas e cómicas da existência.
Gwynplaine é submetido, ainda criança, a uma cirurgia que desfigura o seu rosto, deixando nele uma cicatriz que denota um sorriso constante. Abandonado, encontra no seu caminho Dea, uma menina cega que acabara de perder a mãe, vítima do rigoroso inverno. As duas crianças cruzam o caminho de Ursus, um artista saltimbanco de coração generoso que decide abrigá-los. Juntos tornam-se numa família e passam a apresentar-se em espectáculos populares para ganhar a vida, facto que acaba por desencadear uma série de conflitos e dramas.
Em 2008, quando saiu o filme The Dark Knight, grande parte do seu sucesso veio precisamente da personagem Joker, imortalmente representada por Heath Ledger.
Nolan tinha vontade de apresentar um Joker mais realista, não como um simples tolo, mas como um psicopata, um homem que “só quer ver o mundo a arder” como diria Alfred; alguém que procura o caos porque as leis são aborrecidas. A maquilhagem, cabelo e indumentária também tinham de acompanhar este esforço. Sendo assim, o realizador levou para o departamento artístico do filme, um livro com pinturas de Francis Bacon, o seu artista preferido. Os quadros deste pintor destacam-se pelas caras desvirtuadas, numa tentativa de procurar uma expressão forte e violenta da dor. Na sua obra encontramos rostos carregados de emoção, na maioria das vezes distorcidos e desfeitos. Como grande artista que foi, as suas obras são inconfundíveis.
Em entrevista à Tate, Nolan disse ser admirador da “atmosfera” que existe nos seus quadros e na maneira como este distorce os rostos fazendo uma ligação com a memória. Algo que o faz lembrar das limitações da existência humana. E ao olharmos para a maquilhagem de Joker durante o filme, podemos reparar que tanto o vermelho dos lábios como o preto nos olhos não estão milimétricos no desenho do seu perímetro. Ao invés, reparamos que existe uma distorção, uma sensação de mistura, quase como se estivesse “mal pintado”. A equipa de maquilhagem alcançou na cara de Heath Ledger uma semelhança a uma tela que podia ter sido pintada por Bacon. Assim, Joker aparece como um homem torturado, perturbado e perdido no seu próprio mundo. O realizador destaca ainda capacidade do pintor em remover nitidez e precisão visual, o que acaba por nos retirar informação (“the more he removes, the less he tells you”). Alguns destes quadros contêm espaços negros como fundo, algo no qual Nolan se revê. Isto porque, quando se está a criar um mundo artístico, fica sempre uma inevitável distância entre o que se sonha e o que se consegue expressar de facto. Daí, é preciso colocar essas limitações ao serviço da ideia e não meras imperfeições visíveis, algo que estes buracos negros conseguem superar de forma brilhante na sua visão. O artista revela capacidade de colocar as suas dificuldades de expressão a seu favor. Curiosamente, uma das bandas preferidas de Nolan é Radiohead que também conta com muita destas características nas suas músicas.
Por tudo isto, também atrás de Joker existe um buraco negro: o seu passado. Nada é revelado, não sabemos o que o tornou assim, os polícias não descobrem a sua identificação verdadeira e nunca chegamos a saber ao certo a origem das suas cicatrizes, uma vez que Joker nos baralha constantemente ao contar diversas histórias sobre as mesmas durante o filme.