Entrevista. Nuno Lopes: “Ainda há uma distância muito grande entre o público português e a cultura portuguesa”
Nuno Lopes é um dos grandes actores portugueses de sempre. Afirmá-lo nunca será um exercício de bajulação, mas sim de justiça, devido à sua incrível versatilidade já vista em registos dramáticos com os filmes Alice ou São Jorge, em registos humorísticos para as séries para TV como Os Contemporâneos, O Último a Sair ou Sara, passando pelo teatro, tendo, nos últimos anos, participado nas peças A Noite da Iguana (Tennesse Williams) e Actores, entre muitos outros. A par da representação, Nuno Lopes é também conhecido como DJ.
No último ano, Nuno Lopes passou seis meses em Espanha a trabalhar na série White Lines, escrita por Álex Pina, criador da série A Casa de Papel, e com a equipa que produziu a série The Crown, e foi no seguimento deste trabalho que falámos com o actor.
Estive a ver a tua entrevista à RTP na semana passada e a páginas tantas dizes que nunca quiseste ter uma carreira internacional. Mas aos 21 anos foste para o Brasil e nos últimos anos tens feito várias coisas no estrangeiro, como filmes em França e agora esta série White Lines. A vida tem-te trocado um pouco as voltas, não? É fruto da circunstância?
É fruto da circunstância. Ou seja, eu não tenho nada contra o percurso internacional, nem contra nem a favor. Para mim, é mais fácil representar na língua portuguesa e, portanto, se eu pudesse estaria a fazer os projetos que eu tanto amo fazer e para os quais estou a ser constantemente desafiado em Portugal. Mas, por exemplo, filmar é muito difícil. A cultura tem muito pouco dinheiro do Estado e investe pouco em cultura em Portugal. Filmes, por exemplo, só se fazem 10 por ano em Portugal. É impossível, para um actor, ter um percurso artístico no cinema num país onde só se fazem 10 filmes por ano. Se entrares num filme por ano, já és um dos actores que mais trabalhou em cinema em Portugal desde sempre. Como eu quero filmar, isto obriga a ter de sair do país.
Acredito que seja bastante desafiante representar noutra língua…
Sim, é muito complicado porque não tens uma relação direta com as palavras que dizes. Se eu disser “pai” em português, eu já disse “pai” milhões de vezes com milhões de emoções diferentes, e isto é uma ligação directa ao meu lado emocional. Quando eu digo “father” ou “padre”, não quer dizer nada, é como dizer cadeira ou mesa. Portanto, não existe essa conexão. Para um actor, é muito difícil ter de inventar uma conexão emocional que não existe nas palavras, digamos assim.
O mesmo será para fazer humor, acredito. Esta série é bastante humorística também, muito marcada pelo Boxer (a personagem interpretada por Nuno Lopes) e pelo Marcus (Daniel Mays).
Acho que uma das grandes mais-valias da série é justamente a forma como é única. É muito difícil defini-la, como é óbvio, é uma série de crime, em que se está a tentar descobrir quem matou quem. Quase uma espécie de Poirot contemporâneo (risos), sendo que a personagem principal não é um detective, é a história de uma irmã que vai descobrir quem é que matou o irmão há 20 anos em Ibiza. Mas na verdade, a série é sobre uma inglesa bibliotecária que viveu uma vida em Manchester e que, de repente, se vê em Ibiza no mundo da música electrónica, das drogas e das orgias. É esse conflito que traz uma comédia enorme à série. De certa maneira é uma série de acção, porque se passam muitas coisas e tem muita acção dentro da próprio série, é uma tragédia, É um drama policial, é uma série de crime, mas também é uma série de comédia. E isso faz com que a série seja muito única e até difícil defini-la.
Na entrevista à RTP disseste também com o guião não era fechado. Os actores só tinham cinco episódios de antemão. As personagens vão crescendo à medida em que vão sendo gravados os episódios ou é algo estanque?
Nós já tínhamos os primeiros cinco episódios e mesmo os primeiros cinco foram tendo alterações à medida que os actores foram sendo escolhidos. Os argumentistas escrevem sobre um DJ que toque em Ibiza, com estas características, mas, de repente, aparece um actor que é gordo e como é óbvio que há re-escrita a fazer e de assumir uma característica do personagem que não existia antes – este é um exemplo parvo, mas é só para se perceber. Os próprios primeiros cinco episódios que já estavam escritos foram alterados consoante as características dos actores que tinham à frente, e da química entre os actores. Os episódios seguintes chegaram já nós tínhamos filmado 3-4 episódios e os argumentistas iam vendo sempre o que nós estávamos a filmar. Por isso, eu parto do princípio que tudo que nós fomos fazendo teve influência na forma como eles escreveram a partir daí. Se há uma personagem, por exemplo, que achas engraçada como espectador, nesse momento em que o argumentista está a ser telespectador da série, como é óbvio, vai querer que essa personagem exista mais, porque tens vontade de o ver como qualquer outra pessoa em casa. Imagino que, devido ao facto de a série estar a ser escrita enquanto estava a ser filmada, tenham existido muitas alterações ao próprio guião.
E até o desfecho poderia ter sido diferente, a partir do próprio desenvolvimento de uma ou outra personagem?
É uma série de crime. Quem matou, segundo eu sei, nunca foi alterado. Já sabia quem matava no início e nunca foi alterado até ao fim. Até porque essa foi a única pergunta que nós, actores, fizemos quando começamos a filmar (risos). Foi “eu não sei o que vou fazer, mas preciso saber se fui eu que matei ou não” (risos).
Quando eu soube que o guião era aberto foi exatamente essa a dúvida que eu fiquei…
Todos os actores fizeram essa pergunta ao Álex, todos. Mas o guião foi sendo sempre alterado na maneira como matou, o que fez, o que levou matar, isso foi sendo sempre muito alterado.
Na personagem que representas, além de seres um pinga amor, é também um pouco a personagem do Pulp Fiction que vai resolvendo os sarilhos todos…
É verdade.
Como é ser o Boxer na série e sê-lo durante seis meses, que foi a duração da rodagem da série?
É sempre duro quando se tem um personagem durante tanto tempo, e viver com um personagem durante tanto tempo. Tem um lado duro, porque depois é muito difícil sair dele, mas tem um lado maravilhoso que é ires descobrindo cada vez mais o personagem, e vai sendo cada vez mais fácil entrar dentro daquele universo dele. Às tantas, durante uns meses, não fui o Boxer, mas estive bastante próximo dele. Isso faz com que o trabalho seja mais profundo, mas, ao mesmo tempo, mais duro de deixar. Mas ser o Boxer foi uma alegria, é um personagem que, como quase todos os personagens do Álex Pina, tem vários lados. Quase todos os personagens do Álex Pina têm um lado b, um lado c e às vezes até um lado d. Isso é uma alegria porque é o que eu acho que é mais interessante no Boxer, como na maior parte das personagens da série, e na maneira como cada uma se vai desconstruindo ao longo da série e como a primeira ideia que tu tens de um personagem vai mudando à medida que a série vai evoluindo. E tal como na vida, percebemos que, como as pessoas, não se deve julgar o livro pela capa.
Percebemos ali a certa altura que o Boxer é português, é o Duarte Silva. Mas isso não influencia de maneira alguma a narrativa, assim como os outros personagens ingleses, espanhóis, também não influenciam a narrativa. Achas que estamos a assistir a um pólo de ficção multicultural na Europa, muito proporcionado pela Netflix e pelas criações da Netflix, o que pode fazer com que os actores de vários países da Europa se juntem e colaborem?
Para já, o facto de ele chamar Duarte Silva e ser português tem que ver com o facto de eu ter sido escolhido para o papel, porque à partida não era para ser português. Era para ser espanhol, houve uma altura que acho que era para ser israelita, por isso foi mudando de nacionalidade… Para veres, eu sei que na fase final o papel estava entre mim e um argentino. Essa característica foi acrescentada depois de ter sido escolhido o actor neste caso eu. Acho que a Netflix tem uma importância fundamental nesta globalização dos actores. O facto de séries como “A Casa de Papel”, que é um perfeito exemplo disso, que foi feita para Espanha para passar em Espanha e, eventualmente, no mercado latino-americano, ter sido comprada pela Netflix que a transformou num fenómeno mundial fez com que aqueles actores sejam agora conhecidos mundialmente. E fez com que o Álex Pina, que estava a escrever só para Espanha, esteja agora a escrever White Lines para o mundo todo.
A Netflix tem uma grande importância na maneira como nós começamos a não ter preconceitos de ouvir coisas noutras línguas e não só o inglês – há séries do norte da Europa na Netflix. E, nesse sentido, isso faz com que seja uma das grandes responsáveis na quebra das fronteiras. E acho que essa quebra das fronteiras vai acontecer não só ao nível europeu, mas também ao nível mundial. A Netflix é uma das responsáveis por isso e acho que temos todos a ganhar. Porque há pessoas maravilhosas a trabalhar em todo o mundo e, muitas vezes, estamos a conhecer actores e realizadores de uma nacionalidade só porque falam inglês, assim como, muitas vezes, não estamos a escolher a melhor pessoa para o papel, estamos a escolher a melhor pessoa dentro de um universo de uma língua, o que faz com que o nosso conhecimento do que o que poderia ser aquele personagem seja muito limitado. Acho maravilhoso que agora se possa fazer isso, e mesmo nesta série, representar com actores da Finlândia, da Roménia, de Inglaterra, e saber que são as pessoas ideais para fazer aquele personagem, independentemente do país de origem.
Nós tivemos produções belíssimas nos últimos anos. A título de exemplo, refiro algumas em que participaste, como o Sul ou o Sara. Há uma certa mágoa de não haver o reconhecimento por parte do público, o que não aconteceria eventualmente se passasse na Netflix, por exemplo?
Eu acho que ainda há uma distância muito grande entre o público português e a cultura portuguesa. Há o problema de o nosso Estado não apoiar a cultura. A cultura é uma classe que está a viver mal e precária desde sempre e não temos direito sequer a 0,5% do orçamento, ou seja, arredondando é zero. E é esse o valor que o nosso Governo dá à cultura. E é muito triste um país que tem 0,5% do orçamento para a cultura, porque a cultura é o que nos define e é um dever do Estado. Há uma parte do problema que é do Estado, mas a outra parte do problema é o facto de as pessoas não darem por isso. Porque eu acredito que um país preocupado com a cultura, e que exige que a cultura seja bem tratada, vai gerar um Governo que trate melhor a cultura. Portanto, eu acho que parte do problema não é só do governo, mas também é das pessoas. Acho que ainda há uma grande distância entre o público português e as séries, filmes e produções que se fazem em Portugal. No teatro menos, mas no cinema sente-se muito. No cinema e em alguma arte. E é muito triste perceberes que, de repente, há coisas que tu fazes que são muito mais reconhecidas lá fora do que no teu próprio país, mas acho que isto tem que ver com a educação, tem que ver com o facto de sermos um país que não dá importância que devia dar à cultura, não sermos um país muito apaixonado por si próprio e pela sua própria cultura. Isto faz com que as coisas tenham tendência a não avançar muito.
O Boxer é um faz-tudo numa discoteca. Também és DJ, estive a ver o set no Lux num cenário um pouco distópico. Acredito que a falta de público mexa animicamente com alguém que além de actor de teatro, é também DJ…
Sim, tocar no Lux foi maravilhoso. O convite e ter oportunidade de, certa maneira, conseguir ter um papel ativo para tentar animar um pouco a vida das pessoas que estão confinadas em casa neste momento foi muito agradável. Mas ao mesmo tempo foi super estranho. Eu não gravo sequer sets, nunca tinha feito isto, que é estar a tocar sem ninguém à frente. Foi muito estranho e senti muita falta das pessoas, tenho recebido imensas mensagens de carinho e foi maravilhoso sentir a repercussão depois. No momento, foi agradável saber que estava, de certa maneira, a ajudar a tornar a vida das pessoas mais divertida, mas foi muito solitário ao mesmo tempo. Estranho! Mas é estranho como a vida que vivemos agora, é um momento triste da nossa História. Espero que melhores dias cheguem rapidamente, porque acho que estamos todos a precisar de nos juntar. Uma das coisas que eu fico contente de esta série sair agora é porque acho que esta série é exatamente o oposto do que estamos a viver. De certa maneira, não podia haver melhor altura para a ver porque acho que há qualquer coisa de escape e que nos faz sair deste mau momento que estamos a viver. Porque é exatamente o oposto, as pessoas tocam-se, as pessoas beijam-se, saem à noite, vão para a praia. É o oposto do que estamos a viver.