“Restos do Vento”, de Tiago Guedes: mostra a culpa sem rosto e a inocência sem medos

por Miguel Rico,    9 Outubro, 2022
“Restos do Vento”, de Tiago Guedes: mostra a culpa sem rosto e a inocência sem medos
“Restos do Vento”, filme de Tiago Guedes
PUB

Este artigo pode conter spoilers.

Numa vila do interior do país, um ritual de passagem, assente numa tradição semi-pagã, deixa mazelas insanáveis num grupo de jovens que, 25 anos depois, se volta a reencontrar. Os rancores do passado vêm à tona, há um crime por resolver e uma tragédia assola a população local.

Filmado em Meimão, aldeia do concelho de Penamacor, “Restos do Vento” é um autêntico e subtil conto de advertência ao rancor, à tradição, à masculinidade tóxica e à retaliação. É uma película dramática que mostra a culpa sem rosto e a inocência sem medos, um ensaio sobre a violência e ilusão de poder, mas, acima de tudo e a meu entender, é um filme sobre consequências, que envolta “o errado e o certo”, o passado e o presente, a injustiça e a impunidade. 

“Restos do Vento”, filme de Tiago Guedes

O elenco reúne alguns dos suspeitos do costume no trabalho de Tiago Guedes: João Pedro Vaz, Tonan Quito, Maria João Pinho, Gonçalo Waddington, com especial destaque às performances de Nuno Lopes e Albano Jerónimo. 

“Violence can be justifiable, but it never will be legitimate. Its justification loses in plausibility the farther its intended end recedes into the future.”

Hannah Arendt, Sobre a Violência

O ano é 1995, “Vem o vento do deserto, misturar o errado e o certo, vem o vento, sopra forte, não é ele que traz a morte.” são as palavras proferidas por um grupo de jovens encapuçados, vestidos com trajes típicos de tradição semi-pagã, antes de espancar Laureano (Benjamim Barroso), provado ser, até ali, o único rapaz com o mínimo de escrúpulos do grupo. Percebemos do que se trata a azáfama quando, momentos antes, Arnaldo (Tonan Quito), o taberneiro local, chama os rapazes ao seu estabelecimento para lhes troçar os sexos e lhes dar umas vergastadas. Trata-se de um rito de passagem, uma praxe aos que se vão “tornar homens”. Não sabemos o que é mais patológico, se a atitude do velho Arnaldo, se a apatia e banalização da situação por parte das testemunhas presentes. 

“Restos do Vento”, filme de Tiago Guedes

Vinte e cinco anos depois, reencontramos Laureano (agora Albano Jerónimo), no papel de “maluquinho da aldeia”, vive precária e despreocupadamente, num casebre junto à ribeira, enquanto todos os outros continuaram a sua vida, arranjaram trabalho, constituíram família e permaneceram impunes ao castigo do espancamento. 

Assistimos, com a calma que só o interior rural pode oferecer, ao quotidiano de Laureano que, acompanhado pela sua matilha de cães de rua, percorre a vila a pé, na esperança de que um local lhe arranje mais “um cigarrinho”. Conhecemos, também, Samuel (Nuno Lopes), gerente do matadouro local e pai de Pedro, adolescente inconsequente que, a par com o seu grupo de amigos arruaceiros, parecem tornar-se os novos recetáculos da violência outrora folegada, que vai e vem, conforme o rumo do vento. Somos, ainda, apresentados a Paulo (João Pedro Vaz), agora GNR e à sua esposa Judite (Isabel Abreu), a única aliada de Laureano. 

“Restos do Vento”, filme de Tiago Guedes

O argumento é assinado pela colaboração entre Tiago Guedes e Tiago Gomes Rodrigues, dupla célebre que nos trouxe Alegrias e “Tristezas na Vida das Girafas” (2019) e “A Herdade” (2019). O enredo leva o seu tempo até ao trágico incidente desencadeador e a partir daí instala-se um autêntico ensaio sobre o luto e à violência, mote central da narrativa.

“Restos do Vento” aborda interrogações que têm vindo a inquietar as grandes mentes da filosofia e da ética: “o que justifica a violência e a agressividade?”, “são a violência e a maldade indissociáveis?”, “que relação mantém a violência com a ilusão de poder?”, “o que leva à banalização do mal?”. Questionam-se, ainda, as hierarquias, a impulsividade, o falso sentido de poder e domínio, levando-nos a concluir, à semelhança de Hannah Arendt, que existem inúmeros motivos para justificar a violência, mas nenhum para legitimá-la.  No decorrer do filme são, ainda, explorados diferentes graus e tipos de abuso e agressividade, que tal como brisas ou vendavais, circulam num espírito tempestuoso que se perpétua de geração em geração, camuflado pela banalização da violência e da misoginia e encoberto por um sentimento de impunidade geral, cíclico, como os movimentos das eólicas. 

“Restos do Vento”, filme de Tiago Guedes

Numa primeira análise, mais superficial, algumas das personagens podem passar como bidimensionais, no entanto, esta particularidade parece-me intencional, na medida em que nos é fornecido um vislumbre daquilo que constitui o quotidiano rural, um espaço onde apenas podemos adivinhar o que cada pessoa sente por lhes conhecermos o contexto. 

A relação com muitas personagens é mantida à distância e, neste sentido, o realismo exacerbado é comprometido em função do bom drama.  Ao olharmos atentamente para as expressões dos atores e pontuações temáticas no enredo, observamos que a dupla Guedes/Rodrigues nos pinta um retrato à autenticidade humana e o que pode parecer uma caricatura rapidamente se transforma numa ode ao luto e num exame fraturante à tríade “comunidade, masculinidade e impunidade”. 

Ainda que todo o elenco faça um trabalho absolutamente brilhante, nunca são suficientes os elogios à performance de Albano Jerónimo, sublime e inigualável, transmite-nos a inocência, a ternura e a bondade de Laureano e traz profundidade a uma personagem com poucas preocupações, além de “arranjar cigarrinhos”, claro. 

Na ótica técnico-formal, Guedes apresenta-nos um trabalho exemplar de encenaçãoe blocking logo na primeira cena, através de um plano-sequência hand-held poderosíssimo. Torna-se evidente a evolução que existe no seu trabalho, que desde “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019), “Coisa Ruim” (2006), “A Herdade” (2019) à série “Glória” (2021), não deixa de surpreender pela forma como utiliza a linguagem audiovisual. Ainda que pareça ter atingido a sua melhor forma, o realizador continua a testar práticas e exercitar novas técnicas cinematográficas. Em “Restos do Vento”, existe uma forte experimentação com o ritmo, onde o compasso narrativo estabelece uma forte relação com a montagem, dando um metro bastante próprio à estória, o que perdoa algum do tempo de exposição excessivo. 

É pertinente referir que cada cena se encontra repleta de motifes altamente alegóricos (vento, cães, aguardentes, máscaras, eólicas), que enriquecem a mis en scène e nos ajudam a fazer sentido de um filme que não revela tudo à primeira exibição. 

“Restos do Vento” é um filme que responde a quem procura compreendê-lo com sensibilidade, uma raridade contemporânea. Tiago Guedes é um dos nossos melhores realizadores, cujo trabalho se encontra em permanente mutação. Acredito que através desta reinvenção incessante, e mesmo sem se aperceber, Guedes está a recriar a identidade que se encontra na génese do cinema português. 

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados