‘A Crow Looked At Me’, de Mount Eerie, testemunha o verdadeiro valor da música
O que é a música? O dicionário ajuda-nos a perceber. Uma ordenação de sons com propósitos estéticos ou lúdicos; a expressão de cadências e repetições de vibrações sonoras; o que o ouvinte percepciona como harmonia ou dissonância. Valorizamos a música como expressão artística, cujo timbre, ritmo e sequência melódica nos transmitem emoções e ajudam a complementar um espaço de sentido que parece ultrapassar a realidade.
Geneviève Castrée morreu dia 9 de Julho do ano passado, depois de uma curta e dolorosa batalha contra um cancro. Tinha trinta e cinco anos. Era casada com Phil Elverum, um ícone da música alternativa, conhecido pelo seu projecto The Microphones (The Glow Pt. 2 faz parte do cânone do género lo-fi); nos últimos anos, tem assinado sob o nome Mount Eerie. Em 2015 nasce uma filha do casal, meses antes de a tragédia ter reclamado um lugar naquela casa.
O que se segue a um acontecimento como este? A música importa, de todo, a seguir a isto? Phil Elverum não está certo. De acordo com as suas palavras, o álbum que lançou há semanas não é propriamente música – é mais uma evocação da memória daquela que continua a amar. É um momento particular, irracionalmente delicado; temos a sensação de que não nos cabe opinar sobre ele. Phil Elverum diz que tudo lhe parece estranho: ter decidido gravar e lançar o álbum, ter marcado datas de uma tour de apresentação, estar a dar entrevistas sobre o mesmo (entrevistas cruas, de leitura aconselhada, à Pitchfork, à MTV e à Observer).
Gravado maioritariamente no quarto em que Geneviève morreu, com os instrumentos que lhe pertenciam, A Crow Looked At Me é uma elegia dolorosa: as palavras, debitadas de forma absolutamente sincera e frágil, são passagens de diários escritos entre o Verão e o Outono do último ano. São uma descrição, frequentemente demasiado explícita, do processo de luto, das dúvidas, da tristeza, do vazio. Ouvir e ler A Crow Looked At Me é como entrar em casa dos Elverum. Testemunhamos a dor e a incompreensão. Desconcertante e envolvente, é uma experiência que parece transcender a impressão estética e artística.
Os ingredientes são os mesmos ao longo de todas as músicas: a instrumentação, embora diversa, apresenta-se de forma minimalista. É uma hipérbole da simplicidade. Mesmo nos raros momentos em que as guitarras, o baixo, o piano, e a percussão electrónica decidem expressar-se ao mesmo tempo, o resultado é quase invariavelmente hiper-discreto. Há uma monotonia instrumental e vocal, que reflecte o estado emocional do músico. Mas cada canção conserva ainda uma identidade, alguns momentos de brilho e inspiração, apontamentos que manifestam a particularidade de cada faixa.
A cronologia marcada do álbum é dolorosa. Começamos com “Death is Real”, um prólogo que apresenta com frieza a realidade da morte, e as determinações imediatas que esta impõe sobre o quotidiano. O silêncio da ausência é um grito no interior da casa. A frieza do episódio em que Phil verifica que Geneviève continua a receber correio (essa sensação assombrosa que não será estranha a muitos de nós). O álbum evolui para episódios que são redigidos com uma mestria narrativa: objectos ou episódios que, volta e meia, transportam Phil para memórias passadas. Há uma intertextualidade entre o presente e os diários – músicas como “Forest Fire” revelam isso de maneira admirável.
Um tema perpassa A Crow Looked At Me: há algum sentido em tudo isto? O testemunho da morte, que nos separa de quem amamos, confronta-nos com a insignificância do que construímos, nutrimos e sentimos. É um confronto entre o espaço emocional e a natureza, que não sabemos se é real (podemos separar as duas coisas?). A morte é-o: bem real. Phil Elverum diz-nos por três vezes, distribuídas ao longo do álbum: death is real. E o sentido? É real? Phil tem dúvidas. Nos corvos que sobrevoam o pôr-do-sol antes da chegada do diagnóstico, ele antevê um mau agoiro; e no corvo da última faixa ele pressente uma espécie de presença espiritual da mulher. Na mosca que voa em círculos na casa-de-banho; na janela que insiste em deixar aberta; há sinais, de quem vive um processo de luto na transcendência abstracta, e, acima de tudo, na incompreensão. Há uma revolta contra a natureza: em “Forest Fire” ouve-se cantar «I reject nature, I disagree». Ao mesmo tempo, há uma negação da poesia: «When real death enters the house, all poetry is dumb/ (…) It’s dumb and I don’t want to learn anything from this».
O que é a música, senão isto? Meio privilegiado de nos fazer sentir – também este cinismo e descrença. Numa das entrevistas que deu, Phil Elverum diz que encontrou na poesia japonesa antiga que versa sobre o tema da morte um distanciamento e uma falta de identificação a que só dá duas possíveis explicações: ou o autor não experimentou a verdadeira dor que a morte de alguém pode provocar, ou atingiu um estado espiritual de tal forma elevado que já não experimenta esse sofrimento. Com este álbum, acho que Phil Elverum consegue fazer aquilo que diz que os poetas japoneses não conseguiram. Um precioso testemunho, sentido, dramático e cru. Por via da melodia, do ritmo, da dissonância e do timbre. Por isso, ainda acreditamos que a música importa. E muito.