Do Norte, com(paixão). Um mundo inteiro por lhe caber o mundo todo
Pela heterogeneidade das gentes que o compõem, acredito pouco num Portugal demograficamente coeso.
As generalizações pecam sempre por erróneas e falham sempre por muito; ainda assim, se excluirmos o afinco e rigor no trabalho, a vulgarização da saudade e o amor pelo Éder, há muito pouco de comum entre um algarvio de gema e um transmontano dos três costados.
Porém, se nos dedicarmos à caracterização de uma região em concreto, começarão a saltar à vista as semelhanças de um povo que é tudo, menos igual aos seus conterrâneos.
E a Norte, são manifestos os traços dessa riqueza cultural que se herdou no berço e se carrega ao peito: não nos faz mais, nem menos. Só diferentes.
Divagações que contemplem as gentes do Norte como alvo, sempre se arriscam à insignificância. Muito por culpa da descrição certeira que o Miguel Esteves Cardoso fez das mulheres cá de cima. E qualquer juízo pautará por escasso, falhará sempre uma ou outra coisa: um detalhe, um retoque, um jeito por mencionar.
Ser do Norte – e perdoem-me já a metáfora futebolística com conotação direta ao sentido da vida – é ter um clube que já coagiu e é hoje roubado sem dó nem piedade. É esta ambivalência que de nós toma conta. É saber que a vida, mais que outra coisa qualquer, é feita da quantidade de adversidades que nos surgem. E viver em paz com isso.
O Norte é a mulher deslumbrante que cobiçamos em segredo enquanto passa, ainda que num repente beije de língua a amiga, deixando-nos rendidos à diversidade que neste reino reina. Compreendendo isso, abraçando isso. Admirando isso. Os homens não ficarão muito atrás; deles, devem elas contar-vos.
O norte é o fim da bicada e até a mais banal das festas, acaba sempre por se transformar num velório de um par de dias. No Norte bebem-se finos! Imperiais são as pielas que apanhamos quando anunciamos que vamos “só tomar café”.
O Norte está longe de se cingir ao Porto, mas é mentir dizer que a região não tem na cidade o seu principal baluarte e símbolo. Muito sucintamente, a cidade é ultrajante em toda a extensão do termo.
As gentes do Norte andam sempre de sorriso posto, embora arrancar-lhes um riso sincero seja um bico de obra, tarefa hercúlea. No Norte há princesas e galdérias, cavalheiros e mulherengos: há de tudo e todos sabem ao que vão. Faz-se sempre uso de uma franqueza que, quando expressa a quem de fora é, pode suar rudeza ou mau-trato. É desarmante, mesmo sendo apenas uma genuinidade que nos consome até ao tutano.
Não cabe na cabeça de ninguém que a mesma pessoa seja capaz de conter em si generosidade e ira, em igual escala. Somos bipolares com repentes e ai de quem nos obstrua o caminho pelo simples gozo de o fazer. No Norte tudo o que parece é: ninguém está com meias medidas, nem meios rodeios. E só se embarca em meias fodas quando o tempo escasseia.
A Norte, a anatomia ganha contornos bizarros: temos as tripas no peito e o coração na boca. Rasca, antes de ser uma geração, já há muito se tinha como modo de vida: cá por cima se entoam queixas disto, mazelas daquilo. Tudo sob a constatação final de que – ainda assim, bem vistas as coisas – poderia ser bem pior. Há poucos lugares no mundo onde se sinta presente uma harmonia tão grande entre o gourmet e o rústico, o low-cost e o high-end, as tascas e os restaurantes de autor, os segredos de bairro e os pontos turísticos de roteiro. E isso ninguém nos tira; para já.
Também há surpresas! Nunca sabemos se o tipo que está parado no trânsito connosco, buzinou por nos conhecer do after ou para nos dedicar impropérios. Ou o segurança da disco de quem éramos melhores amigos ainda na semana passada? Esta semana barra-nos à entrada como se nunca nos tivesse visto na vida. Nada que um amante gastronómico nortenho não suporte: dose e meia de imprevisível é o prato principal da mais rigorosa dieta.
Em última análise, o Norte é um mundo inteiro por lhe caber o mundo todo.
Mais que os locais, os spots, as paisagens, os tascos, os jeitos, os hábitos, os tiques, os vícios, os tráficos, os voyeurs, o Norte somos nós: quem o faz e quem o forma, quem o sente e quem o vive.
O meu humilde pedido: não nos tirem o que é nosso.
Fotografia de Mariana Gomes