Telmo Roque, talento afiado em facas
Telmo Roque é sinónimo de “ser fora da caixa”. E ou esta expressão nasceu para ser usada com ele ou então é mesmo ele que a personifica na perfeição. A forma como nos recebe na sua oficina, descomplexada e aberta revela aquilo que vai ali dentro: abertura, disponibilidade e aquela liberdade típica de artista, tanto no que cria como no discurso com que fala. Tem 37 anos e mudou-se para Londres à procura de um futuro melhor com apenas 7 cadeiras de Design Industrial por concluir, na UBI. Nunca teve medo do trabalho nem de fazer o que fosse preciso. Lá começou por trabalhar a lavar pratos, tendo mantido essa ligação à restauração com várias funções diferentes, até ir para desenhador de fabricação (aproveitando a formação que já tinha na área, já que tinha curso técnico como desenhador de construção), onde fez sistemas de envidraçados em grandes propriedades. Foi nessa altura em que esteve ligado à restauração que se apaixonou por culinária e que criou uma ligação muito grande à cozinha. E então conta-nos que foi a trabalhar em Londres que seu o clique que faltava. “O maior clique para chegar aqui a este ramo foi a noção de que o passar de uma ideia à prática só precisa mesmo só precisa mesmo de se saber escolher os parafusos, contrariando a ideia que ensinam na universidade de que os engenheiros escolhem os parafusos e os designers não e que tinha de arranjar alguém que me escolhesse os parafusos e me tornasse real o meu design, para fazê-lo acontecer”.
E as facas quando surgem? Em 2016 e com o referendo positivo a favor do Brexit, Telmo decidiu regressar a Portugal e ao Fundão e terminar o seu curso na UBI. E é então que tudo começa. Depois de terminar o curso, teve um workshop com Paulo Tuna, o maior nome da cutelaria de cozinha do país, nas Caldas da Rainha, de onde saiu um verdadeiro apaixonado pela arte. “Foi uma loucura, já não me lembrava que gostava tanto de facas”. E o “bichinho” nunca mais saiu dele, tendo iniciado a maior aventura da sua vida aí mesmo. Cavou uma cave por baixo da casa dos pais, na Aldeia Nova do Cabo, e foi ali debaixo de solo que tudo começou. Foi inclusive ele que construiu e fez praticamente todo o equipamento que utiliza para criar as facas, sendo que para o fazer criou uma troca de serviços com um senhor que conhecia e que tinha uma serralharia e em troca do conhecimento técnico que lhe dava, este deixava-o usar a oficina para produzir os equipamentos. Cresceu a pulso e nunca teve medo de meter mãos-à-obra para fazer os seus sonhos acontecer. Admite que não era este o plano original quando acabou o curso. “Ao início não pensava nisto admito, pensava em criar equipamento para construção/sanitário etc.”, mas as facas conquistaram-no por completo e Telmo descobriu a sua verdadeira vocação. É então que surge o primeiro trabalho e que o lança a nível e escala mundial acabado de começar. Apresentou o projeto da sua “Faca Alcaide” para o festival dos Míscaros, na freguesia fundanense do Alcaide e a organização adorou e adotou a faca como sendo a faca do festival. Cada elemento seu tem uma ligação à matéria e ao contexto patrimonial e cultural, sendo que essa explicação vem depois inserida na caixa de madeira onde vem a faca, para que todos entendam o seu conceito. O custo começou por cifrar-se em 35 euros e atualmente vai nos 100 euros, porque o produto foi sendo melhorado constantemente. “Um trabalho meu tem de ser sempre melhor que o anterior, nem que seja num pormenor”, explica-nos. A preocupação com a sustentabilidade ambiental também existiu sempre sendo que a caixa está preparada para o envio de forma segura, leva só cartão a revestir a embalagem, não utilizando qualquer plástico. Esta faca foi colocada à venda na plataforma internacional online chamada “Etsy” e apareceu no maior portal de amantes de cogumelos a nível mundial como aconselhada para esse tipo de utilização. Isso catapultou-o para outros voos e quando se apercebeu estava a expedir facas para 14 países diferentes. Numa questão de um ano, a sua vida dava uma volta de 360 graus e lançava-o para voos mais altos de forma inesperada mas apenas ao alcance de quem trabalha muito pelos seus sonhos.
E como é feito este trabalho? A matéria-prima é uma história muito curiosa que Telmo nos conta. Utiliza matéria da região que foi buscar a zonas que sofreram incêndios ou então através de outra curiosa troca de serviços que é uma lição para um mundo altamente capitalista e baseado na troca de dinheiro. Telmo oferece-se para limpar terrenos em troca da madeira presente nos mesmos, porque achava injusto ir buscá-la e pagar o pouco que ela valia sem deixar o seu contributo. Tinha o material de limpeza florestal e percebeu que o custo que as pessoas tinham para a limpeza era bem maior que o valor da madeira e que podia acrescentar algo às comunidades que tanto o ajudavam com a matéria-prima para o seu trabalho. “O objetivo é ir buscar novo valor à nossa floresta”. Acredita portanto que a madeira é como a boa cozinha, funciona por sazonalidade. Explica que se ela for apanhada na altura do repouso (Fevereiro-Março) é muito mais favorável, porque fica menos propensa a pragas e as árvores sofrem menos porque não largam seiva nessa fase. Além disso não abate nunca árvores para este efeito, afirmando que “consigo ter mais do que produto para trabalhar desta forma, só através da poda e manutenção da floresta”. Utiliza vários tipo de madeira locais, nomeadamente cerejeira e oliveira.
O seu negócio tem ainda um caráter de sustentabilidade local, assente numa economia circular que criou. As matérias-primas são locais assim como toda a mão-de-obra e as pessoas que participam no processo de criação ou nas quais delega certas funções. Nesta produção, a comunidade local fornece-se a ela própria. Além disso é contra o desperdício, já que utiliza todo o material que pode e desperdiça o mínimo. Dá-nos o exemplo de fazer porta-chaves com os restos da madeira que sobram, para não se livrar deles. Para ele é uma questão de integridade. “É fazer o que está certo!”.
Sobre o trabalho de um designer Telmo acredita que “um designer deve realizar os sonhos dos outros e não impingir os seus sonhos”. Sente-se como se tivesse um superpoder por poder realizar os sonhos dos outros e ainda ganhar dinheiro por fazê-lo. Ainda assim não acha que deva fazer tudo o que o cliente quer sem antes o aconselhar e lhe dar o seu parecer técnico sobre o que ele pede. “Tu não vais a um médico pedir Viagra para a dor de cabeça a esperar que o médico to receite”, atira. Diz ainda que um designer por conta própria não pode “trabalhar só das 9h às 18h e está feito”, defendendo que “é preciso viver a profissão, tem de ser um gosto constante e nunca ser enfadonho ou por obrigação”. “Era a mesma coisa que o Cristiano Ronaldo contar as horas de treino e só fazer as que é obrigado”, compara. A felicidade dos seus clientes é o objetivo máximo daquilo que faz e o porquê do seu trabalho. “O meu trabalho é conseguir fazer as pessoas felizes”.
Neste nicho de mercado é preciso conhecer e trabalhar com as pessoas certas. Telmo faz neste momento produtos para grandes chefs de cozinha nacional, nomeadamente Hugo Nascimento e Ljubomir Stanisic, de quem com o tempo também criou uma enorme amizade e respeito. Foi apresentado por um amigo ao chef Hugo e mostrou-lhe o seu trabalho, sendo que ele mostrou interesse e foi à Aldeia Nova do Cabo propositadamente para conhecer a cave (ou “caverna” como lhe chama Telmo” para ver o seu trabalho, como e onde era feito. Criou-se então uma amizade com um “gajo do caraças” (é como Telmo descreve Hugo Nascimento constantemente ao longo da conversa) e que dura até aos dias de hoje e de onde surgiu também Ljubomir Stanisic, quem teve oportunidade de ver trabalhar no seu restaurante assim como ao restante pessoal. Descreve-o como alguém muito trabalhador e que “nada lhe caiu do céu”. Chefs destes procuram qualidade e o melhor que existe no mercado e Telmo sente-se orgulhoso por poder contribuir com o seu trabalho para isso mesmo. Para Telmo, para além de dois chefs impressionantes são “enormes a nível humano”. Destaca ainda a importância de os seus clientes terem conhecimento de como se usa uma faca de chef para poderem fazer o uso adequado dos seus produtos. “Ter uma faca minha sem ter o mínimo conhecimento básico de como se usa uma faca de chef é ter um Ferrari sem saber estacionar”, compara.
Atualmente, tem oficina no centro do Fundão e trabalha o design na Incubadora de Empresas, sendo que em breve vai passar a ser tudo na oficina, cujo espaço vai ser totalmente reformulado. Tem duas formas de trabalhar: ou cria os próprios modelos que disponibiliza para venda ou então aceita criar produtos personalizados a pedido dos clientes. Depois utiliza sempre as linhas gerais desses projetos criados para os clientes para criar produtos para aumentar a sua própria gama disponível, porque para ele o “cliente é um especialista acima de tudo”, até porque trabalha com chefs que são especialistas no uso que as facas vão ter. E mesmo estando em 14 países, Telmo Roque assume por completo o projeto, tratando quase em absoluto sozinho da recepção das encomendas, dos envios, da comunicação etc., para além da parte prática das suas criações.
Telmo sente-se finalmente reconhecido pelo seu trabalho. “Chamavam-me o maluco das facas e agora, como começo a ser mais conhecido pelo que faço, já me chamam tratam como menos maluco ou já um maluco com melhor conotação”. Ainda assim ainda há quem não entenda e que desvalorize o seu trabalho, dizendo-nos que há quem o chame de faquir, não entendo a exigência técnica e o reconhecimento do seu trabalho e a projeção que tem tido dentro e fora do país.
Um sonho tornado realidade que começou numa cave na Aldeia Nova do Cabo e que atualmente se concretiza nas melhores cozinhas portuguesas e em catorze países diferentes. Uma história de resiliência de alguém que nunca cruzou os braços e que acreditou sempre no seu potencial de criar e ver as suas criações fazerem felizes os clientes. Telmo Roque é um designer e um artista, na verdadeira essência de ambas as palavras. Deixa um pouco de si em cada coisa que faz. E cada coisa que faz traz-lhe também algo de novo a si.
Esta reportagem é da autoria de Fernando Gil Teixeira e foi originalmente publicada em Jornal Fórum Covilhã