A história de Néstor Almendros, o senhor da fotografia. De Rohmer, Truffaut, Malick até à Calvin Klein

por Lucas Brandão,    30 Agosto, 2020
A história de Néstor Almendros, o senhor da fotografia. De Rohmer, Truffaut, Malick até à Calvin Klein
Néstor Almendros / Fotografia de Herman Puig

Nascido a 30 de outubro de 1930 e falecido aos 61 anos, no dia 4 de março de 1992, Néstor Almendros não deixou que as suas seis décadas de vida passassem por si incólumes. Foi um cinematógrafo de relevo, cobrindo tanto o cinema europeu como o de produção em Hollywood, abrindo portas para uma mudança de paradigma. Potenciando a cor como elemento fundamental, dotou-lhe de luz e, com esta, professou um diálogo irreverente e reluzente, sem se atrever a beliscar a Natureza. Aliás, foi mesmo da luz natural que se tornou mestre e autor de uma imagem que, por tão depurada e cuidada, ajudou a que os cineastas pudessem falar com mais franqueza e pureza nos seus filmes.

Néstor Almendros Cuyas nasceu em Barcelona e, aí, cresceu até aos 18 anos, depois de passar a viver em Cuba com a sua mãe e com os três irmãos, depois do seu pai já ter emigrado em 1939, logo após o fim da Guerra Civil Espanhola. Crescendo numa família anti-fascista, filho de professores (o seu pai foi um importante pedagogo, influenciado pelo francês Céléstin Freinet), foi em Havana que Almendros deu forma à sua paixão pelo cinema, redigindo as suas primeiras críticas. Pouco tempo depois de se licenciar em Filosofia e Letras em Cuba e de ter passado um ano em Nova Iorque, a estudar cinema, voltaria à Europa, nomeadamente a Roma, onde estudou no seu Centro Sperimentale di Cinematografia.

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Com a formação no seu currículo, filmou algumas curtas e vários documentários (nomeadamente baratos, no formato 8mm e 16mm), sob a chancela do Instituto Cubano de Arte em Indústria Cinematográfica, em especial sobre a Revolução Cubana de 1959 e sobre o regime de Fidel Castro, que desta adveio, para além de coordenar algumas pequenas peças de teatro em Nova Iorque. Conviveu, de igual modo, com realizadores principiantes à data, como o cubano Tomás Gutiérrez Alea e os irmãos Jonas e Adolfas Mekas. Porém, algumas das suas curtas, que não conheceram grande reputação, acabariam por ser banidas e, avesso à burocracia da indústria naquele país, passou a viver em Paris, ainda na década de 1960. Foi aqui que encontrou Éric Rohmer e François Truffaut, dois dos grandes nomes da Nouvelle Vague, a corrente de cinema predominante em França.

Conhecida ficaria a sociedade entre Almendros e Rohmer, que, desde 1964, fariam uma parceria de sucesso durante mais de quinze anos. Tudo começou na breve curta do realizador “Nadja a Paris” e seguiu-se por  “La Collectioneuse” (1967), “Ma Nuit Chez Maud” (1969), “Le Genou de Claire” (1970) e “L’Amour l’Après-Midi” (1972), alguns dos principais filmes de Rohmer, que mostraram ao mundo do cinema a capacidade de Almendros respeitar as exigências cromáticas para, com a imagem, poder comunicar. Discursando com a paisagem e com os interiores, tornaram marcante o caminho cinematográfico do realizador, ainda mais capacitado da placidez ideal para narrar as suas histórias. Com Truffaut, esteve, entre outros, em “L’Enfant Sauvage” (1970, onde Almendros explorou as virtudes e os detalhes do cinema mudo), em “L’Homme Qui Aimait Les Femmes” (1977), em “La Chambre Verte” (1978, onde, num filme de tonalidades góticas, Almendros fez uso da luz das velas para, em contraste com a luz elétrica, torná-lo mais sinistro e sinuoso) e “Le Dernier Métro” (1980, no qual arrecadou um prémio César para melhor cinematografia). O cinematógrafo apoiou também Barbet Schroeder, realizador suíço, em “More” (1969) e “La Vallée” (1972).

Foi durante a construção deste respeitável percurso que chegou o convite de Terrence Malick, realizador norte-americano, para lhe gerir a fotografia de “Days of Heaven” (1978). Malick havia ficado encantado com o trabalho de Almendros, em especial com “L’Enfant Sauvage”, em que mostrou a sua maestria com a utilização das luzes em ambiente controlado, nomeadamente no estúdio. Para este filme, no entanto, o processo criativo foi mais complexo. Potenciando as valências do cinema mudo, a referência a pintores vários, como o holandês Vermeer e os norte-americanos Edward Hopper e Andrew Wyeth, de caraterísticas mais realistas, que aproveitavam a luz natural como veículo de comunicação do estado de espírito dos retratados, foi uma premissa valiosa. A isso, juntou-se o estudo de diversos foto-repórteres. Este estudo das pinturas não era virgem na sua carreira, tendo-o feito já ao lado de Rohmer, nos seus filmes. Para, por exemplo, o caso de “Le Genou de Claire”, Almendros inspirou-se na arte de Paul Gauguin e nas suas cores quentes, recorrendo às longas saias com flores e com os cenários montanhosos e verdejantes de fundo. Com Truffaut, já havia visitado a pintura da Era Vitoriana do século XIX inglês e os impressionistas (em “L’Histoire d’Adele H.”, de 1975), ficando o medieval Piero della Francesca e os seus tons acastanhados e  para “Kramer vs. Kramer”, futuramente realizado.

A história do filme tornou-se, assim, essencialmente visual, apesar de Almendros ter pouco contacto no terreno com os operadores de câmara, cingindo-se à sua coordenação. Foi um período de espera, ao invés de condicionar a luz para seu próprio proveito. Assim, chegou um céu colorido, embora com o Sol encoberto, no final dos dias da gravação, proporcionou as condições ideais para que a luz natural pudesse contar o drama que rodeia uma propriedade agrícola no Texas e a apropriação da riqueza do seu proprietário por um jovem casal. O investimento em tempo e em dinheiro foi avultado, mas valeu a Almendros o seu primeiro e único Óscar na sua primeira nomeação: o de melhor cinematografia.

Na fase em que esteve na Europa, aproveitou ao máximo a leveza da luz natural que França acolhe no seu território, filtrada pelas nuvens. No entanto, chegado aos Estados Unidos, deparou-se com um ar mais transparente, embora com uma luz mais pesada, que o obrigava a socorrer-se das sombras para, só depois, e já no estúdio, puder tratá-la e resgatá-la para o filme. De lente em lente, fica um aproveitamento da própria luz natural, por exemplo, em cenas de interiores com janelas, fazendo uso dela um recurso confortável para os próprios atores e demais equipa técnica. Para a noite, porém, em filmes de época, e num cenário em que se pretendia a luz o mais realista possível, recorreu a garrafas de propano com um tubo com incineradores, conseguindo produzir a temperatura da cor e a tonalidade certa para a reprodução da luz através do fogo. “Days of Heaven” seria, assim, um momento de virada da sua carreira, que o colocou mais predisposto para a experimentação, sem desprezar a importância de toda a restante equipa, responsável por assegurar o belo na forma de conteúdo a captar e a imortalizar.

Almendros voltaria a ser nomeado em três outros filmes de produção em Hollywood: “Kramer vs Kramer” (1979, trabalho que aceitou na esperança de que fosse realizado por Truffaut, acabando por recair para Robert Benton), “The Blue Lagoon” (1980, de Randall Kleiser) e “Sophie’s Choice” (1982, de Alan J. Pakula). Em todos eles, para além de um processo que o fazia navegar na pintura e no estudo das melhores paletes de cor para os filmes, procurava encontrar a luz em cada cena, formatando-a e manipulando-a manualmente, orientado pela verdade da luz, tanto no pacífico e no sereno, como no obscuro e no denso. Foi, de certa forma, alguém que se encaminhava, para além de se descartar do progresso tecnológico, que fazia (faz e fará) da luz o que queria, para um momento de pausa, de contemplação e de inalação de toda a envolvente que o cineasta procurava reter e transmitir.

Depois destes trabalhos bem-sucedidos, o catalão regressou aos documentários, após também coordenar a cinematografia em “Imagine: John Lennon” (1988, realizado por Andrew Solt). Como uma espécie de gratidão em torno daquilo que a indústria lhe havia dado, decidiu retribuir com duas realizações, que abrissem horizontes para uma atuação política e social necessária. Assim, co-realizou “Cuba: Mauvaise Conduite” (1984), ao lado do cubano Orlando Jiménez Leal, onde entrevistam uma série de refugiados daquele país sobre a discriminação e a opressão por parte do governo aos dissidentes políticos, aos indivíduos homossexuais e às testemunhas de Jeová, colocando-as em campos de trabalho forçado sob o controlo do exército. Três anos depois, “Nadie Escuchaba” (1987) fala sobre as promessas não-cumpridas e os desaires que a Revolução Cubana trouxe, em que, entre outros delitos, estão os crimes que atentam aos direitos humanos e as detenções e torturas de antigos companheiros de causa de Fidel Castro. Entre os entrevistados, muitos que haviam escapado à prisão e que se tinham exilado voluntariamente, nomeadamente dissidentes políticos. Nos seus últimos anos de vida, gravaria comerciais de importantes marcas de moda, como a Giorgio Armani (aqui realizado por Martin Scorsese) e a Calvin Klein. Ele próprio homossexual, seria contaminado com o vírus da SIDA, infeção viral da qual viria a falecer.

Néstor Almendros foi, desta forma, um dos cinematógrafos de referência na década de 1970 e na seguinte um pouco por todo o mundo. Vários foram aqueles que procuraram ir de encontro à leitura do tempo e do espaço por parte do catalão, embora muitos também se tenham rendido e preferido o progresso tecnológico e a verdadeira manipulação da luz. Em seu tributo, teria um galardão com o seu nome, a celebrar a coragem na realização cinematográfica, sendo idealizado pela Human Rights Watch, uma organização não-governamental sediada em Nova Iorque, destinada à investigação e à proteção dos direitos humanos. A luz foi, assim, a maior e melhor amiga do cinema que Almendros foi fazendo prevalecer, tanto para si, como para os outros, mesmo que a luz fosse, por outras palavras, chama acesa perante as dificuldades da sociedade. Também disto é feito o cinema, de uma luz que irradia a imagem, mas também o lado de cá.

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