É com “A Conspiração de Atlântida”, de Rogério Colaço, que se dá início à trilogia de ficção científica 3020

por José Malta,    2 Setembro, 2020
É com “A Conspiração de Atlântida”, de Rogério Colaço, que se dá início à trilogia de ficção científica 3020
Capa do livro / DR

É com A Conspiração de Atlântida que se dá início à trilogia de ficção científica 3020. Escrita por Rogério Colaço, cientista, professor universitário, e actualmente presidente do Instituto Superior Técnico, o livro foi publicado pela Cultura Editora em Julho deste ano. Passando-se mil anos à frente do nosso tempo, após a humanidade ter enfrentado uma série de guerras, catástrofes naturais e doenças, período esse denominado por Guerra do Milénio, o livro aborda uma aventura que nos leva a viajar até ao século XXXI, onde a realidade e o modo de vida das pessoas não são de todo comparáveis às de hoje, em pleno século XXI. A história está repleta de conteúdos e definições próprias deste novo mundo, e podemos até encontrarmo-nos a nós mesmos neste futuro ainda muito distante através das diferentes personagens que vão emergindo à medida que percorremos a narrativa. Sendo escrita por alguém com vastos conhecimentos científicos, o resultado só poderia ser uma ficção científica própria, independente e, neste caso, com uma matriz portuguesa bem assente.

Sempre que se fala de uma trilogia de ficção científica, surge de imediato nos apreciadores deste estilo literário a Série Fundação de Isaac Asimov, talvez a mais prestigiada série literária de ficção científica. Um ano tão futurista como o de 3020 consegue remeter-nos, por exemplo, para a série de animação Futurama de Matt Groening, também ela passada no longínquo século XXXI. À partida, e pelo título da trilogia, esperaríamos encontrar um mundo semelhante à destas séries, repletas de naves espaciais, guerras entre galáxias, seres de outros planetas a conviverem mutuamente e toda uma tecnologia megalómana que por vezes se torna enfadonha. Apesar de existir um avanço tecnológico gigantesco e uma realidade bem diferente da que nos rodeia neste ano de 3020, o ponto forte do livro está no modo como este retrata a sociedade humana, as hierarquias e o relacionamento entre as diferentes pessoas, fugindo um pouco às descrições demasiado detalhadas e hiperbólicas que muitas vezes se encontram na ficção científica. Começa por ser difícil entrar na história porque entramos num mundo que à partida não conhecemos, e existe algum detalhe que temos que interiorizar ao início, nomeadamente do ponto de vista técnico-científico. Contudo, esse detalhe inicial seria sempre necessário até porque este mundo de 3020 não é de todo igual ao nosso mundo em 2020.

Rogério Colaço / DR

Em 3020, a humanidade terá encontrado um período único de paz, de prosperidade e de qualidade de vida nunca antes vistos. Portugal apresenta-se numa versão diferente, sob o nome de Federação Lusitânia, uma grande potência mundial que tem um impacto tão grande no mundo como tivera durante a época dos descobrimentos portugueses. Terá sido implementada uma fonte limpa e inesgotável de energia, a chamada Plataforma Experimental Energética Atlântida, uma plataforma oceânica capaz de resolver os problemas da humanidade. Esta é uma energia que usa como fonte uma espécie de ciclo contínuo da água, evitando que a humanidade recorra, por exemplo, ao uso da energia nuclear. Além disso, o ser humano tem o pleno direito à tecnologia de registo de vida, um dispositivo integrado na nossa orelha esquerda que consegue armazenar conversas, opiniões ou gestos que tenhamos tido durante os nossos dias de vida. Acaba por ser o equivalente aos telemóveis, às redes sociais ou até mesmo a uma página pessoal na internet nos dias de hoje, embora com maior complexidade pois precisamos de uns óculos de realidade ampliada para ter um acesso à informação desses mesmos dispositivos. Em pleno século XXXI uma boa parte da população do planeta é nómada, dadas as rápidas viagens que se conseguem fazer à volta do mundo e algumas cidades foram construídas de raiz devido às guerras anteriores e também devido à subida do nível médio das águas do mar que retirou as populações das zonas que hoje estão mais a litoral.

Os seres humanos que habitam neste quarto milénio são mais altos do que os actuais e têm uma maior esperança média de vida. Também devido a anteriores pandemias, as pessoas evitam cumprimentarem-se a través de um contacto físico ficando-se pela vénia ou pelos gestos simples. Os robots, que são denominados ao longo da narrativa por dispositivos (e por diferentes siglas consoante a sua funcionalidade) são indispensáveis no dia-a-dia de cada um, assim como outras máquinas inteligentes como os formigões ou as racionalizadoras. No entanto existem comunidades isoladas, denominadas por retrógrados, que vivem de acordo com os costumes e a tecnologia dos séculos XX e XXI, e que também aparecem nesta história com argumentos que as levam a optar por um estilo de vida diferente. Também existem os chamados alienados, homens e mulheres que vivem permanentemente dentro do seu registo de vida.

A morte de Abel Ghoddos, fundador da Plataforma Experimental Energética Atlântida e uma das mais importantes personalidades de uma era, que já contava com uma idade bastante avançada, gera um episódio sinistro. Os seus dados de registo de vida não se encontram na MagnaCella, o servidor que regista toda a informação dos chips de registo de vida, o equivalente a que a sua própria pessoa nunca tenha existido. Para além disso, não encontram em qualquer parte do seu corpo esse mesmo chip, o que torna a situação mais bizarra ainda. Sendo esta uma situação nunca antes testemunhada, e bastante delicada, é necessário que seja feito um inquérito. De modo a evitar comunicações de inquérito a agências de segurança internacionais, algo que poderia levar a um grande alarmismo e até a pôr em causa o sistema de armazenamento de informação, o nome de um cadete da Agência de Resolução de Problemas, Jonas X, é sugerido numa reunião de chanceleres (ao fim e ao cabo o mesmo que uma reunião de ministros), para desempenhar tais funções.

Apesar de missões de tamanha importância serem operadas por agentes experientes, Jonas X apresenta-se como um cadete finalista promissor, tornando-se recentemente conhecido por ser campeão mundial de xadrez aleatório humano. Tem como grande objectivo ser a primeira pessoa do século a derrotar as máquinas nesta modalidade, um pouco como o famoso duelo entre Garry Kasparov e o computador Deep Blue. Jonas X tem assim a missão de se dirigir à Plataforma Atlântida e tentar resolver o problema, sendo este o principal enredo do livro que junta as confidencias entre governantes, onde as mulheres desempenham cargos bastante importantes, e também a enorme influência da Tecnicon, a mais antiga escola de engenharia da Federação, que conta com pessoas a darem o seu contributo para a resolução do misterioso caso.

São também vários os elementos futuristas que podemos encontrar neste ano de 3020. A famosa Plataforma Atlântida, situada entre Portugal Continental e os Açores, e A Torre de Lusitânia, construída no local onde se encontra a Serra da Melriça, sendo esta a mais importante infraestrutura da Federação, são dois dos espaços onde grande parte da acção se desenrola, havendo ainda outras passagens por outros locais que bem conhecemos. Os avecarros que se deslocam a alta velocidade e a uma altitude de mais de mil metros, são o principal meio de transporte em 3020. Elementos como o xerém, uma bebida que se auto aquece, ou o sérum, uma substância que produz um efeito relaxador também aparecem juntamente com as personagens nesta história. Já para não falar também das barras energéticas que conseguem garantir a subsistência de cada indivíduo no seu dia-a-dia.

A Conspiração de Atlântida trata-se de uma história interessante que nos leva a viajar até a um futuro distante, acabando também por nos fazer olhar para os desafios que iremos enfrentar nos próximos anos, nomeadamente do ponto de vista energético. Para aqueles que gostam de livros de divulgação científica podem encontrar aqui algumas nuances das temáticas abordadas nos livros de Michio Kaku sobre os desafios da física no futuro, mas com intérpretes e uma narrativa preponderantes. Ficaremos certamente à espera dos próximos livros desta trilogia que aborda uma ficção científica bem portuguesa com diversas analogias que o leitor facilmente perceberá. Convém realçar que, num momento em que a ciência precisa cada vez mais de fundos para progredir, parte das receitas da venda deste livro serão utilizadas para financiar projectos de divulgação científica. Não será por acaso que uma das frases proferidas por uma das personagens do livro seja a seguinte:

“A investigação clandestina é das armas mais perigosas que existem. Porque se perde o controlo pelos pares, a verificação das questões éticas, e dos meios que se usam para atingir os fins. E quando isso se perde, perde-se também o principal objectivo da investigação científica: a melhoria das condições de vida da humanidade.”

A ciência e a tecnologia neste ano de 3020 ainda não conseguem resolver tudo, e teremos que enfrentar imensos desafios para que possamos melhorar o mundo e também aquilo que somos. Será necessário que a ciência e a tecnologia tenham todas as condições para avançarem, para que possamos atingir uma plenitude que salvaguarde acima de tudo aquilo que é a matriz humana. É caso para dizer que, assim, vale a pena ler ficção científica. E a investigação científica, assim, valerá muito a pena que continue a ser feita.

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