Entrevista aos directores do Motelx: “Os festivais de cinema, mesmo que sejam de nicho, não se podem divorciar das coisas que se passam”
A edição de 2020 do Motelx acontece de 7 a 14 de Setembro, e como tem sido regra a Comunidade Cultura e Arte volta a acompanhar o festival em que, desta vez em contexto de pandemia, o terror invade Lisboa. O nosso David Bernardino esteve à conversa com os directores do festival de cinema para uma entrevista onde falámos da realização do Motelx em plena pandemia, do convidado especial Pedro Costa, bem como dos filmes que irão passar nesta edição do Motelx e que a título pessoal mais agradam a Pedro Souto e João Monteiro.
Em Março quando Portugal entrou em confinamento e se fecharam as salas de espectáculos, em particular as de cinema, sentiram que a realização desta edição do Motelx estava em risco?
João Monteiro: Sim, tememos que não se pudesse realizar. A partir do momento em que se começaram a cancelar eventos parecidos com o nosso, já para não falar dos festivais de música, ficámos expectantes acerca do que poderia vir a acontecer, mas fomos sempre trabalhando, sabendo que de qualquer maneira, se o festival acontecesse seria sempre diferente. Houve uma relação mais difícil com as distribuidoras, principalmente na América, que acabaram por influenciar tudo em Portugal, principalmente as estreias, pelo que ter acesso a um determinado tipo de filmes não foi fácil. As próprias distribuidoras não sabiam bem o que deveriam fazer com os filmes. De resto o teletrabalho permitiu-nos ter mais facilidade em ver novos filmes em casa o que ajudou em muito à seleção do programa da edição deste ano.
De que forma é que escolhem a programação do festival. Vêem todos os filmes, em particular vocês os dois?
Pedro Souto: Sim, vemos todos os filmes antes de os selecionar para o programa, obviamente não apenas nós os dois mas a nossa equipa de programação. Temos uma equipa de programadores de curtas metragens internacionais de cerca de 4 pessoas e de longas de cerca de 8 e vamos dividindo esse trabalho ao longo do ano. Requisitamos filmes, temos inscrições espontâneas…
Quando é que tiveram a certeza de que o festival se iria realizar?
JM: Penso que no início de Junho.
De que forma irá o Motelx garantir as medidas de segurança em tempo de pandemia? Como é que se adaptaram ao facto de terem que reduzir a lotação das salas?
PS: Uma das ideias foi acrescentar dias ao festival. Isso permitiu-nos reduzir o número de sessões diárias de forma a termos no mínimo um espaçamento de uma hora entre sessões na mesma sala, permitindo a higienização necessária das salas entre sessões e evitando assim o acumular de espectadores nos espaços comuns do cinema. Em relação a isso as saídas das salas no fim do filme serão feitas de forma diferente. Especificamente na sala 2 e 3 os espectadores irão sair por trás do ecrã pela saída de emergência directamente para o exterior do cinema, e na sala lá em cima, sala Manoel de Oliveira, existirão portas exclusivas para entrada e saída, sendo que a saída levará directamente para o exterior do cinema através da porta das traseiras do São Jorge. Isto vai permitir gerir o fluxo de pessoas dentro dos espaços comuns do cinema. De resto a lotação da sala estará a metade, com lugares marcados com distância de 1 lugar entre cada espectador, e teremos os naturais postos de desinfecção com álcool gel.
Além da questão da pandemia propriamente dita, têm estado na ordem do dia questões de ordem social, nomeadamente o racismo e a igualdade de género. O Motelx vai ter uma retrospectiva intitulada “Pesadelo Americano: O Racismo no Cinema de Terror” e terá uma seleção de filmes realizados no feminino. Qual é o papel do Motelx no seio destas questões?
JM: Sentimos que os festivais de cinema, mesmo que sejam de nicho, não se podem divorciar das coisas que se passam e isso acaba por acontecer naturalmente uma vez que os próprios filmes já reflectem essas realidades por serem precisamente filmes do nosso tempo. A questão do racismo é especialmente sensível porque fomos habituados a crescer com filmes que precisamente procuravam consciencializar para a questão das minorias, quer directa quer indirectamente, com cineastas Wes Craven, Carpenter… Romero que é provavelmente o mais importante de todos eles nesse aspecto. Quando vemos este tipo de filmes reais a acontecer na televisão vem-nos à memória cenas como o final de A Noite dos Mortos Vivos, do Romero, que continua a ecoar nos dias de hoje. Achámos que podíamos recuperar esta questão através da exibição de filmes que nos marcaram, mas não numa lógica de mostrar mais do mesmo. Para isso já temos o telejornal e as pessoas penso que já estão bastante consciencializadas. Há um filme muito importante nesta mudança de paradigma, o Get Out, onde parece que pela primeira vez o espectador branco percebeu a mensagem e o filme acabou por ser um sucesso em todos os sentidos. A partir do Get Out vamos andando para trás recuperando outros filmes como Tales of the Hood que foi feito logo a seguir à morte do Rodney King em 2012 e que levou às manifestações em Los Angeles até coisas mais antigas como o Intruder do Roger Corman, feito no início dos anos 60, numa altura em que as medidas de inclusão social começavam a ser implementadas um pouco por todo o lado. Fazemos uma viagem sobre isto e apercebemo-nos que aquilo que agora se está a passar no fundo acaba por ser mais do mesmo porque ainda não assistimos desde então a uma mudança tão grande quanto isso.
E quanto ao facto de existir cada vez mais filmes de terror realizados por mulheres?
JM: Isso é uma pequena revolução que está a acontecer. Nós temos um filme muito engraçado que se chama Scare Me que mostra um bocadinho porque é que o cinema de terror realizado por mulheres é muito mais interessante e estimulante. Há muito tempo que o cinema de terror é uma reciclagem de standards vistos no masculino e quando vemos os mesmos temas explorados no feminino temos sempre uma nova visão por muito batido que seja o subgénero do filme. Isto é uma coisa relativamente recente. Normalmente as mulheres nos filmes de terror são apresentadas como vítimas ou então como heroínas mas sempre do ponto de vista masculino, como no Alien por exemplo. Nós vamos reparando que esses filmes no feminino vão aumentando, e não só aumentando como melhorando em termos de qualidade e interesse. Nós gostamos de reflectir isso na nossa programação.
O público do Motelx é muito fiel ao festival e curiosamente é um público muito heterogéneo. Como acham que o público vai aderir ao festival tendo em conta a pandemia?
PS: Para dizer a verdade não sei, mas temos o desejo de manter o ADN do festival e para isso os filmes têm o papel principal. Depois é transmitir que todas as medidas de segurança que têm sido implementadas noutros eventos culturais estão a ser implementadas com o mesmo cuidado no cinema São Jorge e no Motelx. Vai depender muito das pessoas e da forma como estão a lidar com o desconfinamento… Uma sala de cinema hoje em dia acaba por ser um ambiente bastante confortável, está toda a gente de máscara, tens espaço… Nesse sentido penso que tem todas as condições para que, embora de forma diferente, esta edição mantenha toda a intensidade que caracteriza o Motelx.
JM: Este é um ano em que não podemos ter expectativas… A nossa preocupação é fazer com que o festival exista, de forma presencial, garantindo as condições de segurança, mas compreendemos perfeitamente que existam pessoas que não se sintam ainda à vontade para irem a eventos culturais.
Este ano o convidado especial é o Pedro Costa, que é provavelmente o realizador português mais reconhecido internacionalmente actualmente. Como é que foi chamar o Pedro Costa para participar num festival de cinema de terror e de que forma é que acham que a linguagem do cinema do Pedro Costa se entrecruza com o terror do Motelx?
JM: Nós já tinhamos feito uma brincadeira muitos anos antes de haver festival num ciclo de filmes de zombies organizados pela Cinemateca. Nós queriamos por um representante português e programámos o Ossos na altura. Houve alguma reacção de pessoas que acharam que éramos loucos mas isto acabou por se tornar na ideia do Quarto Perdido que é a secção que mais tarde no Motelx viria a revisitar velhos filmes portugueses de género e propor novas leituras destes mesmos filmes. O Pedro Costa é um cineasta muito referencial, que consegue misturar uma data de ideias e géneros e criar o seu próprio universo. Nessas referências as mais vincadas são talvez as do cinema de terror, a do cinema expressionista alemão, seja do Jacques Tourneur que é uma influência que vem desde o Sangue até à Vitalina Varela… Achámos que agora era um bom momento para introduzir o cinema do Pedro Costa no festival, com as personagens do Ventura e da própria Vitalina no Cavalo Dinheiro, personagens curiosamente apelidados por algumas pessoas como “mortos vivos”. Além disso é um tipo de cinema que não temos muitas oportunidades de ver no festival e achámos que era uma boa ideia passar no Motelx. Apesar de não ser propriamente cinema de terror existem sempre essas referências. Por outro lado também não conseguimos categorizar o estilo do Pedro Costa. É um estilo único… É uma honra tê-lo no festival.
O Motelx atribui o maior prémio monetário para curtas metragens em Portugal.
PS: Sim, e é um prémio que não tem qualquer condicionante ou pré-requisito… São 5 mil euros, é dinheiro, mas é um valor que não tens que aplicar noutro filme por exemplo. Seria excelente se o fizesses, mas seja como for penso que faz a diferença. Este ano temos 12 excelentes curtas metragens, o que foi também um grande espanto para nós porque estávamos preocupados que este ano fosse menos produtivo devido à pandemia e à inactividade que isso trouxe.
Tiveram a candidatura de curtas metragens inspiradas pela pandemia ou influenciadas pelo confinamento, filmadas em casa por exemplo?
PS: Sim. Não digo que tenham chegado à última selecção mas tivemos muitos filmes que estiveram na nossa lista final que eram claramente influenciados pela situação pandémica que atravessamos.
Qual é o vosso sentimento ao verem realizadores como o Gonçalo Almeida que venceu em 2017 o prémio de melhor curta a crescer e a realizar em 2019 a belíssima longa metragem Faz-me Companhia, estreada precisamente no ano passado no Motelx, e que depois esteve no circuito comercial de cinema.
PS: É um privilégio para nós assistir a essa evolução. Sempre o desejámos e iremos sempre continuar a promover as curtas metragens mas também queremos de alguma maneira que o passo seguinte se dê. Isso acontecer tão cedo, como aconteceu igualmente com o Mutant Blast. São sinais de esperança que mostram que o cinema de terror em Portugal está bem de saúde.
Como sentem o papel do Motelx actualmente no circuito dos festivais internacionais de cinema?
JM: Neste momento estamos bem inseridos, neste caso na Federação dos Festivais de Cinema Fantástico. Essa associação tem sido proveitosa para nós no sentido da internacionalização do festival. É um festival já conhecido e as coisas começam também já a vir ter connosco. Isso permite-nos uma maior difusão deste cinema e do cinema português. O Faz-me Companhia, que tu referiste, depois de estrear no Motelx passou em Austin no Fantastic Fest, e o Mutant Blast passou em quase todos os festivais internacionais do género. Nesse campo estamos felizes, estamos representados.
Uma última pergunta mais pessoal. Como não podemos aprofundar aqui toda a programação, quais são os filmes que recomendariam a título pessoal que irão passar este ano no Motelx?
PS: Eu posso sugerir um filme que me surpreendeu, o Host, realizado pelo Rob Savage que já esteve por acaso no festival há uns anos com uma curta. É um filme totalmente realizado pelo Zoom durante o confinamento, o que pessoalmente me transmitiu uma familiaridade muito interessante porque na verdade passámos os últimos meses a ter reuniões por Zoom, Skype ou o que seja… Eu estava muito céptico em relação a este filme mas a verdade é que resulta muito bem dentro do subgénero “found-footage” e é um excelente representante daquilo que estamos a viver com a pandemia, especificamente a parte do confinamento. Vai passar numa sessão da meia-noite e é perfeito para nos deixar acordados depois…
E tu João, o que sugeres?
JM: Dentro do ciclo do racismo há dois filmes que convém falar… Um deles é completamente desconhecido, Ganja & Hess, protagonizado pelo Duane Jones d’A Noite dos Mortos Vivos, que aliás fez muito poucos papéis. É um filme muito importante para o nascimento de um, digamos, cinema afro-americano nos Estados Unidos porque influenciou muito a nova geração, nomeadamente o Spike Lee que até fez um remake do filme. Outro é o White Dog do Samuel Fuller que coloca directamente ao espectador a questão “poderá o racismo ser curado?”. Depois queria destacar o cinema sul-americano que vamos ter no festival, como o argentino Intruder que é surpreendente, o La Llorona da Guatemala, que mistura a política do país com uma lenda de folclore local, e o brasileiro Macabro. O Macabro é estilo True Detective, com uma investigação verídica nos anos 90 no estado do Rio de Janeiro. Por fim, assim mesmo a título pessoal, vamos passar um filme chamado Grizzly II: Revenge. É um filme que ficou inacabado, faltava filmar as cenas do urso que dá nome ao filme e que iria ser gigante, estilo Jaws, mas não funcionou. Parece que os produtores fugiram com o dinheiro, entre outras coisas do género… E depois tens uma data de gente que entra no filme, que na altura não era conhecida, como o George Clooney, o Charlie Sheen, Laura Dern, John Rhys-Davies… Além dos inserts que são feitos posteriormente para que o filme possa fazer sentido. É tudo tão surreal, é uma oportunidade única e penso que será uma sessão delirante.