Entrevista. Sofia Nunes de Oliveira: “Demência não é a doença, é uma síndrome”

por Ana Monteiro Fernandes,    7 Setembro, 2020
Entrevista. Sofia Nunes de Oliveira: “Demência não é a doença, é uma síndrome”
Ilustração de Simone Roberto/CCA
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A pergunta lançada no último ‘Terapia de Divã’ foi a seguinte: por que razão, à excepção da doença de Alzheimer ou de Parkinson, só ouvimos o nome “demência” quando o idoso começa a perder todas as suas funções cognitivas? Não estaremos a colocar várias doenças sob uma e só designação? Isso não terá consequências na própria terapêutica e nos cuidados específicos a seguir? A neurologista Sofia Nunes de Oliveira, integrante da Associação Alzheimer Portugal, explicou, na entrevista que se segue, que tal acontece por vários factores, mas frisou que demência é o síndrome, ou seja, significa, apenas, perda das funções cognitivas e não se trata da doença em si. Na verdade, é como dizer, de forma corriqueira, que dói a cabeça quando pode haver várias razões para que tal aconteça. Pelo menos, dizer demência torna-se incompleto.

A verdade é que, quando as várias patologias associadas à demência estão já num estado avançado, torna-se muito difícil fazer um diagnóstico etiológico correcto, uma vez que estas acabam por ter sintomas bastante iguais e perdem as suas características distintivas. O grande problema é que a população idosa, a mais susceptível às doenças do foro degenerativo, acaba por ser seguida já num estado muito avançado da sua patologia. Outros impedimentos, além dos diagnósticos difíceis, prendem-se, muitas vezes, com a complexidade dos exames, os seus custos, e o acesso ao conjunto de terapias e cuidados complementares que poderiam, de facto, auxiliar o idoso – isto partindo do princípio de que a investigação devida foi feita. O outro assunto a tratar prende-se com a solidão que a família, de facto, sente quando pretende dar o cuidado devido ao seu sénior e, na maior parte das vezes, se sente abandonada. Foram estes os assuntos tratados com a neurologista Sofia Nunes de Oliveira, que se aprofunda na entrevista que se segue.

Sofia Nunes de Oliveira / Alzheimer Portugal


Muito se discute acerca da plasticidade cerebral, que pode ser maior do que aquilo que imaginávamos, mesmo nas idades mais avançadas. Um cérebro bem estimulado consegue manter, de alguma forma, essa plasticidade até tarde? De facto, a plasticidade do cérebro pode ser algo que nos possa surpreender, mesmo nas idades mais avançadas?
Sim, aquilo a que se refere como plasticidade é aquilo a que chamamos reserva cognitiva. Ou seja, no fundo, é a capacidade que o cérebro tem de encaixar a doença sem que se manifeste clinicamente – a capacidade de se adaptar a patologias, de contornar essa patologia, digamos assim. Isso é influenciável por vários factores. É influenciável pela capacidade de estimulação e pela quantidade de estimulação ao longo da vida, sem dúvida, mas também pela quantidade de funções cognitivas que a pessoa treina. Há a evidência de que indivíduos que falam mais línguas, que têm maior exposição a outras linguagens, como música, por exemplo, mas que também realizam actividade física, porque é uma forma de estimulação e que têm vidas com mais actividade intelectual, têm maior reserva cognitiva. Nesse sentido, têm mais plasticidade cerebral. Quando falamos da terceira idade, mesmo no envelhecimento saudável, essa capacidade diminui, a reserva cognitiva vai diminuindo, a capacidade de regeneração é diferente e o cérebro funciona de forma diferente. Não quer dizer que a doença seja uma coisa normal, não é normal perdermos as nossas capacidades cognitivas, elas tornam-se é diferentes.

Nós perdemos e ganhamos com a idade. Perdemos, claramente, plasticidade, porque perdemos reserva cognitiva, mas temos uma margem para podermos continuar a funcionar de uma forma perfeitamente adaptada à nossa vida. Ouvimos menos bem, mexemo-nos com mais dificuldade, perdemos massa muscular e massa óssea, e o mesmo se passa em relação ao cérebro. Mas confundir isso com doença, com demência, nomeadamente, é um erro. Agora, não há dúvida de que há determinadas funções que se agravam com a idade, as funções cognitivas. Ou seja, as funções cognitivas são as funções nervosas superiores. A palavra cognitivo vem de ‘cognoscere’ e significa conhecimento – inclui linguagem, atenção, cálculo, memória, várias funções e, ao longo da vida, algumas dessas capacidades deterioram-se mais do que outras. É verdade que ficamos mais lentos, mais rígidos, demoramos mais tempo para tomar as mesmas decisões, mesmo que sejam as correctas. Em contra-partida, no entanto, adquirimos experiência e a nossa reserva cognitiva, a nossa plasticidade cerebral, dá-nos mais tempo para reflectir, temos mais informação para tomar uma decisão mais acertada até, pela experiência que vamos acumulando. O que muda, essencialmente, é a velocidade a que somos capazes de funcionar. 

Tem-se muito a ideia de que aprendizagem é algo estanque no tempo, ou seja, que, a partir de uma determinada idade, já não se aprende. Mas, então, e fazendo uma ligação à sua resposta, uma pessoa que seja estimulada consegue ter a capacidade de assimilar novas experiências, até muito tarde na idade.
Não é só uma questão de ser estimulada. É ser estimulada e não ter doença.  O nosso cérebro é uma máquina de resolver problemas e um cérebro saudável tem a capacidade de aprender. Eu posso dar um exemplo muito simples. Eu vejo em consulta doentes com demência cujo cônjuge é da mesma idade. O que muitas vezes acontece é que o cônjuge – suponhamos, o marido de uma paciente que deixou de fazer as actividades da casa, de cozinhar, de ir às compras – passou ele mesmo, com a mesma idade, a aprender essas tarefas.

Os idosos, desde que o cérebro seja saudável, conseguem aprender até idades muito avançadas. Aprendem de maneira diferente, mais devagar, mas um cérebro saudável é sempre capaz de aprender. É errado assumir, portanto – e sei que há uma expressão popular para designar isto – que, por uma pessoa ter 80 anos de idade, já não vai ser capaz de aprender uma nova tarefa. Poderá fazê-lo mais lentamente, de uma forma diferente, mas um cérebro saudável é capaz de aprender. Quando, muitas vezes, as doenças degenerativas da memória começam, a primeira coisa que se detecta, muitas vezes, é uma falha na capacidade de aprender, de aprendizagem. Isso é um indício de que pode haver uma doença subjacente. 

Pode explicar melhor por que razão, num idoso, a memória a longo prazo funciona melhor, mas não a memória a curto prazo? Por exemplo, porque é que um idoso se consegue lembrar de algo que se passou na sua infância ou juventude, mas baralha os nomes que ouviu na hora atrás?
Bom, os nomes é um caso especial. A verdade é que a nossa capacidade de decorar nomes é uma capacidade que vai declinando desde muito cedo na vida, por volta da casa dos quarenta anos – é um bocado como ter os cabelos brancos. Se o esquecimento for restrito aos nomes, muitas vezes não é doença, faz parte do envelhecimento. Já a aprendizagem, muitas vezes, é mesmo doença, não é, necessariamente, uma característica da idade. O que interfere, muitas vezes, na memória recente é mesmo um problema da aprendizagem. Repare, o dia muda todos os dias, os recados mudam todos os dias, o objecto a, o objecto b ou a conversa de há uma hora muda. Eu só me vou lembrar desses feitos recentes se conseguir aprendê-los.

Se dissermos que o doente tem um problema na memória recente, muitas vezes o que ele tem é um defeito de aprendizagem. Isto porque são coisas novas que devia ter aprendido nos últimos dias, mas não foi capaz de fixar, não foi capaz de aprender e, portanto, não se vai lembrar. As memórias remotas, as memórias do passado, essas estão guardadas em outro circuito do cérebro, em outras zonas do cérebro. O acesso a elas, portanto, até devia estar mais facilitado pelo facto da pessoa ter um problema na memória recente. Isto é muito comum nos doentes com doenças degenerativas da memória, nas fases iniciais, em que apresentam problemas na memória recente e, por isso, estão constantemente a falar do passado, como se o passado estivesse mais recente na vida deles. Têm um acesso mais facilitado a essa parte do cérebro do que teriam, eventualmente, em outras alturas em que a memória recente funcionava normalmente. 

Mas também já não é tão fácil criar uma ligação sináptica de raiz e fortalecê-la, principalmente.
Sim, sim. isso também é verdade. O que acontece é que, por outro lado, também é verdade que as doenças degenerativas, nomeadamente as doenças degenerativas da memória, são muito prevalentes nas idades mais avançadas. Muitas vezes, os erros feitos pela memória recente, que vemos em pessoas de 80 anos e que são interpretadas pela população geral como sendo normais para aquela idade, não são normais. Ou seja, muitas das pessoas com idade com esquecimentos podem ter, na verdade, formas muito iniciais de doenças degenerativas ou outro tipo de doenças. Quem é completamente saudável, pode aprender com mais dificuldade, pode aprender mais devagar, mas continua a conseguir aprender, portanto, continua a conseguir fixar novos factos e novas memórias. Isso é muito evidente quando se vê uma pessoa saudável ao lado de alguém que não é.

Claro que é preciso ter em consideração que há muitas razões para as pessoas terem dificuldade em aprender. Se eu tiver 80 anos e for uma pessoa que ouve muito mal, eu vou perder metade das conversas. Até posso achar que estou a ouvir muito bem e não estou a ouvir. Se não ouvir bem não vou conseguir fixar coisa nenhuma. Muitas vezes, também, o motivo para o esquecimento não é o cérebro, são outros órgãos e sistemas. Mas um cérebro saudável continua a aprender, embora o faça com mais dificuldade. 

Quanto à demência na terceira idade, há uma dúvida muito séria que tenho. Reparo, e isto sou eu, que são muito raros os casos em que, quando o idoso não padece de Parkinson ou Alzheimer, não se utilize o nome demência.
Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Ou seja, demência não é uma doença. É o mesmo que dizer que o doente tem um abdómen agudo, ou seja, uma dor abdominal. Pode ser uma apendicite ou uma obstrução intestinal, por exemplo. Demência significa a perda de funções cognitivas – uma perda de funções cognitivas suficientemente grave para interferir com as actividades do dia-a-dia e que foi uma perda adquirida. Digo isto para a demência se distinguir dos atrasos mentais ou défices cognitivos que nascem connosco e que existem desde o início. É uma síndrome, não é uma doença. É uma perda de funções cognitivas que pode ser causada por várias razões, pode ser causada por doenças degenerativas, como a doença de Alzheimer, a doença de Corpos de Lewy, a doença de Parkinson ou, então, por lesões vasculares. O AVC é a segunda causa mais frequente de demência no idoso – nesse caso, é demência vascular. Quando uma pessoa tem perda de capacidades, se eu não tiver feito uma investigação, eu posso dizer esta pessoa tem uma demência, mas não estou a nomear uma doença, apenas uma síndrome.

Mas muitas vezes reparo, até em muitos profissionais de saúde, não provavelmente da área das neurociências, mas reparo que é muito comum dizer-se que determinada pessoa tem demência. Quando eu pergunto, “sim, mas estamos a falar, propriamente, do quê, demência do quê?”, essa pessoa não me sabe responder. Se, como afirmou, demência é o síndrome e não a doença em si, porque é que isto acontece?
Sim, isso tem duas ou três explicações, normalmente. A maior parte das vezes em que o clínico diz que o doente tem uma demência e não dá o nome à doença, ele está a referir-se a uma demência de causa degenerativa. Ou seja, depois de excluir outras causas de demências tratáveis, concluiu que é uma demência degenerativa. E porque é que ele não diz que é uma doença de Alzheimer? Porque, na verdade, o diagnóstico da doença de Alzheimer é complexo. Pode ser feito, depois, por uma autópsia, pode ser feito se houver uma forma genética que são raríssimas, pode ser feito um PET [Scan] Amilóide, que não é um exame de rotina e, portanto, fazemos um diagnóstico um bocadinho por exclusão, excluindo as demências tratáveis, as vasculares e outras coisas que possam confundir. Nesses casos, a conclusão a que chegamos é de que se trata de uma demência degenerativa. Mas, quando muito, podemos dizer que estamos perante uma doença de Alzheimer provável, ou um Corpos de Lewy provável. Não é uma doença de Alzheimer definitiva, porque o diagnóstico é mais complexo.

Mas, de facto, é verdade o que está a dizer – muitas vezes, nem sequer foi feita uma investigação. Isso é um erro, obviamente, mas, por outro lado, há ainda uma outra explicação. Os pacientes, na maior parte das vezes, chegam muito tarde à consulta. Ou seja, os próprios familiares assumem, muitas vezes, que é próprio da idade e deixam progredir até a uma fase em que todas as demências degenerativas já são iguais. Ou seja, o doente já está completamente dependente e já não apresenta aquelas características clínicas que permitem distinguir umas doenças das outras. Continuamos a poder excluir as tratáveis, mas, numa fase avançada, as doenças já são muito mais semelhantes e torna-se muito mais difícil fazer um diagnóstico etiológico, digamos assim, que é chamar o nome correcto à doença. Tem a ver com isso, com o facto do diagnóstico clínico ser complexo, exigir exames mais complicados e, também, com o facto dos doentes virem, muitas vezes, numa fase já muito avançada, em que já não é possível fazer uma distinção clínica entre os vários síndromes- Outros casos é mesmo porque não foi feito o diagnóstico. Esses são os casos que nos preocupam e que não deviam acontecer, obviamente. 

Focou que, quando os pacientes chegam ao consultório, vêm já num estado muito avançado da doença que não permite identificar, etiologicamente, ao certo, do que padecem. Isso é sinal de que há, ainda, grandes falhas na forma como os pacientes com demência são orientados para o profissional correcto e para a terapêutica correcta.
Não é só, bom… Essa é uma pergunta que tem várias respostas.

Ou seja, ainda é difícil para a população em geral, neste campo, aceder a um bom cuidado…
Nem é só no diagnóstico, não é? É difícil em todas as fases da doença. É difícil o acesso ao diagnóstico correcto, muitas vezes, e de forma rápida, e é difícil o acesso – mais importante do que isso, até – a cuidados gerais. Cuidados tão simples como cuidados de enfermagem, de acompanhamento, de fisioterapia, todas essas coisas que faltam. Nós temos muitos doentes que não conseguem fazer o acompanhamento ideal, mesmo com toda a atenção da família – no sentido de o trazer ao médico, fazer os exames, tentar fazer o diagnóstico -, porque não não têm a oportunidade, depois, de serem devidamente estimulados, estar no local onde era feita a terapêutica a horas e onde se fazia a fisioterapia. Portanto, a dificuldade com os cuidados na terceira idade é transversal a todas as fases da demência, desde o diagnóstico, acompanhamento e até aos cuidados paliativos, que também faltam.

Não é só no nosso país – são os diagnósticos complexos e são os cuidados multidisciplinares que faltam – mas, se calhar, estamos melhor do que outros continentes, seguramente. Mas sim, há um desinvestimento nesta parte da população. Não quero estar a omitir, a verdade é esta. Não sei se por razões políticas ou por outras questões, mas a verdade é que há um desinvestimento nesta franja da população. Ainda por cima, com o aumento da esperança média de vida, são uma percentagem muito significativa da população e são pessoas particularmente vulneráveis, doentes, que mereciam cuidados melhores, sem dúvida. 

Mas muitas das vezes, a verdade é que o que se torna difícil é mesmo o básico – o médico de família, por vezes, identificar e direccionar para o neurologista pelo SNS, ou então, também se torna difícil, por questões monetárias, aceder ao particular.
Não é só aí, não é só aí. E é difícil obter fisioterapia, é difícil obter cuidados domiciliários, é difícil obter cuidados paliativos, é transversal, não é só o neurologista. Se calhar, em muitos casos, o médico de família até poderia fazer o diagnóstico, mas é difícil, também, o acesso ao médico de família, se pensarmos que ainda há uma parte da população portuguesa que ainda não está abrangida por um, devido aos problemas que temos ao nível da distribuição médica na rede nacional do nosso SNS.  É transversal, a realidade é esta, ainda por cima quando os cuidados vão ficando cada vez mais diferenciados. Existem ferramentas para investigar estas doenças. Infelizmente, não temos tido novas ferramentas no tratamento farmacológico, não tem havido muitos avanços nos novos medicamentos para estas doenças, mas por exemplo, para o Parkinson, há várias medicações com bons resultados. Atendendo, no entanto, à complexidade e preço dos exames e das ferramentas terapêuticas disponíveis, faz com que seja cada vez mais difícil ter um cuidado de excelência generalizado para toda a população.

E muitas vezes, essa falta de cuidado para com o idoso, pode gerar atritos ou tensões por essa falta de saber lidar, de se saber com o que se está a lidar.
E isso traz outro problema. Imagine que tem 50 anos, a sua mãe tem 80 e tem uma demência degenerativa. Se não souber como lidar, qual o diagnóstico que tem, qual o prognóstico, o que pode fazer para ajudar a mãe, muitas vezes, a filha não só não tem a formação ou informação necessárias, como trabalha, tem de cuidar dos filhos, tem de cuidar da mãe e, se não tiver apoios suficientes, a situação vai-se complicar, uma vez que se continuar a trabalhar, vai chegar a uma altura em que ou dá apoio à mãe ou trabalha. O que eu vejo é que, em Portugal, pelo menos, nós ainda temos, no geral, famílias solidárias, pessoas que fazem um enorme esforço para conseguirem acompanhar os seus familiares. Fazem um esforço, com sacrifício pessoal imenso, para acompanhar os seus familiares, mas têm, efectivamente, muitas poucas ajudas. Portanto, ou têm uma excelente capacidade económica e conseguem contornar um bocado os problemas, ou estão em dificuldades. E isso são coisas que não se esgotam, tão pouco ou mais ou menos, na consulta do neurologista. Não é assim tão difícil para a maior parte das pessoas fazerem um esforço, dispor de um valor para terem uma consulta privada. Mas, se pensarmos no todo que estas doenças implicam –  os exames complementares, a medicação, as fraldas, as cadeiras de rodas, as terapias, os cuidados domiciliários -, tudo isso é um encargo enorme para as famílias.

E mesmo que as pessoas sejam bem intencionadas, essa falta de informação pode-se alargar a pessoal especializado, como enfermeiros ou auxiliares dos lares, por exemplo, o que pode levar a constrangimentos ou tensões desnecessárias.
Isso leva a outra questão ainda! A ‘Alzheimer Portugal’ é uma associação já com expressão e que promove acções de formação na área da demência – umas são gratuitas, outros são cursos de formação -, mas não é obrigatório. Os funcionários que trabalham nos lares não são obrigados a terem qualquer tipo de certificação ou qualquer tipo de diferenciação específica nesta área. Como a maior parte dos utentes dos lares são dependentes, não são capazes de estarem sozinhos e muitos têm quadros de degeneração cognitiva – era ideal que fosse obrigatório para quem quer abrir um lar, que tivesse pessoal com formação nesta área, precisamente para não acontecer o que acontece actualmente. Os lares já têm uma série de regras de funcionamento e o mesmo acontece com a enfermagem – há coisas que estão muito bem definidas na legislação que regulamenta os lares. Formação específica, no entanto, para o tratamento de doenças degenerativas e dos quadros de degeneração cognitiva não existe. Isso faz com que haja pessoas que tenham vontade – há pessoas que procuram espontaneamente fazer formação nesta área, mas a maior parte dos auxiliares, e por aí em diante, não têm formação específica, de facto.

Falando agora na questão da prevenção destas patologias, vi um pequeno vídeo seu, de um outra entrevista, em que focava é que era muito importante não nos focarmos só num aspecto, mas falou da música, das caminhadas, do estímulo intelectual.
A noção que temos é que para prevenir uma demência, para prevenir uma deterioração cognitiva – não havendo um tratamento preventivo 100% eficaz -, devemos aumentar a nossa plasticidade cerebral, aumentar a nossa reserva cognitiva. O que devemos fazer é tentar prevenir todas as doenças que pudermos prevenir. Prevenir as doenças cardiovasculares, controlar os níveis de colesterol, tratar a hipertensão precocemente, tratar a diabetes, ou seja, as medidas gerais preventivas. Essa é uma parte.

Depois, o que podemos fazer para termos o cérebro disponível para aumentar a nossa reserva cognitiva? É,de facto, não descuramos a actividade física – aqui, a actividade que interessa é a actividade aeróbica, andar a pé, ginástica – sabendo, hoje em dia, que há estudos científicos que provam que o exercício físico melhora a actividade cognitiva. Melhora não só a parte vascular, mas porque, no exercício, também se libertam uma série de substâncias que são benéficas para o cérebro, cujo efeito é muito mais rápido do que pensávamos. Mas depois, em termos de estimulação cognitiva, não basta o exercício físico, temos de nos manter intelectualmente activos. Se nós estimularmos, apenas, a nossa capacidade de fazer contas, o cálculo, vamos ficar muito bons a cálculo, mas não quer dizer que o resto das funções cognitivas acompanhem. O que temos de fazer é uma estimulação global, manter-nos activos e vários tipos de interacção social. Umas das coisas interessantes mas não positivas, infelizmente, sobre o que aconteceu agora no confinamento, é que muitos dos meus doentes, pelo facto de terem estado em confinamento com muito menos contacto com a família, muito menos contacto com outras pessoas e amigos, regrediram imenso em termos cognitivos. Depois nós perguntamos: “Não fez a medicação na mesma?” “Fiz!” “Está deprimido?” “Não necessariamente”. Mas só a diminuição dos contactos sociais, da conversa, do estímulo intelectual geral, diminui a nossa capacidade cognitiva. Devemos manter-nos activos de todas as maneiras possíveis física e intelectualmente. 

Por exemplo, focou a linguagem musical e como o cálculo. Se pensarmos que uma música se divide por compassos e tempos, também é uma forma de treinar o cálculo.
A atenção, a concentração e a audição obviamente. A música transmite emoções, também é uma forma de modelar as nossas emoções. Ao dançar, articulamos, especificamente, capacidades espaciais, além das capacidades físicas. A estimulação deve ser o mais completa e o mais abrangente possível.

Quanto a andar, já há uns três anos que comecei a fazer caminhadas de forma bastante frequente, até, este ano é que houve uma grande estagnação. É o meu exercício de eleição. No entanto, notei que, nos períodos em que fazia essas caminhadas de forma assídua, ficava mais focada e com maior capacidade de atenção. Estava mais desperta para as ideias. Faz sentido, para si, eu dizer isto?
Claro que faz porque libertamos endorfinas, adrenalina e isso aumenta a nossa capacidade de concentração. Como a nossa capacidade de concentração e de atenção influencia directamente a nossa aprendizagem, se estiver mais concentrada numa coisa consigo controlar melhor a atenção e aprender aquela tarefa melhor. E quem faz exercício, muitas vezes, é uma forma de estimular e aliviar também a cabeça.

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