In Media Res #3 – Paula Rego e a vida que é arte
In media res é um espaço de ensaio a partir de elementos culturais. Reflexões desprovidas da lógica cronológica. O privilégio da ordem das nossas coisas. Sem pretensão avaliativa ou necessidade de aferição científica. Comprometida, somente, com a turva impressão pessoal do mundo das coisas. In media res porque todos surgimos no meio da História.
A certa altura, em Paula Rego, Histórias & Segredos, um documentário de Nick Willing, filho da pintora, narra-se um acontecimento terrível. Na sua própria casa, num normal serão com visitas, Paula Rego desce as escadas para encontrar o seu marido aos beijos com uma amiga da família. Imagine-se a brutalidade de enfrentar, literalmente no lance seguinte, a traição. Não ter firme casa íntima capaz de responder a tal agressão. É a mais impiedosa forma de roubo. Que espaço resta à intimidade?
Claro que o primeiro impulso foi chorar. Saber-se ferida. Depois, foi encontrar na tragédia pessoal motivo artístico. A mulher a mais foi veneno de um dos quadros da pintora. A biografia intercede, incisivamente, a obra. Para nós, meros espectadores, a maior revelação do filme não será tanto a curiosidade biográfica mas, sim, a influência desses acontecimentos na obra da autora.
Não é especial novidade que os criadores partem, muitas das vezes, do sensível íntimo das perceções do mundo para a construção do objeto artístico. A ideia nasce no reduto mais íntimo do ser, daí o seu carácter único e não partilhável, e manifesta-se com tamanha necessidade que exige uma linguagem, uma materialização, e, assim, por via da expressão artística, ascende a uma esfera pública capaz de estabelecer um diálogo social. Pese embora a universalidade comunicacional, haverá, sempre, uma parte indecifrável do objeto. Esse campo livre onde só o autor andou.
O génio admirável de Paula Rego reside na forma como escancara a porta à intimidade. Nenhum aspeto estético das suas pinturas se compromete pela forma brusca como lhes atira aquilo que só tem de seu. Há, no seu discurso, uma eloquente inevitabilidade, entregue com uma calma quase ingénua.
Mora, em Paula Rego, o segredo das grandes coisas. Ensina-nos como a arte pode ser recreio da Humanidade. Ser-se tudo quanto se pode ser, com ou sem vontade premeditada. A propósito de uma tela pintada durante a ditadura, Paula Rego diz ter sentido uma certa compaixão pela humanidade de Salazar. Um sentimento que não condizia com o seu real desprezo pela situação política e consequente personagem simbólica. Era a arte a fazê-la pensar coisas diferentes. Abstrair-se do pensamento normativo da realidade e caminhar, sem despojo de acutilância, pelos bravos campos livres.
Até o episódio da sala. Aquela mulher veneno havia sido, noutro tempo, a própria Paula Rego. Também ela fora a mulher a mais do primeiro casamento do marido. Empurrar-nos-ia o espírito para uma lógica de culpa e redenção. Contudo, a fineza humana de Paula Rego é a forma como nos apresenta a vida sem escusa. Como se, pela mera enunciação da sua vivência, erguesse a bandeira da liberdade plena.
À mulher, constrange-se o direito de ser tudo. Porém, Paula Rego amou e foi amada, conquistou e deixou-se ser conquistada, afastou-se, arrebatou-se, revoltou-se e, por fim, abriu-se. Na fina linha da antonímia existencial, sofreu. E, talvez por isso, pintou. Não lhe ficou nada por viver. Foi tudo.
Por isso, naquele momento em que lê, diante do seu filho, a carta de despedida do marido sabemos que, pese embora o caminho errante, na verdade, tudo se acertou. Não se disfarça a sensação de harmonia quando nos dispomos diante da vida e obra da pintora. Soa sempre a um “É claro que tinha de ser assim”. Como se tornasse cristalina a conturbada razão de existirmos.
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