A caminhada musical de Arvo Pärt, um dos mais sensíveis e empolgantes criadores de música erudita e religiosa
Proveniente da Estónia, é um dos mais sensíveis e empolgantes criadores de música erudita e religiosa. Arvo Pärt é o seu nome, nascido a 11 de setembro de 1935. Seguindo as influentes campanhas criativas de música oriundas desse leste europeu, conseguiu tornar-se de tal forma inovador que, no meio dos seus minimalismos, criou um estilo próprio: o tintinnabuli, que consiste numa passada lenta e meditativa, inspirada no canto gregoriano, que é, nada mais do que um tilintar intermitente e resplandecente na harmonia da música, tal e qual como um conjunto de sinos. Paulatina e efervescente, é assim a composição reluzente de alguém que aspira, declaradamente, ao divino.
Nascido no centro da Estónia, cresceu com a sua mãe e com o padrasto no norte desse país. O seu interesse pelo piano começou desde pequeno e a educação musical iniciou-se logo aos sete anos de idade. Na adolescência, já compunha música e só o deixaria de fazer quando foi obrigado a cumprir o serviço militar obrigatório, onde aprendeu a tocar instrumentos de percussão com a banda do seu escalão. Com este serviço completo, inscreveu-se no conservatório da capital do país, Tallinn, e estudou composição musical com o célebre pianista nacional Heino Eller. Foi experimentando composições suas em filmes e em pequenas peças de teatro e chegou a compor a sua primeira cantata (composição para voz) pouco tempo depois, uma peça que foi entoada por um coro e orquestra de crianças.
De 1957 a 1967, ganhou traquejo profissional como técnico e produtor de som na estação de rádio pública do estado do seu país. Não obstante, nunca deixou de compor, conseguindo arrecadar alguns prémios, nomeadamente a nível nacional. A sua música estava infundida com os contributos da música neoclássica, da parte dos compositores Béla Bartók, húngaro, e o russo Sergei Prokofiev, pouco tempo antes de se render ao serialismo (um método de composição musical que resulta da conjugação de várias séries musicais), do qual nasce o dodecafonismo do austríaco Arnold Schoenberg, onde são doze os tons/as tonalidades musicais nas quais se sustenta a composição de uma dada peça musical, sem primazia atribuída a qualquer uma delas.
Pärt comporia a sua primeira peça associada à música religiosa em “Credo” (1968), que o permitiu ir em busca das origens da música erudita, nomeadamente das suas proveniências medievais e renascentistas, que catapultaram a sua expressão musical para um desbloqueio criativo (“Collage sur B-A-C-H”, de 1964, mostra esta viagem para os apogeus da música erudita ocidental). Apesar disso, e dado residir em plena extensão territorial da União Soviética, veria a sua peça ser subtilmente censurada e sonegada dos palcos. É nesta fase que vai surgindo o seu cunho musical pessoal, a célebre técnica conhecida como a tintinnabuli, que irá diferenciar a sua composição de tantas outras.
Para se afirmar plenamente, porém, perante os constrangimentos associados à política da União Soviética, vê-se forçado a emigrar para Viena, no ano de 1980, para, um ano depois, partir para Berlim, cidade onde ainda dispõe de residência, embora intermitente com a de Laulasmaa (cidade onde se encontra a sua própria instituição), situada nos arredores da capital do seu país, para onde voltaria somente no século XXI. Como prova da sua valia em prol e em torno da música sacra, seria apontado como membro do Pontifício Conselho para a Cultura, num mandato que durou entre 2011 e 2016. É, precisamente, esta derivação para a fé (ortodoxa) cristã que o faz suplantar as origens musicais folclóricas em torno de um ideal mais universal e transcendental.
É um percurso sorridente e diversificado aquele que Pärt trilha e que vai despontando na década de 1970. Uma das suas peças inaugurais é “Für Alina”, de 1976, que homenageia a peça “Für Elise”, do alemão Beethoven, e onde se anteveem os valores de introspeção e de elevação espiritual, em busca da paz que chega com o tintinnabuli; à imagem da novidade de “Pari intervallo”, que compõe com várias possibilidades de instrumentos. Já “Cantus in Memoriam Benjamin Britten” (1977) é composta para uma orquestra de cordas e para o uso do sino e procura ser referenciada por um simples motif (uma nota ou sucessão de notas que predomina durante uma dada composição musical) melódico, que faz uso do silêncio como força do seu minimalismo musical. É uma elegia dirigida, precisamente, ao compositor inglês Benjamin Britten, a quem admirava a pureza e a humanidade. É uma das suas peças mais conhecidas e intensivamente usadas em televisão e em cinema, para além de ser tocada em diversos palcos.
Com fama similar é a composição “Fratres” (irmãos), composição essa tripartida e sem instrumentos fixos. Assim, dispõe-se à variação em nove sequências de cordas que navegam em três vozes principais, com vista a captar uma ideia de inacessibilidade da eternidade e da sublimidade do instante. São dois argumentos para o desenvolvimento de um autêntico minimalismo sagrado e divino, aos quais se juntam “Tabula Rasa” (1977, composta pelos movimentos “Ludus”, jogo, e “Silentium”, silêncio, um duplo concerto para violinos, pianos e uma orquestra de câmara) e “Spiegel im Spiegel” (1978, que contrasta uma voz melódica a uma voz “tintinnabular“, suscitadora de uma sensação de um espelhar infinito, repetidora de um som sem fim, que marca o passo desta composição de dez minutos).
Esta transição para uma música sagrada realiza-se com o silêncio musical que lhe é (quase) imposto pelo Estado e pela censura, mas que lhe permite investir no seu estudo e na sua formação autodidata. Só assim é que Pärt consegue travar conhecimento com a música coral e, assim, superar uma crise que lhe tinha retirado a fé na possibilidade de fazer valer a sua composição. É um estudo que não cessa durante o seu percurso de vida e que, importa referir, ganha asas na sua Terceira Sinfonia, datada de 1971, a primeira a refletir a sua paixão pelo canto gregoriano e pela descoberta da polifonia europeia, orientada por duas ou mais linhas de melodia musical.
Este caminho desenha-se, desta feita, com um sentido muito puro, à medida em que se faz valer do latim ou da língua eslava usada nas cerimónias da Igreja Ortodoxa. É deste alinhamento com essa parte da história da música que compõe peças como “Berliner Messe” (1990, apresentada em Berlim), voltando-a para um coro e para uma orquestra de cordas assumir uma autêntica assunção de fé e de reverência do divino. Um ano antes, havia composto “Passio”, inspirada na Paixão Segundo São João, um dos evangelhos bíblicos. Para esta, pensou num barítono (Jesus), num tenor (Pôncio Pilatos), num quarteto de vozes e num grupo amplo de cordas e de teclas, desde o violino ao órgão.
Ainda antes, em 1984, adaptou o “Te Deum”, alinhando três coros, um piano preparado, uma divisão do grupo de cordas na entoação das melodias e no recurso a uma harpa de vento (que funciona quase como um drone), com o sentido de extrair uma sensação de infinidade no tempo, na descoberta do silêncio e do vazio como fonte rica e viva de serenidade. “Magnificat”, de 1989, é mais um exemplo desta dimensão etérea, destinada a um coro partido em cinco partes, entre sopranos, altos, tenores e baixos, ao longo de sete minutos. De referência são, também, as “Beatitudes” (1991), também com a duração de sete minutos e com um sentido recitativo por um grupo de vozes, tratando-se de um dos primeiros trabalhos de Pärt em inglês; à imagem de “Miserere” (1992), numa caminhada pelo pecado e pelo implorar por misericórdia, chegado o momento de iminente catástrofe.
Os trabalhos de cariz cristão não cessam nos limites da Bíblia, transpondo-a como no caso de “Cecilia, Vergine Romana” (2000), um ilustre exemplo da sua íntima relação com as celebrações de santidades e de efemérides bíblicas. Com mais uma orquestra bem reforçada do ponto de vista instrumental e coral, marca mais um passo quanto ao seu “cancioneiro” vivo. É algo similar ao papel que “Psalom” assume, no ano de 1995, embora para um quarteto de cordas, algo raro na sua carreira, numa adaptação do salmo 112 (113 na Bíblia convencional) onde as pausas e os respetivos silêncios entoam a sua genialidade. Também o faz em “De Profundis” (1980), que enquadra o salmo 130 na sua possibilidade vocal e instrumental, ampliando-a em crescendo com o recurso a um quarteto de vozes, a um orgão e a instrumentos de percussão, que ditam o crescer da melodia até ao seu súbito silêncio. “Trisagion” (1994), que homenageia a oração de abertura das cerimónias da Liturgia Divina Ortodoxa, é um outro exemplo de repetidas homenagens e adaptações do seu trabalho ao longo da sua vida, com muita sensibilidade para questões bíblicas, mas também para evidências sociais.
A sua quarta sinfonia, composta em 2008, de seu nome “Los Angeles”, dedica-se a uma homenagem sentida aos anjos da guarda, produzindo um apelo às suas causas e à necessidade, implícita, de apelar ao mais alto da dignidade e do espírito humano para enfrentar as contrariedades políticas e sociais. Ainda num sentido divino e cristão, evidenciam-se, já neste século, as peças “The Deer’s Cry” (2008, a parte final de uma prece direcionada a São Patrício, protetor da República da Irlanda) e “Adam’s Lament” (2009), que adapta um texto de Silvano Atonita, um ancião da Igreja Ortodoxa que escreveu sobre Adão e a sua tentação, que Pärt associa a toda a humanidade e ao juízo de cada indivíduo
Arvo Pärt é, desta forma, um dos compositores do leste europeu mais destacados da atualidade, permanecendo e prevalecendo com a sua identidade imaculada e quase entregue a Deus e às suas causas divinas. Pärt foi-se metamorfoseando consoante as suas vivências pessoas e sociais, para além de uma formação contínua e empenhada nos alicerces da música erudita ocidental. Foi assim que, na sua própria e personalizada compreensão dos ideais do divino e do etéreo, formulou um registo único e capaz de se sintonizar com a transcendência tão invocada e muito menos materializada. Assim se faz a música de Pärt, num ontem, num hoje e num amanhã em perfeita convivência e em constante ascendência.