Gaza: partir para não voltar
Passagem de Rafah
Era o dia 9 de outubro de 2018 e Haneen tinha 24 anos. A noite já levava largas horas e o sono teimava em não lhe chegar. Sentada nos bancos desconfortáveis da chamada passagem de Rafah, escrevinhava histórias fictícias e reais, das que dificilmente se distinguem. Ao seu lado, quedavam-se dezenas de pessoas e famílias, todas à espera do mesmo, fugir. Correndo tudo bem, quando amanhecesse, estaria pela primeira vez fora do inferno onde nasceu: a Faixa de Gaza.
Esquecida no enclave costeiro da península Sinai, a Faixa de Gaza faz fronteira com o Mar Mediterrâneo, a Oeste; com o Egipto, a Sul; e com o território reclamado pelo Estado de Israel, a Norte e Este. Demora-se pouco mais de uma hora a percorrer de carro todos os seus 41 quilómetros de comprimento. É um retângulo de cerca de 365 quilómetros quadrados no qual estão espremidas 1,9 milhões pessoas, dos quais 1,4 milhões são refugiados.
Para quem lá vive, só há duas formas de sair. Ou o fazem através da chamada passagem de Erez, no extremo nordeste de Gaza, controlada por Israel; ou através da passagem de Rafah, no extremo sudoeste, que faz fronteira com o Egipto. Nenhuma opção é particularmente simples — ambas requerem aprovação das autoridades, e estão encerradas frequentemente, abrindo e fechando, muitas vezes, sem qualquer aviso. A passagem de Erez requer um visto de saída que, a não ser que se preencham certos critérios, é quase impossível de obter, o significa que, para a grande maioria dos habitantes de Gaza, a única opção de fuga é por Rafah. Mas os portões que a guardam nem sempre estão abertos: em 2014, abriram apenas 156 dias, pouco mais de metade do ano. Em 2015, 32 dias; em 2016, 44; e em 2017, 36.Foi esse o caminho que Haneen seguiu: “Tive de pagar 1500 dólares, através dos tanseeqat”. Os tanseeqat, de que Haneen fala, são uma espécie de agentes de viagem que coordenam a saída dos habitantes de Gaza com oficiais egípcios, acelerando o processo: “Ou pões o teu nome na fronteira e depois esperas meses ou anos até ao teu nome constar na lista, ou vais através dos tanseeqat, esperas um ou dois dias e estás logo no Egito. Mas é preciso pagar muito dinheiro”. Nem toda a gente consegue arranjar os 1500 dólares ou mais que são pedidos. Muitos ficam à espera — só em 2016, havia quase 30 mil pessoas registadas para sair.
Haneen conseguiu juntar os 1500 dólares graças a uma campanha de crowdfunding organizada por uma amiga palestiniana. Sozinha, nunca teria conseguido — são escassos os trabalhos em Gaza e Haneen nunca conseguiu manter um a longo prazo. Ia trabalhando aqui e ali sempre que surgia a oportunidade, explica: “Às vezes trabalhava numa creche e cheguei a trabalhar numa padaria”. Em 2019, a taxa de desemprego em Gaza era de 45,1%. Para mulheres, é ainda mais difícil — seis em cada 10 não têm emprego.
A falta de oportunidades é uma das grandes razões que leva a população de Gaza, especialmente os mais jovens, a querer sair, mas está longe de ser a única. Em agosto de 2012, uma equipa da Organização das Nações Unidas (ONU) produziu um relatório que questionava “Gaza em 2020: um sítio habitável?“. Na conclusão, lia-se que teriam de ser feitos “esforços herculeanos” a praticamente todos os níveis — electricidade, água, saneamento, educação e saúde — de forma a que fosse possível viver na região. Segundo Matthias Schmale, diretor de operações da Agência da ONU de Assistência a Refugiados Palestinianos (UNRWA) em Gaza, esses esforços não foram feitos: “Bem, deixa-me ser mais preciso. Vários esforços foram feitos, mas a verdade é que as condições de vida estão piores”, lamenta. “O desemprego cresceu, 97% da população não tem acesso a água potável, há uma crise ecológica sem precedentes. Agora que chegamos a 2020, perguntam-me várias vezes se Gaza é habitável. E o que eu digo sempre é que não era preciso chegar a 2020 para perceber que não é.”
Apesar do fornecimento de electricidade ter melhorado nos últimos anos, este continua a ser terrivelmente precário. Em janeiro de 2019, os habitantes de Gaza tinham electricidade apenas sete horas por dia. Gerem a sua vida à volta dos poucos momentos em que há energia — não é incomum levantarem-se a meio da noite para usar máquinas de lavar ou dar voltas ao quarteirão do prédio até à electricidade voltar, como me contou uma palestiniana que morava no nono andar de um prédio na Cidade de Gaza e, grávida de sete meses, não conseguia chegar a casa sem o elevador.
Para Matthias, a grande causa desta crise é o bloqueio terrestre, marítimo e aéreo imposto por Israel e pelo Egito a Gaza, considerado uma violação da lei internacional tanto por membros de organizações humanitárias como especialistas em Direitos Humanos. As restrições de movimento começaram em 1991, quatro anos após o início da primeira Intifada (em português, agitação ou revolta), e foram-se intensificando com a construção da primeira barreira física ao longo da Faixa, em 1994, e com a segunda Intifada, nos anos 2000. Mas a fase mais asfixiante apenas começou em 2006, após o partido político Hamas, considerada uma organização terrorista por Israel, pelos Estados Unidos da América (EUA) e pela União Europeia, ter ganho as eleições e ter consolidado o seu poder em Gaza, separando politicamente a Faixa da Cisjordânia, a região mais a Este do território palestiniano, governada pela Autoridade Palestiniana, o governo interino do Estado da Palestina, administrada pelo partido político Fatah.
“Eles estavam à espera que o Fatah ganhasse”, disse-me o cientista político e autor Norman Finkelstein, “e isso não aconteceu. Os habitantes de Gaza foram castigados por exercer os seus direitos democráticos. Na altura, o ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter [fundador do Carter Center, uma das organizações que monitorizou as eleições em 2006] disse que as eleições eram livres e justas, mas eles foram castigados”. Não era suposto o Hamas ganhar, explica. E os palestinianos estavam prestes a pagar um preço bem alto.
Norman Finkelstein investiga a ocupação israelita há mais de três décadas. Em 2018, publicou Gaza: An Inquest Into Its Martyrdom, onde escreve extensivamente sobre os abusos de Israel na Faixa. Após o bloqueio começar, “a atividade económica em Gaza parou, passando para modo de sobrevivência”. A certa altura, proibia-se até a entrada de coentros, batatas fritas, pintainhos, chocolates e instrumentos musicais. Razões de segurança, diziam.
Numa entrevista ao Democracy Now em 2018, explica que esta crise não é igual às outras: “Gaza é diferente de qualquer outra crise humanitária. Porquê? Porque se há um desastre natural, como uma seca, as pessoas mudam-se. Se há um desastre criado por humanos, como na Síria, as pessoas mudam-se. Gaza é o único sítio no mundo que é inabitável e as pessoas não se podem mudar. Não podem sair. Estão encurraladas”. Talvez seja por isso que Gaza é chamada tantas vezes de “prisão ao ar livre“.
Mesmo com a passagem garantida, Haneen passou a noite de 10 de outubro na fronteira. Umas horas depois do portão que os separa do Egito abrir, as quase cem pessoas que esperavam a sua vez para atravessar foram avisadas que teriam de esperar até de manhã: “Eu estava muito assustada. Durante a noite, começava a chorar e questionava-me se estava a fazer a coisa certa. Estaria pronta para sair para o mundo, assim?”
Cidade de Gaza
Haneen nasceu na Cidade de Gaza, o principal centro urbano da região, onde vivem mais de 700 mil pessoas. Era 1993. A história da família de Hannen não é diferente de muitas outras — fazem parte das centenas de milhares de famílias refugiadas em Gaza cujos destinos foram traçados há mais de 70 anos. A 14 de maio de 1948, após séculos de perseguição do povo judeu, David-Ben Gurion proclamou a criação do estado de Israel. Yom HaAtzmaut tornou-se um dos mais importantes feriados do país, celebrando-se anualmente em abril ou maio. Do outro lado da barreira, comemora-se de uma forma muito diferente. Todos os anos, no dia 15 de maio, os palestinianos relembram Al Nakba (em português, a catástrofe), que assinala a limpeza étnica e destruição perpetrada pelas forças militares israelitas durante a guerra de 1947-1949. Só em 1948, estima-se que milhares de pessoas palestinianas tenham sido massacradas, e cerca de 800 mil tenham sido expulsas das suas terras. A independência de uns é a catástrofe de outros. “Eu cresci a ouvir a história dos meus pais e dos meus avós. Eles tinham uma casa do outro lado, na terra dos meus antepassados. Os meus avós ainda tinham esperança de voltar. Achavam que era temporário, embora já tenha sido há mais de 70 anos”, conta Haneen.
Foi também há mais de 70 anos, a 11 de dezembro de 1948, que a ONU adotou o “direito de retorno” para os refugiados palestinianos. Na resolução 194, lê-se: “Aos refugiados que desejem regressar a suas casas e viver em paz com os seus vizinhos deve ser permitido o regresso o mais cedo possível, e deve ser paga uma compensação pelas suas propriedades, para os que escolham não regressar, e pela perda ou dano à propriedade que, de acordo com os princípios do direito internacional ou da equidade, deve ser tratada pelos governos ou autoridades responsáveis”. Há sete décadas que, todos os anos (com a exceção de 1956, 1960 e 1964), a Assembleia Geral da ONU reafirma este direito. Há sete décadas que o governo israelita o recusa.
Antes da Nakba, a família de Haneen vivia em Bayt Tima, uma aldeia a 21 quilómetros de Gaza. Os avós guardaram a chave de casa até morrer, mas não há casa para onde voltar. Bayt Tima foi uma das cerca de 500 cidades e aldeias destruídas para dar lugar ao recém-criado Estado de Israel. Hoje em dia, onde viviam os seus avós, só se encontram ruínas: “Árvores de sicómoro e alfarroba crescem por entre os escombros”, escreve o historiador palestiniano Walid Khalidi. Para muitos, falar da sua Nakba não é fácil — traz demasiadas memórias, demasiada dor. Por vezes, conta Haneen, lágrimas corriam o rosto da avó. Mas sorria sempre quando relembrava a sua infância, quando ia apanhar frutas com o pai e preparar o pequeno-almoço para toda a família: “Viviam todos juntos. Ela lembrava-se com muito carinho destas memórias.”
A família de Haneen sempre foi muito tradicional. Por isso, nunca lhes contou a verdade sobre a sua saída: “Disse-lhes que era um bom trabalho, com um bom salário, que me ia permitir sustentar a família. Disse-lhes a eles e à família do meu marido”. Apenas o marido sabe a verdade — tomaram a decisão a pensar no futuro dos seus dois filhos ainda pequenos. Não foi de um momento para o outro, não houve nenhuma “gota de água”, se bem que razões não faltassem: a decisão foi-se materializando por fases. Mas a primeira vez que pensou seriamente em abandonar a Faixa foi no verão de 2014, durante a chamada Operação Margem Protetora.
Deir al-Balah
A sequência de eventos que, em 2014, levou Gaza novamente à beira do colapso está bem estabelecida. Mas, para o jornalista Ben Ehrenreich, que vivia na Palestina quando tudo começou, não é de governos ou acordos que se lembra quando olha para trás: “O que me lembro desse longo verão não tem nada a ver com o Fatah ou o Hamas ou o governo unitário ou o que pareceu ser o fim real do processo de paz e da solução dos dois Estados”, escreve no seu livro The Way To The Spring: Life and Death in Palestine, “vou lembrar-me desse verão como o verão de crianças a morrer.”
A 12 de junho de 2014, três adolescentes israelitas desapareceram na Cisjordânia. Três dias depois, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu declarava, numa reunião do Conselho de Ministros, ter provas de que o rapto de Gilad Shaar, Naftali Frankel e Eyal Yifrach tinha sido cometido por membros do Hamas: “o mesmo Hamas com quem Abu Mazen [Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Palestiniana] fez um governo unitário”. O ato, garantiu, teria repercussões severas. Se Netanyahu procurava um motivo para descredibilizar o Hamas enquanto partido político legítimo, este, pode-se dizer, caiu-lhe ao colo. A narrativa foi repetida ao longo dos dias seguintes. Depois, a invasão de Gaza: “Assim que as tropas atravessaram para a Faixa, Israel libertou descontroladamente o seu arsenal explosivo. A população e infraestrutura civil de Gaza (…) foram vítimas de um ataque implacável, indiscriminado, desproporcional e deliberado”, escreve o investigador Norman Finkelstein em Gaza: An Inquest Into Its Martyrdom.
Haneen tinha 20 anos durante o massacre, e tinha acabado de nascer a sua filha: “Nunca te esqueces de uma coisa destas”, disse. Viu edifícios bombardeados mesmo ao lado de sua casa: “Estava cheia de medo, não tínhamos nenhum abrigo para onde fugir”, conta, “nós deitamo-nos e a minha filha ficava no meio; o pai dela de um lado, eu do outro, como um escudo de proteção. Dormíamos longe da janela para que, caso explodisse uma bomba perto, o vidro não quebrasse para cima de nós. Olhava para a minha filha e pensava: ‘até quando é que isto vai continuar? Não dá para viver assim’.”
Os ataques duraram 51 dias, até que, a 26 de agosto, foi acordado um cessar-fogo. Num relatório produzido em 2016 pela equipa da ONU a trabalhar na Palestina, conclui-se que a operação foi “a mais devastadora ronda de hostilidades em Gaza desde o início da ocupação israelita em 1967“. Segundo a ONU, durante esses dois meses, 2251 pessoas palestinianas foram mortas, das quais 1462 eram civis. 551 tinham menos de 18 anos. Mais de 11 mil foram feridas, e 900 foram permanentemente incapacitadas. Mais de 18 mil famílias — cerca de 100 mil pessoas — viram as suas casas completamente destruídas. Para trás, ficaram 2,5 milhões de toneladas de ruínas. Do lado israelita, foram mortas 72 pessoas, das quais seis eram civis, e uma era menor. Cerca de 1600 israelitas foram feridos. Uma casa foi destruída. Aos 24 anos, quando conseguiu sair de Gaza a caminho de Portugal, Haneen já tinha vivido um bloqueio, a segunda Intifada, uma guerra civil entre os dois maiores partidos políticos — o Hamas e o Fatah — e vários massacres, como os de 2008, 2012, 2014 e 2018. “Isto não são guerras. Isto são massacres prolongados”, diz Norman Finkelstein. E não estamos a contar com os bombardeamentos que a população continua a experienciar até hoje. “No tempo em que cá estive”, disse-me o diretor da UNRWA em Gaza, Matthias Schmale, que se mudou para a Faixa em 2017, “já senti que estava no meio de uma guerra pelo menos cinco vezes. Mísseis a voar de trás para a frente, edifícios destruídos, pessoas assassinadas. Mesmo agora, por exemplo, consigo ouvir o barulho de drones de vigilância.”
Foi num destes bombardeamentos, por volta de 2016 ou 2017, que Haneen voltou a pensar em sair. Estava na sua cozinha, conta, quando uma bomba explodiu perto de sua casa. Desligou rapidamente o forno (“não sei de onde veio a inspiração”), pegou nos dois filhos pela mão e levou-os escada fora, cega pelo fumo que rodeava toda a casa. Nesse dia, Haneen e o marido começaram a discutir a sua saída. Não tinham nenhum plano concreto sobre como o fazer, mas a oportunidade surgiu em 2018, quando Haneen conheceu dois ativistas — uma israelita e um português, que trabalha na comunidade de Tamera, no Alentejo: “Foram eles que me apoiaram, que apoiaram a ideia de construir uma melhor vida para a minha família.”
Cairo
Haneen seguiu caminho para o Egito. Apesar de, tipicamente, a viagem não demorar muito mais do que cinco horas de carro, Haneen demorou todo o dia a percorrer os 400 quilómetros que separam Rafah do Cairo, capital do Egito: “Havia muitos checkpoints. No total, passei por qualquer coisa como 20. Mostras o passaporte, és revistada vezes e vezes sem conta. Estás sempre a parar. Dá para pensar o quanto nós, palestinianos, temos de lutar só para ir de um sítio para outro.”
Haneen chegou ao Cairo por volta das onze horas da noite, após um dia inteiro no pára-arranca dos postos de controlo. Estava exausta. Foi direta à casa da mãe de um amigo, onde ficou cerca de um mês. De todos os dias que passou no Cairo, lembra-se sobretudo de se perder. No metro, nos autocarros, nas ruas: “É quando te perdes que conheces as coisas”, dizia-me. Para alguém que esteve toda a vida presa em Gaza, era a liberdade de movimento que mais a entusiasmava.
Dois meses depois de iniciar a sua viagem, Haneen ouviu finalmente as palavras que desejava: “Parabéns, foi aprovado o teu visto Schengen”. Não cabia em si de felicidade — podia, finalmente, seguir caminho para Portugal.
Odemira
Chegou a Lisboa numa quinta-feira, 29 de novembro de 2018. Nunca tinha estado num avião, nem tão pouco num aeroporto. O único aeroporto de Gaza, o Aeroporto Internacional Yasser Arafat — em honra de um dos líderes palestinianos — esteve operacional apenas dois anos, de 1998 a 2000. Foi encerrado e parcialmente destruído durante a segunda Intifada. Arafat, prémio Nobel da Paz e um dos pais da luta pela libertação da Palestina, morreu quatro anos depois, em 2004, num país (ainda) ocupado. O aeroporto era visto, na altura da sua inauguração, como um símbolo da liberdade, independência e soberania de Gaza. Hoje, é apenas mais uma das suas ruínas.
Nada disto, no entanto, passava pela cabeça de Haneen enquanto o avião aterrava em Lisboa: “É uma grande sorte para uma mulher como eu estar a caminho da Europa sozinha. Não é nada comum”. O seu amigo português foi buscá-la ao aeroporto e, no dia seguinte, seguiram para o Alentejo. Por lá ficou — hoje vive numa comunidade em Odemira, onde cozinha, trabalha com animais e dá aulas de árabe online.
Assim que conseguir o visto de trabalho, poderá fazer um pedido de reagrupamento familiar, de acordo com o artigo 98º, n.º 1 da Lei de Estrangeiros. Depois, resta-lhe provar que “dispõe de alojamento” e “de meios de subsistência” para sustentar a sua família. Está neste processo há mais de um ano. Haneen não vê os seus filhos, de quatro e seis anos, desde que saiu de Gaza, em 2018. Recentemente, começaram a escrever-lhe cartas: “cartas para a mamã”, como ela lhes chama. Conseguindo o reagrupamento familiar, o marido e os dois filhos pequenos farão a mesma viagem que fez, através da passagem de Rafah: “Rafah tem muitos checkpoints e são dois dias de viagem, o que ainda é um bocado para ser fazer com duas crianças, mas eu disse-lhe para não trazer muita coisa. Basta duas mochilas pequenas para as crianças, uma mochila para ele e é isso. Aqui há tudo, há comida, há roupa…”
Para quem fica para trás, não há muitas razões para otimismo. A 28 de janeiro, o presidente estadunidense, Donald Trump, anunciava, com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a seu lado, um “plano de paz” para o Médio Oriente, negociado sem palestinianos. O chamado “acordo do século” nega o direito de retorno aos refugiados palestinianos e prevê a anexação de uma grande fatia do território da Cisjordânia em Israel, incluindo as centenas de colonatos ilegais que foram estabelecidos após 1967. O atual governo israelita promete ir ainda mais longe, e o mundo árabe parece ter-se reconciliado com a ideia — a 13 de Agosto, os Emirados Árabes Unidos abriram relações diplomáticas com Israel, um passo histórico aplaudido pelos países vizinhos no Golfo Pérsico.
“Se ao menos se afundasse no mar”, suspirava, em 1992, o então primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin. 28 anos depois, Gaza continua à tona. Os quase dois milhões de palestinianos que lá moram teimam em existir; aliás, partilham isso com todos os que vivem nos Territórios Ocupados. “Existir é resistir”, lê-se em muros um pouco por toda a Palestina. Apesar dos ataques, das humilhações diárias, do direito à auto-determinação negado há mais de sete décadas — ainda assim —, as pessoas continuam a atirar pedras, continuam a marchar pelo direito a voltar às terras de onde foram expulsas, continuam a resistir. Quando Haneen conta a história dos seus avós, expulsos de Bayt Tima em 1948, fala inevitavelmente da relação que tem com uma terra que nunca conheceu: “É uma lembrança de que temos de nos manter vivos”, diz. “É a única ligação que temos à terra dos nossos antepassados, à nossa origem, à nossa história. É pensar no que significa ser-se expulso e no que significaria voltar.”