Qual o papel dos órgãos de comunicação quando há pessoas que não querem saber dos factos?
Qual deve ser o papel dos órgãos de comunicação quando as pessoas já não querem informação factual? Como é que podemos combater facções que só se querem aproveitar da dor alheia se, antes, bastava mostrar as incongruências da sua formação duvidosa, mas isso agora só não chega como pode reforçar a sua base de apoio popular? O que fazer quando se dá voz a um especialista para consciencializar, mas isso tem, para essas pessoas o efeito contrário e essa consciencialização é vista como arrogância? O que fazer quando estas facções estão a aproveitar-se da revolta e dor pessoal justificadas daqueles que sofrem na pele as consequências, para aumentar ainda mais o descrédito das instituições?
No fundo, esqueçam os lunáticos do 5G, porque é disso mesmo que estamos a falar, do reforço e aproveitamento do descrédito das instituições e elites. Não foi a pandemia que espoletou esse sentimento. Esse descrédito já vem de há muito, mas nunca teve a atenção necessária. Quando assim é, não interessa se a pessoa que monopoliza esse sentimento diz coisas que vão contra uma base científica. Quando as coisas chegam a esse nível, não queremos saber de ciência. O que importa é que a população está a passar por consequências sérias, está cansada, e sendo assim, mesmo que estejamos a falar do cidadão comum que não corresponde ao protótipo da pessoa viciada em teorias das conspiração, essa pessoa vai ouvir e prestar atenção a quem lhe estenda a mão e lhe ofereça um espaço para desabafar a sua dor. Se estou a sofrer uma dura realidade por causa do vírus (quem não está?) interessa-me mais que alguém diga que o culpado não passa de uma mentira e tudo não passa de estratagema para me tramar. A comunicação social está a pagar agora, já não tanto pelo seu trabalho (sei que isto é discutível, sim, mas já vimos que estas pessoas não querem informação, é nesse sentido que falo) mas pela tentativa de a ligarem a essa mesma base institucional – daí a palavra ‘jornalixo’. Estamos num patamar em que já não interessa o trabalho jornalístico em si, mesmo que o poder de comunicação tenha falhado – essa é uma discussão à parte.
Chegamos a um nível em que se o próprio Einstein fosse vivo e, como tal, fosse convidado a ir a um telejornal explicar porque 2+2 são 4 e não 5, isso não importaria para nada. É o tal ‘jornalixo’ que reforça essa ideia por causa dos 15 milhões que recebe ou vai receber do governo ‘xuxalista’. O combate e o descrédito da intelectualidade já tem vindo a ser feito há anos e esse mesmo discurso veio de dentro para fora das próprias instituições — estamos a pagar bem caro agora. No fundo, sempre achei que pessoas bem informadas fariam escolhas melhores e isso reforçaria a base democrática, mas essa ideia caiu por terra nos últimos dias. Não estou a dizer isto de ânimo leve porque foi essa mesma ideia que me fez escolher ‘Comunicação’, mas estamos a atravessar uma nova e perigosa linha vermelha. Qual deve ser o papel do jornalismo, aqui? Não sei, simplesmente não sei, já que parece que tudo o que se possa fazer, jornalisticamente, resulta no objectivo contrário e o tiro pode, sempre, sair pela culatra.
O que os negacionistas pela verdade fazem não é apenas dizer que isto é tudo uma palhaçada e que as vacinas são um estratagema para uma nova ordem mundial, porque nos vão ser introduzidos um chips ou nanotecnologia para o Bill Gates nos controlar. Erramos, também, ao pensar que é suficiente colocar estes negacionistas no mesmo saco porque, facilmente, quem controla essas organizações se pode desvincular ou descartar das teorias mais peregrinas para, assim, oferecer uma falsa ideia de maior credibilidade. O que assusta, é que estas organizações já alimentam as suas páginas com testemunhos de quem está a passar por uma má experiência. Testemunhos, esses, que vão desde familiares que não tiveram oportunidade de oferecer um funeral condigno aos seus que partiram – uma culpa que se carrega por toda a vida, mesmo que saibamos racionalmente a razão, porque já não bastam as adversidades da vida como, ainda por cima, saber que a cerimónia de despedida de um ente amado não correspondeu, de todo, aos seus anseios ou foi contra aquilo que a pessoa era. Desde explorar as falhas do nosso SNS e mostrar como determinada pessoa já não está a receber o tratamento que precisa uma vez que não tem covid, ou como está sozinha no acompanhamento de um determinado familiar. Quando já se chega a tal, temos de admitir que o jogo vira por completo. Para estas pessoas, o vírus deixa de ser um estratagema do ‘Clube de Bilderberg’. A associação que passam a fazer é a seguinte, “isto são tudo balelas e o que sei é que estou a sofrer consequências por uma doença da qual nem sou portador.”
A ideia de bem comum está a tornar-se cada vez mais difícil. Como estamos num governo de esquerda, são esses que vamos culpar porque são esses que estão a dar a cara por medidas, já de si, impopulares, e o meios de comunicação levam por tabela, não tanto (e aqui espantem-se) pelos erros de comunicação que possamos identificar e que, na realidade existiram, mas pela ligações que estas organizações fazem entre a comunicação social e as instituições vigentes. Independentemente dessas ligações poderem existir ou não, a verdade é que basta, actualmente, um órgão de comunicação dar uma notícia que vai contra o que eu penso, para o denominar de ‘jornalixo’ e que a única razão pela qual publica essa notícia são os tais 15 milhões que são atirados, constantemente à cara nas caixas de comentários. Aqui está uma tempestade perfeita para estas mesmas pessoas acreditarem, por exemplo, que Trump ganhou mesmo as eleições e que quem fez Biden vencedor não foi o povo mas as demoníacas CNN, CNBC e outras que tais, porque a imprensa está toda ela institucionalizada e, por isso mesmo, não lhes convém um Presidente como Trump.
Por mais fácil que seja descredibilizar as informações falsas ou fake news, na realidade não o é, porque uma vez que publicar informação verdadeira parece não surtir o devido efeito, já estamos a falar de algo que extrapola o âmbito dos órgãos de comunicação que é, ou deveria ser, na sua base, publicar informação fidedigna. Mas não só essa informação verificada por profissionais não surte efeito como, ainda para mais, na confusão em que vivemos, pode reforçar o lado oposto ou dar-lhe ainda mais força. Na Suécia a pandemia tem-se agravado e as autoridades locais já estão a admitir que a estratégia escolhida tem falhado? Não importa, isso são fake news do ‘jornalixo’ que recebe os 15 milhões estatais. Na Suécia não querem máscaras e não estão todos a morrer! Quem publica essa informação que tu lês não tem o curso de comunicação ou jornalismo? Não importa, o curso não faz a pessoa e se é um autodidacta tem ainda mais valor. Não tem carteira de jornalista? Quantos profissionais de comunicação que conheces também não têm a carteira de jornalismo e publicam na imprensa dita profissional? As carteiras dos jornalistas profissionais estão sujas. E foi por isto mesmo que, nas manifestações de sábado, assistimos ao ataque dos jornalistas que estavam a cobrir essas mesmas manifestações.
Gostamos muito de falar das ‘bolhas sociais’ criadas nas redes e de como elas constringem as nossas tomadas de posição. Como, ao invés de estarmos abertos ao mundo na internet, essas mesmas ‘bolhas sociais’ tornam o nosso mundo cada vez mais fechado. Tal é verdade e também já abordei isso em outros textos. Mas se gostamos de abordar e de falar sobre ‘bolhas sociais’, então também nós temos de nos analisar e olhar ao espellho. Nunca pertenci a um meio verdadeiramente intelectualizado, é verdade. Não digo isto com vaidade ou desdém, é apenas um facto. Mas tal também me ajuda a perceber como os que gostam de informação e a consomem da melhor forma que sabem, também se deixam enredar e envolver demasiado na sua própria bolha social das redes. Eu também me incluo aqui porque, embora o meu meio social não seja intelectualizado nem consuma informação além do telejornal, eu, por defeito de formação, tenho de saber como consumir informação. E isso, de alguma forma, não ajuda, por vezes, a olhar para a realidade social tal como ela é, verdadeiramente, fora do ecrã do pc ou da folha do jornal. Por isso mesmo, erramos quase sempre na análise destes fenómenos, os desdenhamos sempre numa primeira fase e achamos que é muito fácil desacreditá-los porque, na nossa ingenuidade, pensamos que basta a publicação dos factos tal como são. Não, isso não basta.
Mas é por acharmos isso mesmo, numa primeira fase, que o nosso discurso, num primeiro momento, acaba por ser desperdiçado ou direcionado ao lado do verdadeiro alvo. Grande parte das pessoas não querem realmente saber o que determinado opinion maker de jornal escreve, logo o seu poder de influência não é assim tanto ou tão importante. Se for à rua e disser os nomes dos comentadores de jornal que gosto, muito poucos os conhecerão, mas o mesmo acontece com aqueles dos quais discordo. O seu poder de influência só sobe, realmente, se falarem num programa da manhã ou, então, num horário nobre de telejornal de um canal de sinal aberto. É triste mas é a realidade. E todos sabemos como os programas da manhã têm uma predileção por aqueles comentadores que “dizem as coisas tal como são” e anti-sistema. Mesmo que aquele comentador seja populista e sensacionalista ao máximo, a pessoa que o está a ouvir lembra-se daquela vez em que foi injustiçada num hospital, tratada com desdém ou vítima da desinformação das finanças ou segurança social, ou de todos os problemas que o ‘sistema’ supostamente já lhe provocou. Daquela amiga ou daquela pessoa que, quando precisou de ajuda social a teve logo, mas ela, que precisava, não teve sem bater o pé umas 50 vezes e, mesmo assim, já foi com sorte. Esse podia ter sido um caso isolado consigo, atenção, mas está a gostar de ouvir as estatísticas daquele comentador “que diz as coisas tal como são”, e não as contradiz nem quer saber se são exageradas ou não, porque ela viu, porque experienciou. Ou seja, acredita, não põe em causa e a argumentação consigo é difícil porque utiliza o argumento mais poderoso de todos, “passou-se comigo.”
Quando alguém me diz que não gosta de jornais, não liga a notícias, nem sequer àquela hora do telejornal, pergunto sempre o porquê, gosto de estender a conversa até ao máximo e gosto de ouvir e ouvir sem interromper. Essa pessoa não me diz que não liga a notícias porque não gostou de uma determinada reportagem de jornal ou de determinado comentador. Não me devolveu uma crítica sobre um determinado trabalho jornalístico em si. Em suma, o que me diz é que as notícias não lhe aquecem nem arrefecem, não contribuem em nada para a sua vida e, claro, a crítica da praxe, os políticos são todos a mesma coisa, portanto, porque é que me vou preocupar com eles? Eu digo, mas a classe política em que votas influencia a tua vida. Por exemplo, determinados políticos permitiram determinadas leis. Quando digo isto, a pessoa, geralmente, olha para mim como quem olha para uma criança ingénua e diz sempre, “do ser no papel ao ser na realidade ainda vai uma grande diferença”. Isto pode parecer um grande cliché, mas quer dizer muito. Em primeiro lugar, há um afastamento dessa pessoa das instituições ou elites que, de facto, podem permitir o avanço ou recuo das tomadas de posição importantes para a sociedade. Vivemos num país demasiado centralizado e essa realidade também se traduz na relação dos meios de comunicação com a população fora dos grandes centros que também vota. Em segundo lugar, mesmo que determinada lei que pareça importante e benéfica seja aprovada, para essa lei se reflectir na vida dessa pessoa ainda tem que passar por cima das instituições sociais que, localmente, não primam pela informação clara, pela ajuda correcta ou, se for preciso, oferecem cada vez mais entraves para o cumprimento de determinado direito ou lei. Quantas vezes ouvimos dizer que, por lei, deveria ser assim mas, na realidade, as coisas passam-se de outra forma? Se as pessoas, no geral, se sentem à parte institucionalmente, é mais do que natural que esse sentimento seja transferido para a comunicação social porque, também ela, faz parte desse mesmo sistema. Fico a pensar que o que vem lá escrito não interfere em nada na minha vida e, verdade seja dita, não há um reforço que nos possa indicar o contrário.
O que estou a tentar explicar é que esta é uma parte da população que foi votada ao esquecimento há muito e que, agora, se sente ainda mais marginalizada. Quando já nem a verdade de que 2+2 são 4 importa, estamos perante a tempestade perfeita, em Portugal, para que personalidades de culto possam emergir, e enquanto uma outra facção, a que, de forma honesta, deveria ter tomado conta deste descontentamento, estava distraída, outros falavam diretamente para a artéria principal desta camada populacional, ganhando a sua confiança e dizendo-lhe o que queria ouvir. Claro que as pessoas que se manifestaram no sábado estavam no seu direito, a isso se chama democracia. A democracia é a capacidade da população poder dizer aos seus governantes quais os seus problemas. E acredito que muitos que estiveram naquela manifestação estejam realmente a sofrer e com a corda ao pescoço. Mas não foi ao acaso que aquele grupo de negacionistas também lá estava, a gritar a todos os sete ventos que desde que aquela reportagem saiu na TVI, aumentaram consideravelmente a sua base de apoio. Tudo pode parecer o seu contrário e também não é ao acaso que o discurso de Ljubomir Stanisic, e não sei qual o quadrante político do chef ou se tem realmente algum, está a ser utilizado e reutilizado à exaustão por esses mesmos grupos, até pelo próprio João Tilly (sim, esse amigo do Chega). Curiosamente, depois dos Açores, o André Ventura, nesta conjuntura tão bela para ele, veio dizer em entrevista que até era favorável ao casamento homossexual e que o Salazar até foi um atraso para o país. Depois veio dar o dito por não dito, mas não importa, essas afirmações já ficaram para que possamos dizer que ele, o André em particular, até é bom rapaz e não é tanto como o pinto. O palco está montado para quem saiba ver que 2+2 são 4. Já ultrapassamos uma linha vermelha que não deveríamos ter ultrapassado, vamos ver se ainda há retorno.