O jornalismo e a ficção literária nos Estados Unidos de Joan Didion

por Lucas Brandão,    21 Fevereiro, 2023
O jornalismo e a ficção literária nos Estados Unidos de Joan Didion
Joan Didion / Fotografia de Kathleen Ballard, Los Angeles Times – Wikimedia Commons
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Nascida a 5 de dezembro de 1934 e falecida no mesmo mês, mas a 23 do ano de 2021, Joan Didion foi um dos grandes rostos do movimento conhecido como o New Journalism. Com ela, a realidade ganhou uma vida acrescida, recorrendo a caminhos da ficção literária e à sua subjetividade para agarrar os leitores. O seu auge perpassou pela contracultura, captando as transformações sentidas nos Estados Unidos, com epicentro na Califórnia e em Hollywood. Os prémios que viria a arrecadar na sua carreira seriam o reconhecimento mais que evidente da sua capacidade e da sua influência, para além da sua própria escrita única e singular, que o tempo não deixa esquecer.

Sacramento, cidade no estado da Califórnia, viu Joan Didion nascer no final do outono de 1934. Inicialmente, uma rapariga tímida, reservada, que procurava superar as suas inseguranças através da representação e que procurava conhecer mais e melhor o mundo em que vivia (e outros tantos) através dos livros. O seu gosto por escrever foi desenvolvido cedo, procurando estudar como os outros escreviam, em especial Ernest Hemingway. Depois do infantário e da escola primária, a sua vida levou algumas transformações profundas, não frequentando as aulas com assiduidade como qualquer outra criança dado que o seu pai exercia funções na força aérea dos Estados Unidos. Aquela era uma fase em que se vivia a intervenção dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial e Didion retrata essas vivências singulares e as interpretações dos seus lugares de vida e do mundo.

Documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold”, realizado por Griffin Dunne

Uma obra que capta esta infância muito particular é “Where I Was From” (2003), a sua autobiografia, na qual se foca em muito no seu processo de crescimento e em dúvidas que subsistiram até à data da publicação desse livro. O seu reencontro com a sociedade deu-se quando se licenciou em Berkeley, no ano de 1956, em Artes, aos 22 anos e o primeiro passo na sua carreira seria a revista Vogue, onde se fixaria até 1964. De copywriter a editora, deu tempo para que se pudesse, enfim, lançar na literatura e, como tal, escreveu “Run, River” (1963), um livro que aborda uma família californiana que se vai deteriorando e que faz um retrato geral da vida familiar dos comuns estadounidenses. Viveria, nesta altura, uma relação com Noel E. Parmenter Jr., conhecido nas tertúlias culturais novaiorquinas.

Seria mesmo a partir de Parmenter Jr. que viria a conhecer Gregory Dunne, também ele escritor, embora para a revista Time. A amizade perduraria por seis anos até ao momento em que ambos assumiram o seu namoro e se mudaram para Los Angeles. O casamento deu-se em janeiro de 1964 e, lá, morariam durante vinte anos, alterando de bairro por duas ocasiões. Depois de adotarem Quintana em 1966, Didion juntaria as lides maternais com a preparação de um novo livro, “Slouching Towards Bethlehem” (1968) que resultou de uma variedade de ensaios da sua autoria, ensaios esses que retratam muitas das suas vivências naquele estado da Califórnia.

É o primeiro grande testemunho da sua parte do mencionado estilo do New Journalism, que traz nuances da ficção e da literatura para a prática do jornalismo, narrando factos de forma subjetiva e parcial, com o autor a envolver-se naquilo que relata. Inspirada por Hemingway, mas também por Henry James ou George Eliot, era muito atenta à estrutura textual e frásica, que considerava determinantes para traduzir a(s) sua(s) ideia(s). Nisto, respeitava o processo e o texto jornalístico, para além do momento da descoberta que é inerente ao desenrolar do primeiro. É assim que capta os princípios e as expressões da contracultura, adicionando condimentos pessoais, desde a invenção de detalhes e a utilização de metáforas para explicar os desmandos das comunidades hippies.

Chegada à década de 1970, Didion trouxe uma série de novos trabalhos. Entre eles, a vida turbulenta de uma mulher residente em Hollywood em “Play It as It Lays” (1970) e a tragédia social e política que se abate em Boca Grande, um país fictício situado na América Central, em “A Book of Common Prayer” (1977). Ao lado do seu marido, escreveria o argumento do filme “A Star is Born” (1976, de Frank Pierson), onde uma estrela de rock and roll acaba por entrar em declínio de carreira ao mesmo tempo que encontra o amor.

É um formato a que regressa quando adaptam a biografia da jornalista Jessica Savitch para o filme “Up Close & Personal” (1996, realizado por Robert Redford e Michelle Pfeiffer). No final da década, chega uma coleção de diversos artigos que redigiu em revistas, como a Life ou a Esquire, na forma de “The White Album”. De novo com a Califórnia como proeminente palco de fundo, são retratos muito pessoais das suas vivências, sem deixar de esquecer as próprias transformações coletivas desse estado ocidental. Aqui, recorda e reflete sobre a esclerose múltipla que lhe foi diagnosticada em 1972, assim como um surto psíquico que havia vivido quatro anos antes.

A década de 1980 traz uma Joan Didion muito mais política, fruto das viagens que fez à América Central, em especial a El Salvador. Inicialmente republicana, vai-se assumindo cada vez mais afeiçoada ao Partido Democrata, sem nunca se assumir a 100% como deste. Em 1983, analisou o papel dos Estados Unidos em El Salvador e nas suas transformações políticas em “Salvador”; um ano depois, publica “Democracy” (1984), que se situa no tempo no fim da Guerra do Vietname e que retrata um amor entre a esposa de um senador e um agente da CIA; em 1987, mostra ao público “Miami”, um novo livro de análise no qual se debruça sobre a imigração cubana na cidade de Miami após o fim do regime ditatorial de Fulgencio Batista em Cuba e as histórias a contar por estes imigrantes. Este espírito arguto e cada vez mais socialmente consciente começou a entranhar-se nos seus textos futuros, nos quais abordava, de igual modo, a própria justiça do seu país, em muito aflorada e alimentada por preconceitos e narrativas discriminatórias e punitivas para vários grupos sociais, diferenciados pela raça ou pelo género.

Com os anos 1980 terminados, chegam os 1990 e dois livros relevantes na sua bibliografia. O primeiro deles é “After Henry” (1992), uma nova coletânea de ensaios onde cruza a Califórnia com a própria realidade nacional, visando diversos temas políticos e sociais, nos quais se incluem incidentes no estado de Nova Iorque e na capital Washington D.C.. Muitos destes tinham sido escritos na revista New York Review of Books na década anterior e são importantes referenciais naquilo que é a história dos Estados Unidos nesse período. Quatro anos depois, escreve um romance sobre uma jornalista do The Washington Post que, em 1984, no período de eleições presidenciais, prescinde do seu trabalho para atender à saúde do seu pai, deparando-se com a herança que lhe deixa: a posição de negociador de armas ao serviço da CIA na América Central.

O ano de 2003 seria um ano trágico para Didion. Veria o seu marido morrer de ataque cardíaco num momento em que a sua filha estava em coma no hospital, após um choque séptico ocorrido após uma pneumonia. Esta sobreviveria, mas o falecimento do pai marcaria as duas de forma profunda, um acontecimento que despertou uma nova obra literária: “The Year of Magical Thinking” (2004). À data, Didion já tinha 70 anos e pouco devia ao mundo. Não obstante, o exercício de exorcizar os fantasmas gerados pela doença e pela morte fizeram-na vir a público e colocar as emoções a mexer. Fazia as suas habituais pausas do momento de escrita para se distanciar e ganhar novo elã para a edição do que escreveu. Esta foi uma terapia que se encontrou com o tão seu New Journalism, embora tão real e tão pouco ficcionado. Um ano depois, a dor voltaria a acercar-se da vida de Didion: a sua filha, com somente 39 anos, faleceria de uma pancreatite aguda após uma queda que a obrigou a ser operada ao cérebro.

A escritora só ganharia forças para exorcizar mais estes fantasmas em “Blue Nights” (2011), um livro bem mais cru e duro que o anterior, que se desloca para uma linha mais niilista e abúlica. Ao leme, segue uma narrativa não-linear e em muito repetitiva, profundamente reflexiva perante as questões da idade, do envelhecimento e do próprio processo de adoção da filha. 2005 levou Didion a mudar-se para Nova Iorque e foi nesta cidade que surgiu a coleção “We Tell Ourselves Stories in Order to Live” (2006). Esta resume toda a sua não-ficção, incluindo as suas “Political Fictions” de 2001, que tanto esmiuçaram a década social e política de 1990 do seu país. O seu último trabalho seria “South and West” (2017), resultado de viagens pelo sudeste estadounidense na década de 1970. De igual modo, fez colaborações pontuais para guiões de alguns projetos televisivos e viu a própria ser tema de um documentário do seu sobrinho, Griffin Dunne, de seu título “Joan Didion: The Center Will Not Hold” (2017), uma autobiografia que se complementa aos seus memorials de 2004 e de 2011.

Joan Didion seria vítima da doença de Parkinson, da qual morreria em Manhattan, no dia 23 de dezembro de 2021. Foram 87 anos de uma mundividência em crescente enriquecimento, em perpétua descoberta. O jornalismo em que se enquadrou foi sempre desviante e, de certa maneira, inconformado com o facto por si mesmo. Mais do que a realidade como ela é, a realidade como é ouvida, vista, cheirada, saboreada, sentida. Joan Didion é um dos pilares mais sólidos da memória coletiva dos Estados Unidos, na sua vertente social e política, mas também nas contas com a sua própria justiça. Foi e é esta a sua escrita, projetada no desconstruir do seu passado e do seu presente e no construir de olhares de eternidade.

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