A juventude madura de Sarah Affonso
Sarah Affonso foi muito mais do que a companheira de vida e de trabalho do famoso artista José de Almada Negreiros. Ela própria desenvolveu uma carreira de renome nas artes plásticas, ainda antes de conhecer o seu cônjuge. Ela, que nasceu em Lisboa a 13 de maio de 1899 e que viria a falecer a 15 de dezembro de 1983, com 84 anos, 13 anos depois de Negreiros. Affonso cresceria no Minho, nomeadamente na cidade de Viana do Castelo, que lhe despertou uma infância rica e motivos fortes para enveredar pela carreira artística, que começou no regresso a Lisboa, na Escola de Belas-Artes, tendo aulas com Columbano Bordalo Pinheiro. À imagem de muitos dos artistas seus contemporâneos, foi para Paris, na década de 1920, por duas ocasiões, chegando a expor no consagrado Salon d’Automne. Estava plenamente integrada na sociedade artística da época, tanto numa cidade, como noutra, tendo, em Lisboa, feito parte do I Salão de Independentes, na Sociedade Nacional de Belas Artes. O seu futuro, marcado entre a maternidade e o trabalho, seria bem municiado e, não raras vezes, impulsionado pelo cruzamento das suas grandes causas.
Sarah Affonso abdicaria, temporariamente, da sua carreira artística, já que se dedicou a tempo inteiro à educação dos seus filhos, que seriam dois: Afonso e Ana Paula. No entanto, seria um período que traria uma sensibilidade renovada para a carreira de uma artista que havia ficado embevecida com Viana e com os seus palácios, a sua vida marítima e pelo seu reboliço, mas também com a vida rural que circundava essa capital de distrito, desde as crenças religiosas e a sua expressão (nas procissões e nas “alminhas), até aos arraiais populares. Apaixonada, de igual modo, pela música, seria pela pintura que optaria, num caminho ainda pouco galgado pelas mulheres. De igual modo, era um ensino ainda muito rudimentar, principiante institucionalmente, em muito baseado nos manuais que provinham dos mestres franceses. Porém, conheceria em Columbano Bordalo Pinheiro um mestre incondicional, que chegou a deslocar-se à Escola para lhe dar aulas, mesmo já reformado.
Assim, colhendo traços da sua pintura realista e naturalista, conseguia conhecer-se melhor como identidade criativa e, para aprimorar-se ainda mais, partiu para Paris, sozinha, aos 24 anos de idade, contactando com as emergentes correntes artísticas que o modernismo, forçosamente, trazia. Também na Alemanha foi contactando com outras realidades vanguardistas, em especial na cidade de Munique, onde também privou com alguns dos rostos mais relevantes desse panorama. Em Paris, estudaria na Académie de la Grande Chaumière, onde teve aulas de desenho livre, mas também aproveitou para usufruir das múltiplas oportunidades artísticas ao seu dispor, desde exposições a espetáculos. De igual modo, travou conhecimento profissional com o mundo da moda, já que fazia esboços no ateliê de uma modista, em plena cidade de Paris. Deste pecúlio, trouxe viva a impressão de fascínio que obteve da força cromática de Henri Matisse, para além da sua própria liberdade artística.
De toda esta bagagem, que havia sido financiada pelo seu pai, a pedido da artista, trouxe estimulada a necessidade de uma expressão viva e autêntica do seu ser e da sua alma. Tanto no seu primeiro regresso, em 1924, como depois, em definitivo, em 1929, depois do falecimento da sua mãe. Permanecendo em Lisboa, partilhou o café A Brasileira com muitos dos pintores que sentiam o modernismo como parte integrante da sua arte, como Abel Manta ou Carlos Botelho. No entanto, Affonso teve de se dedicar, de forma temporária, à criação de bordados e ao tricô como forma de subsistência, que serviriam de ferramenta futura, de inspiração para a sua pintura. No ano de 1933, depois de ter conhecido Almada Negreiros, casar-se-ia com este, numa fase em que ambos tinham carreiras individuais, com honras de exposições singulares. Affonso vivia num clima artístico frenético, entre a pintura, os bordados e as ilustrações para livros infantis, chegando a fazer parte da Exposição do Mundo Português, datada de 1940. Entre outros célebres livros, fê-las para “A Menina do Mar”, da autoria de Sophia de Mello Breyner. Experimentava, de igual forma, outros suportes, como os cartões para tapetes e decorações para peças de cerâmica de feitoria portuguesa.
Era um caminho a dois, é certo, mas sempre baseado no apoio mútuo, que também se fez sentir quando ela arrecadou o Prémio Souza-Cardoso, no ano de 1944, na sequência da oitava Exposição de Arte Moderna, realizada pelo Secretariado de Propaganda Nacional, organismo do Estado Novo. Contudo, apesar de ter uma boa crítica e de ser parte quase constante nas iniciativas artísticas da época, as dificuldades económicas e as obrigações maternais fizeram-na colocar um ponto de paragem na sua carreira, mesmo apesar de uma presença sua na Bienal de São Paulo, de 1953. Nesse período, viu serem feitas várias retrospetivas da sua obra, uma obra reconhecida como entusiasta e como muito imagética, sempre movida pela força de uma temática quase sempre festiva ou alegre. Uma mundividência que é sinónima de infantilidade e de puerilidade no bom sentido dos termos, já que é uma obra que não se afoga em potenciais questões existenciais, mas antes num retratar da realidade a partir de cores bem firmes e quentes, recheadas de sensações positivas. É uma visão que também se mostra por se tratar de uma mulher, reconhecedora e reconhecida das suas valências e das suas caraterísticas, que perpassam pela sua realização maternal, pela forma como gostava de colocar em sintonia o seu olhar e o dos seus filhos.
Apesar deste reconhecimento no seu meio, a verdade é que nunca conseguiu a tão desejada autonomia financeira com o seu trabalho, que também suscita questões acerca do papel do género no próprio mercado da arte, na venda e compra de obras de arte. Porém, conseguiu, ao mesmo tempo, uma expressão autêntica e verdadeira do seu íntimo, que unia o ser criança, o ser mulher e o ser mãe (“Família”, de 1937, talvez seja a simbiose que melhor retrata esta tríade). De igual modo, fazia questão de fazer vingar o imaginário coletivo português, nas suas expressões locais e regionais, num reconhecimento firme do valor da cultura popular do seu país. Eram premissas que, de forma discreta, também operavam na sua ajuda ao seu marido, que, cada vez mais, se afirmava como um rosto ímpar da arte nacional. Antes da sua morte, no ano de 1983, já bem depois do falecimento de Negreiros, seria reconhecida pelo Estado português, ao lhe ser atribuída o grau de Comendadora da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em Agosto de 1981, depois de várias retrospetivas no decurso dos anos que reavivariam o seu trabalho. Afonso seria sepultada no Cemitério dos Prazeres, ao lado do seu marido.
Sarah Affonso criou um legado único no panorama das artes plásticas portuguesas, numa linguagem que criou com base na sua integridade pessoal e nas experiências vividas. Trouxe, do Minho, o carinho pela cultura popular, que uniu ao conhecimento do frenesim modernista europeu e à sua própria maternidade. Com rasgos de uma pintura naïf, Affonso fez, assim, um diálogo muito diferenciado, que acumula as suas muitas referências de vida, em diferentes formatos e sensações. Apesar de nunca ter vingado per se como artista, a sua impressão tornar-se-ia indelével e marcante nos anos vindouros à sua “reforma”, que nunca o foi em concreto, porque sempre se manteve criativa e criadora, mesmo quando o papel de mãe lhe exigiu disponibilidade total. Porém, e ainda na atualidade, Sarah Affonso é uma montra de um Portugal inteiro, que fez das suas mulheres forças motrizes para uma nação de hospitalidade, de ousadia e, claro está, de criatividade.