David Cronenberg e a prevenção rodoviária
O cinema pode ser uma porta para todas as perversões possíveis e imagináveis. No grande ecrã, sem outras pessoas que nos conhecem e que possam, mais tarde, tecer maus julgamentos sobre a nossa personalidade, podemos encontrar o pior e sermos cúmplices sem nos sentirmos culpados. No fim de contas, são apenas imagens que, em certas instâncias, podem ser mórbidas ou desconfortáveis, mas igualmente fascinantes. Tal como um acidente rodoviário. Se alguma vez se deparassem com os destroços de uma espetacular colisão entre dois veículos, seriam capazes de desviar o olhar?
Nada melhor para começar uma crónica sobre “Crash”, o polémico filme de David Cronenberg, também referido desde 2004 como “não, não é esse ‘Crash’”. Ele aí está, de volta aos cinemas de Portugal para continuar o seu nefasto trabalho, sujando as cabeças de todos os que quiserem descobri-lo, agora numa bela cópia restaurada em 4K.
Com “Videodrome”, comecei a perceber o fascínio à volta do cineasta canadiano, no tema que se tornaria recorrente: a fusão entre a tecnologia e o ser humano. “Scanners”, “ExistenZ” e “The Fly” são outros marcos da sua carreira que continuam impressionantes não só pela parte visual (aquelas deformações, explosões de cabeças e outros que tais) como pela dimensão psicológica e filosófica aliada às suas narrativas. Ao contrário de Brando em “Apocalypse Now”, quem se maravilha com Cronenberg falará do horror com um sorriso nos lábios.
Dessa leva cronenberguiana, o meu exemplar favorito continua a ser “Dead Ringers”, obra-prima que alia, em puro estado de graça, as dores físicas e emocionais comuns às suas personagens. Mas fora dos corpos mais ou menos desfeitos há muito mais para descobrir em Cronenberg. É questão de ver ou rever dois óptimos exemplos disso: “Eastern Promises” e “M Butterfly”. Sem tanto sangue ou transformações aterradoras, continuam a ser filmes com coisas que interessam ao realizador: personagens deslocadas do mundo, distantes das convenções, e que querem encontrar o seu lugar.
Mas voltando a “Crash”: admito que só agora, aproveitando esta reposição nas salas, tive coragem de penetrar (salvo seja) neste mundo de colisões tecnológicas e sexuais. Desloquei-me ao Nimas para apanhar um visionamento matinal. Começar o dia com com Deborah Kara Unger, naqueles intensos minutos iniciais, anima logo o espírito da forma que nenhum café conseguiria.
Quando saí da sessão, estava a pensar naquele velho chavão sobre o povo italiano, e da sua afeição pelo automóvel (a “macchina”). Descobri que isso, na verdade, não era nada um cliché infundado quando passei uma semana em Roma, nos idos de 2017. Como pedestre a circular pelas ruas cheias de História e histórias, confrontei-me com vários automobilistas furiosos, a alta velocidade em bairros envelhecidos, sem sequer darem atenção aos peões que por ali passavam. Nunca me esquecerei de um momento em que, ao atravessar uma passadeira, o meu olhar se cruzou com o do condutor que aguardava a mudança do semáforo. Para ele eu devia ser o objecto de um intenso ódio, como se ele fosse o touro à solta numa largada.
Não sei se aquele automobilista poderia ser uma personagem de “Crash”, mas a lembrança fez-se luz depois de ver o filme e acompanhar James Ballard (James Spader) e a Dr.ª Helen Remington (Holly Hunter), que cruzam as suas vidas por causa de uma colisão entre os seus carros. Agora não consigo deixar de associar aquele indivíduo ao Vaughn (Elias Koteas), que se intromete nas existências das duas vítimas citadas e na da mulher de Ballard, Catherine (Unger), com o seu fascínio pelo potencial sexual dos acidentes rodoviários.
O olhar fixo na estrada, que parece pensar, em cada percurso dentro de um veículo, nas múltiplas possibilidades de satisfazer a sua estranha líbido pelo alcatrão fora, é parecido com o que vi naquela tarde de Verão em Roma. Talvez porque a submissão ao poder de conduzir um automóvel acabe por ter um efeito similar em muitos condutores. Espero que o italiano não tenha feito mal a ninguém.
A noite é boa conselheira para a perversão mas o cineasta não se limita a ela para definir os contornos complexos das suas personagens. Vaughan é uma espécie de lobisomem depravado que descobriu como manter a sua pele fora das noites de lua cheia. É uma personagem singular, que encontrou a sua reincarnação perfeita em Koteas.
Cronenberg não tem medo de nos confrontar com os nossos desconfortos. Já noutros filmes o fazia, mas aqui é tudo menos agradável, principalmente por se prolongar na maquinaria, nos bailados dos carros triturados e/ou esmagados em múltiplos acidentes, coreografados de tantas maneiras como as da imprevisibilidade dos seres humanos. Não vemos só os corpos com vestígios de desastres passados, os tecidos nas cirurgias, as feridas, mas a maneira como esses corpos ficam afectados – e, até, estimulados – pela proveniência do caos. Porque os nossos instintos mais primários podem ser condicionados pelas criações únicas à inteligência humana. Irónico, não?
Por isso, “Crash” não mexe só connosco pela visceralidade, pelos incríveis detalhes de cada cena violenta, mas pela junção ao acto mais natural do ser humano (o sexo) com as intrincadas partes constituintes da anatomia de um automóvel. As múltiplas cópulas, cada uma mais “original” que a anterior sufocam-nos e são mais fortes do que qualquer tipo de body horror, a ligação dos corpos a “ExistenZ” ou as transformações de Jeff Goldblum numa espécie de mosca.
Daí que consiga entender a polémica do filme na época do seu lançamento e que se prolonga até hoje, continuando a dividir opiniões. É de facto engraçado perceber como já é habitual as pessoas ficarem mais perplexas com o sexo filmado do que pela violência extrema. Parece que muita gente se ofende menos com um par de tabefes do que com um par de mamas. Cada um sabe de si.
E isto assenta que nem uma luva ao estilo do romance que o filme adapta – diria, até, com muita fidelidade. A linguagem de J.G. Ballard, que custa a engolir por ser tão precisa na descrição dos horrores, dos impulsos sexuais, dos nojentos pensamentos do protagonista, encontrou um equivalente em força nas imagens cinematográficas. E se acham que o filme é pornográfico, deviam tentar ler o romance…
Vale a pena apertar os cintos e deixar que Cronenberg vos leve por esta viagem aos confins das perversões. Não tenham receio. No fim, as luzes acendem-se, voltamos à nossa vida normal e não teremos culpa de nada.
Este texto foi escrito dias antes de ser proclamado o segundo confinamento geral devido ao aumento de casos de Covid-19. Por isso, todos os cinemas voltaram a fechar. Mas vale a pena aguardar pela sua reabertura para ver ou rever “Crash”.