A equação do género: o seu reflexo no vestuário
Há uns tempos escrevi um poster para um simpósio intitulado “Vestuário unissexo + corpos andróginos = moda sem género” (em inglês), com o objetivo de expor as diferenças entre unissexo, androginia e sem género, tendo em comum o vestuário e a moda. No entanto, as questões de género são, talvez, mais um tipo de sistema, em que é necessário recorrer a uma equação, mais complexa que uma simples conta de somar.
O sexo refere-se à parte biológica, é algo que nasce com cada um de nós, é a determinação do sexo tendo como base a genitália de cada um. É a classificação como homem, ou mulher ou intersexual. O género por sua vez é construído através de noções socialmente construídas de masculinidades e feminilidades, é o que aprendemos culturalmente ao longo da nossa vida (sobretudo em criança). Uma vez ao termos um género atribuído, a sociedade espera que os sujeitos desempenhem os seus papéis de género, como homens e mulheres (sistema binário de masculino e feminino respetivamente), estes papéis podem variar de cultura para cultura. Contudo, nos últimos anos a evolução mostra-nos o aparecimento de diversos géneros, além do sistema binário.
Em primeira instância, é preciso realçar que quem refere, ou alguma vez referiu “sexo feminino”, não é do todo o mais correto. Existem diferenças claras entre o que é o sexo, o género (onde encontramos diversos tipos de género) e consequentemente a androginia, não esquecendo a identidade e a orientação sexual. Entenda-se que a evolução é uma constante, e o género está a evoluir para além do sistema binário, tal como ainda o conhecemos (onde existem diversos fatores sociais e até políticos que influenciam os diversos tipos de género), numa rejeição de estereótipos. Em 2016, a Comissão de Direitos Humanos da Cidade de Nova Iorque, considerou a existência de 31 tipos de género. No entanto, mais recentemente, em conversa com Malcolm Barnard, este refere que existem tantos géneros quanto pessoas para ter géneros, existindo milhões de versões de masculinidades e feminilidades. Já no que diz respeito à orientação sexual, esta é quando sentimos atraídos por pessoas do mesmo sexo, sexo oposto, os dois, por todos, ou por nenhum, esta refere-se à sexualidade das pessoas por quem ela sente atração afetiva-sexual. Já na identidade de género, este é como a pessoa se reconhece/sente, como mulher, ou homem, ou nenhum deles. Para algumas pessoas essa identidade corresponde ao sexo biológico, são os cisgéneros.
Ressaltar que quando se fala em género neutro, sem género, entre outros tipos de género que existem, não podemos associar isso de imediato à homossexualidade, é só um grande erro se o fizerem. A orientação sexual não é necessariamente relacionada com o género, porque mulheres e homens que sejam heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais ou assexuais podem não se identificar com o sem género, ou género neutros, podem mesmo ser cis-género (pessoas que se identificam com sexo que nasceram). Todas estas questões de ordem social, na eventualidade irão refletir-se noutros domínios, como por exemplo o vestuário.
“A moda é a melhor das farsas, aquela em que ninguém ri porque todos participam dela.” André Suarés
Ou, pelo menos, ninguém deveria rir, porque todos, e quero dizer mesmo TODOS NÓS participamos no teatro que é o sistema da moda. Mesmo aqueles que dizem que não se preocupam com a moda, que por vezes usam sempre ou só fato, ou só t-shirt e jeans, quase como Steve Jobs, eles próprios (provavelmente sem querer) estão a fazer uma declaração, a tomar uma posição, de como se sentem em relação à moda, ou quase como uma rejeição desta. O vestuário por si só liga o corpo biológico ao individuo social, tanto no domínio publico como privado, em que através deste é também possível reconhecer o corpo biológico de cada um.
A predominância do vestuário masculino e feminino tende a ser completada pelo vestuário sem género ou de género neutro, porque o vestuário sem género/género neutro é um identificador identitário para quem não se identifica no sistema binário feminino e masculino. Onde a criação deste tipo de vestuário converge na identidade do indivíduo, que percebe que esse é um fator da sua identidade. Da mesma forma que não devemos falar de sem género, ou género neutro, só porque este está neste momento na moda ou porque é trendy. Devemos falar porque há pertinência do tema na sociedade, há questões que precisam de ser esclarecidas e desmistificadas.
Com o final do XIX e o início do século XX, várias mulheres começaram a deixar de usar os espartilhos e desafiaram os estereótipos ao usar calças, como Coco Chanel, Marlene Dietrich e Katherine Hepburn tornaram-se pontos de referência na moda feminina inspirada na moda masculina, também Amelia Bloomer foi publicamente insultada como “antinatural” e não feminina e também a acusaram de ser lésbica, por vestir calças. Com as I e II Grande Guerra Mundial, homens irem para a guerra, as mulheres ficaram a cuidar dos filhos e da casa, muitas trabalhavam e acabaram, por necessidade, começar a vestir calças dos homens, havendo neste sentido uma prática de crossdressing. Em 1966, Yves Saint Laurent exibiu o Le Smoking, fato preto e de lã para mulher. Mais tarde, Vivienne Westwood e Jean Paul Gaultier revolucionaram os desfiles de moda ao vestir os homens com saias, por vezes adaptações de kilts.
Nos últimos anos, as marcas têm vindo a testar os paradigmas de género, algumas com coleções cápsula de género neutro no pronto-a-vestir, como fez a C&A (2016), Zara (2016), ou a Selfridges (2015). Contudo, foi Rudi Gernreich em 1970 que deu o pontapé de saída promovendo o vestuário unissexo, com o seu ‘Unisex Project’, mas foi em 2007 que Rad Hourani, pela primeira vez lançou uma coleção pronto-a-vestir unissexo e de género neutro. Algo presente na promoção deste tipo de vestuário, são os modelos com corpos andróginos que são apresentados, numa combinação de traços de mulher e de homem, um individuo que apresenta características convencionalmente associadas a ambos os sexos. Desta forma, androginia não deverá ser considerado um género. É importante referir que quando falamos em género neutro em coleções de moda, o vestuário produzido é maioritariamente desenvolvido em cores neutras (branco, preto, cinzento, azul), e as peças mais produzidas são sempre mais largas (oversized), jeans, t-shirts, sweaters, com características sempre mais masculinas. Já o sem género é muito mais inclusivo, não só a nível da panóplia de cores disponíveis, mas também em diversas peças de vestuário, onde há uma preocupação com os tamanhos, e há também um maior número de materiais que são utilizados, de forma a chegar a um número muito maior de pessoas.
Este contexto para demonstrar que por vezes, ao falarmos de vestuário de género neutro, ou sem género, muitas vezes nos vem à cabeça homens de saia e/ou de saltos altos, como sendo algo que cai no ridículo. Quando mulheres de calças, por mais que fosse ridículo nos anos de 1920, eventualmente a evolução caminhou para todas as mulheres vestirem calças, e na atualidade ser dado como algo normal. A flexibilidade de um homem vestir saia como uma mulher calças nos dias de hoje, parece algo utópico.
Crónica de Benilde Reis
A Benilde é professora de design de moda e investigadora na Universidade da Beira Interior.