A génese da obra de Haruki Murakami: ‘Ouve a Canção do Vento’ e ‘Flíper, 1973’

por Cátia Vieira,    25 Maio, 2017
A génese da obra de Haruki Murakami: ‘Ouve a Canção do Vento’ e ‘Flíper, 1973’

Ouve a Canção do Vento e Flíper, 1973 são dois breves romances reunidos num único volume, editado pela Casa das Letras, em Portugal. Não só principiam a apelidada ‘trilogia do Rato’ – constituída também por Em Busca do Carneiro Selvagem (1982) -, como documentam a génese da obra murakiana. Em ambos os textos, brotam elementos que associamos de modo inevitável ao universo do autor japonês: o meio universitário, os gatos, os bares, o whisky, os poços, as mulheres estranhas, os protagonistas alienados, as referências literárias, os pássaros e a música, nomeadamente a clássica e o jazz.

Antes de versarmos sobre os dois textos, destacamos o prefácio, também escrito por Haruki Murakami, intitulado “O nascimento da minha escrita à mesa de cozinha”. A nossa ver, este prólogo afigura-se como o sumo do livro; a sua parte mais fascinante e apelativa. Ora, entre as aspirações triviais, como conseguir um diploma universitário e casar, e o seu pequeno bar de jazz, fruto da sua grande paixão por este género musical, rompe uma ânsia: a escrita. Ouve a Canção do Vento surge num período em que o tempo escasseava e a sua bagagem literária era mais restrita.

Deve ser assim, vamos lá deitar mão à obra, comentei comigo mesmo. Dito e feito. Durante meses, dediquei-me à missão de escrever um determinado número de páginas que pudessem de alguma forma, corresponder à ideia que eu tinha de um romance. Porém, quando li o que acabara de escrever, reconheço que o resultado ficou aquém das minhas aspirações.”

Buscando uma palavra sui generis, Haruki Murakami abandona as ideias preconcebidas geradas sobre a literatura e a criação literária. Renuncia ao papel e à caneta e opta por redigir numa antiga Olivetti com teclado alfabético inglês. De seguida, desiste temporariamente da língua japonesa e decide produzir num inglês elementar. Através de construções gramaticais e de um vocabulário limitados, de frases simples e curtas e de uma prosa um tanto despojada, encontra o seu próprio ritmo e uma miragem do que viria a ser o seu estilo característico. Com um número bastante restrito de palavras e expressões, logra a expressão das grandes sensações e dos sentimentos. Na mesa da sua cozinha, regressa à folha branca e à caneta, traduzindo para japonês o que havia escrito em inglês.

Numa manhã de domingo primaveril, Haruki Murakami é informado de que Ouve a Canção do Vento constava nas obras finalistas dum concurso literário para novos escritores. Soube naquele momento: venceria o prémio. Em 1980, escreve Flíper, 1973, que surgia como uma sequência ao seu primeiro breve romance. A sua rotina instalava-se: mantinha o bar a funcionar e escrevia, sentado à mesa da cozinha, pela noite adentro. Assim que terminou a segunda novela, vende o bar e dedica-se inteiramente à escrita.

Como referimos, os dois breves romances integram a célebre “trilogia do rato”. As personagens que os povoam são as mesmas: um protagonista sem nome, Rato e J, um chinês, dono de um bar de jazz. Ouve a Canção do Vento – que apresenta uma narrativa linear e cujo período temporal ronda as três semanas -, narra uma amizade insólita e reservada, que decorre no verão de 1970, entre o protagonista e Rato, que se encontram ocasionalmente no bar de J. Se o primeiro mergulha nos romances ocidentais e no intelecto, o segundo é um indivíduo paradoxal. Como João Pedro Vala assinalou: “Rato é um jovem que se revolta contra o sítio de onde vem, é um rico que odeia a riqueza, um jovem que odeia a universidade, abandonando-a sem nunca conseguir perceber porquê (…)”. Não obstante as divergências que marcam as três personagens, todas se debatem na incerteza e na inquietude por não compreenderem o sentido da vida.

Flíper, 1973 aproxima-nos mais do universo murakiano. Neste romance, o protagonista – ainda apático e alienado – trabalha como tradutor e encara o tabaco e a cerveja como fonte de combustão. Ele procura sobretudo um flíper particular, o que o conduz a um armazém recheado de máquinas, de bolas e de luzes néon. Esta é uma imagética singular, que nos transporta ao conceito de silêncio e de vazio, reforçada pela ausência de pessoas.

Em ambos os romances, a figura feminina é também uma presença crucial. Como mencionámos anteriormente, o corpo deformado e estranho da mulher é um dos traços medulares da produção literária de Haruki Murakami. Na primeira obra, este fetiche surge representado na rapariga de nove dedos. Em contrapartida, em Flíper, 1973, a imperfeição do corpo feminino dá lugar a uma sexualidade idealizada, revelada na ligação erótica entre o protagonista e duas gémeas.

Ainda que estes romances sejam pano de fundo para o silêncio, para o surreal e para o mal du siècle profundamente murakianos, entendemo-los como textos de edificação dos saberes da obra do autor japonês. Assim – apesar de serem a génese da obra de Haruki Murakami – não deverão ser o ponto de partida dos leitores. Ao contrário de obras como Sputnik, Meu Amor ou Crónica do Pássaro de Corda, a cadência de leitura revela-se mais lenta e menos curiosa e a própria construção da narrativa espelha a imaturidade literária do escritor. Não surpreende que o autor, que une o oriente e o ocidente, tenha mostrado alguma relutância em trazer às prateleiras da sua comunidade de leitores estes dois pequenos romances. Vale, sobretudo, o prefácio de Haruki Murakami, que nos deslinda a erupção do eu literário, um dos mais singulares e extraordinários da atualidade.

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