O “Princípio” de “Princípio, Meio e Fim”
Em primeiro lugar, não gosto de começar textos com “em primeiro lugar”, mas este impõe que assim o seja: o que está a ler não é uma crítica ou review ao novo programa do humorista Bruno Nogueira, na SIC. É antes uma tentativa de perceber o que há em “Princípio, Meio e Fim” que, eventualmente, agarra o espetador à televisão. Não me interessa convencer o leitor de que o programa é genial ou um desperdício de tempo. Estou confortável com todas as opiniões possíveis, apesar de ter a minha.
Tenho então a dizer que não gostei de “Princípio, Meio e Fim”, na medida em que invejo profundamente o que foi ali feito. É extasiante ver quatro pessoas que admiro a tentar escrever um guião de comédia, só que ao mesmo tempo fico revoltado por não poder estar ali a trocar ideias com eles. Senti que era uma criança à porta de um parque infantil com quatro meninos a brincar ao meu jogo favorito, mas apenas podia ficar à entrada, impotente, a ver. O programa é, por isso, invejavelmente muito bom, pelo que nos dá a conhecer do processo criativo, e invejavelmente muito mau, pela frustração de não poder participar.
O formato mistura de forma assumida a realidade (o processo doloroso, mas recompensador, de escrever um guião em 2 horas) com a ficção (quando o que está escrito no guião é encenado). É verdade que o programa não resultaria sem vermos o resultado final — e não quero retirar qualquer valor ao papel muitas vezes brilhante do elenco de luxo. Contudo, o que realmente me atrai em “Princípio, Meio e Fim” é o “Princípio” e não o “Fim”.
Como Nuno Markl admitiu, o conceito é difícil de enquadrar e até de comparar a outros formatos. No entanto, visto que simplesmente me quero focar no “Princípio” da coisa, torna-se mais fácil fazê-lo. Não que o programa precise de ser enquadrado e/ou comparado, mas porque permite-me realçar particularidades que o tornam diferente e/ou semelhante a outros. E, do meu ponto de vista, há aqui várias características bem visíveis de algo pelo qual muitos espetadores sentem um fascínio, eu incluído.
Em primeiro lugar (já que não estou no começo do texto), temos acesso aos bastidores. Aplicando às artes, é muito comum querermos perceber como é que certas séries são gravadas, como é que determinados diálogos surgiram ou até como é que aquele humorista se lembrou daquela piada. Numa outra perspetiva, os bastidores também nos mostram como é que as pessoas que admiramos agem quando estão, por exemplo, a escrever um texto ou prestes a subir a palco. Eu teria confortavelmente apostado que Salvador Martinha seria de facto aquela pessoa que vimos ser durante o brainstorm. Tal como apostaria que Nuno Markl seria o mais atento do grupo aos detalhes técnicos da escrita de um guião, como a necessidade especificar que a cena começa no interior da casa, à noite.
Fora da arte, numa perspetiva jornalística, também é aliciante entender, por exemplo, como é preparada uma semana de trabalhos num clube de futebol, antes de um jogo importante, ou como lida um hospital com a atual situação pandémica. O meu ponto é: para o espetador é interessante conhecer os bastidores, porque expõem uma perspetiva diferente sobre um assunto, muitas vezes desconhecida até ao momento; e normalmente revela o comportamento das pessoas envolvidas em cenários de pressão, felicidade ou até mesmo de tristeza.
Neste capítulo de bastidores há vários documentários relacionados com o processo criativo de humoristas, que em certos pontos conectam-se com “Princípio, Meio e Fim”. O meu favorito é “Comedian”, um documentário que estreou em 2002 e acompanha o humorista Jerry Seinfeld, e o não tão conhecido stand-up comedian Orny Adams. Se por um lado testemunhamos o regresso ao stand-up e alguns momentos de brainstorm de Seinfeld (numa altura em que era discutivelmente um dos maiores comediantes da atualidade, visto que tinha terminado a sua série de imenso sucesso há uns anos), por outro lado vemos um jovem Orny Adams com tudo ainda por provar, enquanto tenta perceber qual o caminho a seguir para se afirmar no meio da comédia. Há momentos absolutamente inesquecíveis, como quando Seinfeld bloqueia completamente durante uma atuação, ou quando Seinfeld e Colin Quinn “batem-bolas” sobre uma ideia que Seinfeld tem para um bit de stand-up sobre think tanks — que se tornou num pedaço de stand-up de Seinfeld bastante conhecido.
Apesar dos pontos de partida serem opostos, tanto em “Comedian” como em “Princípio, Meio e Fim” vemos artistas transformar uma simples ideia em algo concreto. Acredito que não seja absolutamente interessante para todos os espetadores, há de certeza quem prefira ver o “espetáculo de magia” sem que lhe revelem o “truque”. No entanto, “Princípio, Meio e Fim” tem algo que “Comedian” e outros documentários deste género que já vi não têm, e que confesso estar a ver pela primeira vez: a concretização do momento da escrita. Não vemos só ideias a surgirem e a serem discutidas, vemos também as palavras que os guionistas usam quando as passam para o “papel” — que conseguem ser tão reveladoras e importantes como a ideia em si. É verdade que não temos acesso a momentos incisivos de discussão sobre o uso de certa palavra em detrimento de outra, como imagino que aconteça, por exemplo, numa semana de trabalhos de “Isto é Gozar com Quem Trabalha”. Provavelmente porque não há tempo. Só que até agora nunca tinha tido acesso ao “instinto de escrita” de quatro guionistas consagrados.
Uma segunda característica que noto em “Princípio, Meio e Fim” é o facto de nos mostrar um processo da forma mais clara possível, já que o programa em si é um processo. Em ficção temos, de uma forma geral, uma personagem que tem um objetivo e que o tenta concretizar. A história acaba por ser o caminho da personagem ao tentar chegar ao objetivo. Mas há casos em que o objetivo e os passos para lá chegar são tão claros, que a história é, na sua totalidade, o processo de chegar ao objetivo. Se em certas narrativas este processo não é tão visível, noutras é assumido. Em “Sou Menino Para Ir”, de Salvador Martinha, todos os episódios são um processo em si. Há um desafio e o objetivo é concretizá-lo. Em “o resto da tua vida” o objetivo é logo assumido ao fim do primeiro episódio — trazer João André de volta para a “ribalta”. Os seguintes episódios são as etapas para chegar ao objetivo. Há vários exemplos, “Princípio, Meio e Fim” é mais um programa que assume logo o processo que tem. Evidenciá-lo ajuda o espetador a querer ver o programa até ao fim, para perceber a concretização dos laivos da escrita do guião a que temos acesso.
Aqui entra um ponto fulcral no resultado final do programa: o equilíbrio entre o que se revela na escrita e o que só se revela com as filmagens (esta tarefa de edição coube a Bruno Nogueira e ao editor Diogo Lima, também responsável por “Sou Menino Para Ir”). No humor a surpresa é fundamental. A interpretação de um diálogo que já nos revelaram pode surpreender, mas a verdade é que normalmente a segunda vez que ouvimos uma piada nunca é tão boa como a primeira. O facto de na discussão de ideias serem equacionados vários desfechos e linhas narrativas ajuda a enganar o espetador. No primeiro episódio não era claro, vendo apenas o parte da escrita do guião, qual iria ser ao certo a história. Dava para saber que ia haver um portal, que a conversa ia ser sobre alguém que já não fazia sexo há algum tempo, que a comida ia ser de plástico, mas nem todos os pontos estavam ligados. Só na encenação é que percebemos o desenho completo. Eu inclusive precisei de ver uma segunda vez o primeiro episódio para valorizar a forma através da qual a edição do programa me levou a achar que a história ia por um caminho, apenas para destruir essa perceção no momento final. Este é o equilíbrio fundamental para que o “objetivo” do tal “processo” não fique cumprido ainda na primeira parte do programa.
Por fim, a parte real do programa tem o que todas as histórias de ficção têm de ter — um obstáculo. Neste caso há vários: os obstáculos palpáveis colocados pela produção, que tentam distrair os guionistas; o caos de ideias, que pode colocar os guionistas num confronto (saudável); e as duas horas que têm para escrever, que torna tudo mais desafiante. Como Bruno Nogueira conta, em entrevista à NiT, “mais do que duas horas já estaríamos um bocadinho à vontade. Menos do que duas não era possível escrever um número de páginas suficientes para alimentar a ficção, e duas horas era um compromisso entre uma falta de ar de não se conseguir acabar, com calma para se rever o que se fez e para dar um fim bonito”.
Posto tudo isto, acho que “Princípio, Meio e Fim” é um muito bom programa, que inova por dar a conhecer os bastidores da escrita de um guião de comédia, mas que não perde o pensamento lógico que carateriza vários projetos de Bruno Nogueira – evidenciado pela forma analítica da edição do programa e do forçar a existência de obstáculos através do próprio formato. Não deixa de ser tudo extremamente bem pensado e delineado, ainda que pareça caótico.
Não me parece honesto dizer que nem toda a gente consegue perceber este programa, como vi ser discutido no Twitter durante esta semana. Acho que há, no entanto, um público claro para isto. Pode, eventualmente, dizer-se que é um programa de nicho, na medida em que a minha mãe não se interessa em nada pelo processo criativo por trás de um guião de humor, mas para mim há poucas coisas mais fascinantes do que isso. Tento até que comediantes façam uma desconstrução das suas piadas no meu podcast, Humor À Primeira Vista. Se fosse lunático, acharia que Bruno Nogueira e os amigos criaram este programa especialmente para me agradar. Em conversa com amigos, depois de estrear o primeiro episódio, confessei que (e estou a citar-me, sim) “papava as duas horas de eles a discutir ideias na boa”. Parece que a SIC ouviu as minhas preces e vai estar disponível uma versão alargada do “Princípio” de cada episódio na plataforma OPTO.
Portanto se, como eu, gostar de perceber como surgem as piadas, de ver histórias que são em si processos e de ver pessoas a sofrer para terem ideias engraçadas no espaço de duas horas, este programa é incrível. Caso contrário, nem por isso. Podendo, ainda assim, achar o programa bom, pelos seus momentos de humor e de acting, que conseguem sobreviver a um “não fascínio pelos bastidores”.
Em futuros episódios, estou extremamente curioso para perceber que tipo de estilos será possível explorar. Se no primeiro episódio tivemos direito a uma mistura de ficção científica e nonsense, espero que haja quase um género diferente por episódio. Pelo que Nuno Markl deu a entender num live do instagram da SIC, parece-me ser isso que vai acontecer. Com apenas duas horas para escrever um guião, o humor pode resvalar muitas vezes para o nonsense, visto que é difícil construir um guião bem estruturado do início ao fim. Não há mal nenhum com isso, mas acredito que o programa ganhará se mostrar diversidade de episódio para episódio. E parte de mim quer ver algo tão bem escrito como a “Odisseia” em apenas duas horas, mesmo sabendo que é impossível.
Bruno Nogueira e companhia apresentaram um programa inovador e que consegue, na minha opinião, agradar a nerds da comédia como eu, que depressa se lembram de “Comedian” e outros tantos pedaços de bastidores da comédia; mas também à minha mãe, que se ri quando o Salvador sugere algo como um “cu de lixa” ou quando o Manzarra sai de um portal. Não esquecendo, ainda assim, as vezes em que acha tudo uma “estupidez”. Muitas vezes com razão.