O segundo toque para o Recreio

por Gustavo Carvalho,    20 Outubro, 2021
O segundo toque para o Recreio
Fotografia: Joana César
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Se no ano passado saímos de casa à boleia do festival Re-creio, organizado pela H2N, a segunda edição do festival perdeu o hífen, mas ganhou uma nova vida na LxFactory. No novo Recreio as restrições pandémicas e a duração do evento diminuíram, mas a diversidade de oferta aumentou, já que pelo Armazém XL passaram espetáculos de humor, música e até circo.

A LxFactory mostrou-se mais acolhedora para “a brincadeira” do que o campo de rugby do Jamor foi no ano anterior. Não havia ninguém melhor para nos fazer regressar ao Recreio do que as humoristas Joana Marques e Mariana Cabral (Bumba na Fofinha). Amigas há cerca de trinta anos, conheceram-se exatamente no recreio do Colégio “A Quinta das Palmeiras”. Numa sessão que misturou conversa com momentos de storytelling bem ritmados e com muita piada, ficou claro que as histórias de ambas dariam para vários espetáculos do género, embora considerem que “chamar-lhe espetáculo se calhar é um exagero”. Nós achamos que não é exagero nenhum. Em conversa com a Comunidade Cultura e Arte, admitem que já tinham conversado sobre, eventualmente, fazer algo deste género, mas que foi preciso a organização fazer o convite para de facto acontecer. Até se prevê que repetir este acontecimento seja difícil: “Nós não gostamos assim muito uma da outra”, ironiza Joana Marques. “Ela não é agradável. Nem como pessoa, nem como profissional”, responde Mariana Cabral, enquanto Joana Marques se ri.

Entre as histórias contadas, soube-se que a última vez que subiram a palco juntas foi como atrizes na peça de teatro escolar “Peter Pan & Wendy”. Joana Marques revela que “todas as histórias foram verdadeiras” e que “é muito mais difícil a vida dos colegas que vão atuar a seguir”. E se o desafio de fazer stand-up já é duro, ainda mais se tornou, porque suceder a um tempo tão bem passado não é tarefa fácil.

Fotografia: Joana César

Subiu a palco Tiago Almeida, o primeiro stand-up comedian da noite, que na última edição do Recreio tinha aberto o espetáculo de Carlos Coutinho Vilhena. Seguiu-se Carlos Pereira, que passou os últimos tempos a preparar uma série para a RTP Play. Ainda sem data de estreia, “Barman” é baseada nos tempos em que o próprio trabalhava num bar. Luana do Bem foi outro dos regressos ao Recreio, visto que tinha feito a primeira parte de Salvador Martinha no ano passado. Coube a Guilherme Duarte terminar a sessão de stand-up comedy. Apareceu com o cabelo louro para surpresa de muitos. O visual faz parte do novo projeto do humorista: Gandim, um alter-ego rapper que só quer fazer rir. Algumas músicas do projeto já estão disponíveis no YouTube.

Depois de “Só de Passagem”, o seu segundo espetáculo a solo de stand-up comedy, ficámos a conhecer uma amostra daquilo que podemos esperar num novo solo do comediante da Buraca. Todos os stand-up comedians cumpriram bem a sua função, com o público a acompanhar bem as punchlines que iam soando na ampla sala do Armazém XL. Guilherme Duarte, a atuar para o seu público, foi um digno cabeça de cartaz para fechar uma boa noite de comédia.

Fotografia: Joana César

O segundo e último dia de festival começou na parte da manhã, com atuação da Orquestra de Cordas do Festival de Música Júnior, bem como o espetáculo de circo inclusivo “A Pele que há em mim”, que “une a dança às acrobacias aéreas”, aberto a todas as peles: “a pele com trissomia 21, a pele autista, a pele com paralisia cerebral, a minha e a tua pele.” Quem assistiu garante que se emocionou.

Ao final da tarde foi altura de vermos o fenómeno dos podcasts a chegar ao Recreio. Miguel Luz abriu a sua janela ao público do Armazém XL. Após 128 episódios, a maioria gravados sozinho no quarto, “Janela Aberta” teve pela primeira vez um episódio ao vivo. Já lá vão uns anos desde que ficou conhecido no YouTube, ainda em adolescente. Atualmente foca-se principalmente na música, estando a preparar o sucessor de “Crocodildo”, sendo certo que o novo álbum não vai misturar o humor com a música. Se no palco Miguel Luz estava de fato, no público viam-se algumas sweats da “Nata”, a marca de roupa criada pelo próprio. Nas redes sociais, Miguel Luz tinha pedido a que fossem todos de fato, de “Nata”, ou pelo menos com as cores vermelho ou roxo – e foram muitos os que cumpriram.

“A Pele que há em mim”. Fotografia: Joana César

O público mostrou que estava ansioso pela oportunidade de assistir ao podcast e respondeu bem a todos os momentos de interações e às histórias que foram sendo contadas. “O fixe disto é que não é stand-up, não é um concerto, não é uma talk, mas ao mesmo tempo tem um bocadinho de tudo”, admite Miguel Luz, que esclarece que o objetivo não é fazer rir, mas que as gargalhadas ajudam a aliviar. Para ter a certeza de que tinha boas histórias, o músico confessou-nos que foi de propósito a uma aula de dança. Além do storytelling, a sessão contou com uma atuação em acústico, pela primeira vez, dos temas “Meditação”, “MILF” e “Alguém”, esta última com muita ajuda do público. Miguel Luz adianta que “está mesmo quase a sair o single “Montanha-Russa” e que vai dar tudo para que “saiam ainda dois sons este ano.”

No final de contas, o sucesso do podcast ao vivo vai levar a que a próxima data seja no Porto, dia 23 de novembro, com planos para visitar mais cidades mensalmente, revelou Miguel Luz à CCA. Hugo Nóbrega, fundador da H2N e agente de Miguel Luz, também concorda que a sessão foi um sucesso, tal era o sorriso no final do espetáculo: “Fiquei muito feliz de ver que esta adesão foi ganha, a estranheza até de ser um podcast ao vivo e ser tão vibrante.” O programador e produtor na área da cultura acredita que Miguel Luz “não procura a comédia, mas as pessoas sentem-se bem com ele” e está confiante de que “representa algo fresco, que traz uma nova dinâmica” à H2N.

Fotografia: Joana César

Antes de se ouvir o toque de saída do Recreio, chegou o apelo para que todos “Deixem o Pimba em Paz”. O espetáculo criado há cerca de oito anos conta com um elenco de luxo: Bruno Nogueira, Filipe Melo, Manuela Azevedo, Nelson Cascais e Nuno Rafael. O espetáculo que homenageia a música popular portuguesa dando-lhe uma nova roupagem cativou a sala esgotada de princípio, ao meio e até ao fim. Não só ficamos fascinados com as versões jazz e pop das músicas que todos conhecemos, mas também com as pausas entre músicas, onde Bruno Nogueira tem liberdade total para divagar e fazer rir a plateia. E dá inveja ver a satisfação que parece ter quando tem de tocar percussão.

Em conversa com Manuela Azevedo e Bruno Nogueira após a atuação, ambos confirmam que o espetáculo já teve algumas adaptações ao longo do tempo. “Lembro-me de que no início havia um texto de introdução, que acabou por ser eliminado; houve canções novas que foram surgindo; houve algumas experiências num concerto ou outro e que acabámos por abandonar, porque não gostámos do resultado. Mas o esqueleto principal mantém-se intacto”, explica Manuela Azevedo. Ao longo de tantos anos a fazer o espetáculo, já chegaram a ter feedback dos autores das canções que interpretam. “A Ágata e o Marante já entraram em concertos connosco. A maior parte deles terá ouvido e não se importaram”, revela Bruno Nogueira. “A Ágata até ficou comovida”, completa Manuela Azevedo.

Fotografia: Joana César

Feitas as contas, a segunda edição do Recreio recebeu mais de três mil pessoas. Hugo Nóbrega acredita que “a mudança de espaço favoreceu o evento”, visto que procura torná-lo “mais dinâmico, que não seja circunscrito a uma retângulo” e que, quem sabe, se expanda até à cidade.

O produtor admite que o evento foi sendo adiado devido à falta de apoios, porque “não vive só da bilheteira, precisa de financiamento.” Este ano contou com o apoio do Programa Garantir Cultura e do Compete 2020, mas Hugo Nóbrega espera que no futuro as próprias marcas reconheçam o valor do projeto e a sua diferenciação. Tendo isto em conta, o regresso do Recreio vai depender da capacidade de obter novamente financiamento. Apesar das dificuldades atuais do setor da cultura, Hugo Nóbrega não tem dúvidas de que “a apoteose sentida mostrou que as pessoas não vieram só ver um espetaculo, vieram ter uma experiência” e realça a programação diferenciada: “Nós abrimos com uma estreia inédita da Joana Marques e da Bumba na Fofinha, que eu acho fantástico. O convite ao “Deixem o Pimba em Paz” é também um pouco um agradecimento e uma homenagem ao que se viveu no Recreio do ano passado, quando o Bruno arriscou fazer um espetáculo com o Miguel Esteves Cardoso para 1300 pessoas, em plena pandemia. Foi alguém que deu o corpo às balas, muitas vezes a ser criticado por estar a ir para a frente.”

O Recreio (sem hífen) mostrou-se mais próximo das pessoas e trouxe eventos únicos que alegraram e emocionaram a LxFactory. É bem-vindo um novo toque da campainha.

Escrito por: Gustavo Carvalho e Magda Cruz

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