Nós e a Eurovisão
Se dúvidas houvesse sobre a pertinência do actual modelo do nosso Festival da Canção, as mesmas estariam dissipadas com o sucesso da prestação dos The Black Mamba. Não vamos ganhar a Eurovisão todos os anos. Na verdade, se calhar nunca mais vamos vencer o festival, ninguém sabe. Porém, o que é indiscutível é a dinâmica que o festival recuperou após muitos anos de imensos equívocos e alguma negligência por parte da RTP e do meio artístico português, que acompanhou, aliás, também períodos em que o próprio certame europeu perdeu identidade e relevância.
Em cinco anos, o festival foi capaz de consagrar Luísa Sobral como uma das mais brilhantes compositoras da actualidade, de revelar ao Mundo o talento raro do seu irmão, de fazer Portugal descobrir o magnífico Conan Osiris, de transportar os The Black Mamba ao patamar que o talento deles merece ou de alavancar as carreiras de Isaura, Claudia Pascoal, Marta Carvalho ou Elisa. Porém, a vitalidade do festival não se mede apenas pelos vencedores. A rádio mais ouvida do país, a Rádio Comercial, passa neste momento quatro canções concorrentes da última edição, garantindo assim uma longevidade aos temas que o cariz efémero do festival não fazia prever. O Festival da Canção voltou a galgar as margens da RTP e é, neste momento, de todos nós, sendo frequentemente comentado nos transportes públicos, nas conversas de família ou nas arenas digitais. É um espaço privilegiado para apresentação dos novos compositores, das melhores vozes, e é também uma poderosa ferramenta ao serviço da indústria, assim ela a saiba usar.
Para além disso, para um país encurralado na sua geografia periférica e escassez demográfica, a Eurovisão também representa uma rara oportunidade de fintar a dificuldade que temos de nos impor no mercado global da música, que se verifica até no desprezo que os nossos mercados mais naturais, Brasil e Espanha, habitualmente nos dedicam. Salvador Sobral ganhou o eurofestival e uma carreira internacional, mas é possível obter resultados impressionantes, mesmo que não se vença o concurso, como se vê pelo sucesso da canção dos The Black Mamba nas tabelas internacionais de vendas. Coincidentemente, ou não, após a nossa vitória de 2017 parece que o próprio festival da Eurovisão voltou a crescer e não apenas em Portugal. Após o fenómeno Salvador Sobral, a última canção vencedora, de 2019, do holandês Duncan Laurence, tornou-se um grande hit mundial, dominando os tops e as playlists, como há muitos anos nenhuma canção vencedora conseguia. E isso é bom para toda a Europa, numa altura em que apenas Espanha consegue furar o eixo anglo-americano.
Em Portugal, muita gente menospreza a Eurovisão. Fazem mal. Há muitas canções más, é verdade, há muito circo, concedo, mas há sempre canções boas e a tendência actual é de que a qualidade aumente. Para além de que é pouco avisado avaliar canções pop de países de leste, com referências culturais já muito afastadas das nossas, com os nossos critérios estéticos.
Por tudo isto, parece-me justo dar os parabéns à RTP e ao meio artístico português pela forma generosa e cuidadosa como se têm dedicado ao nosso Festival da Canção.