Katharina Ernst e a quebra do silêncio
Era uma tarde soalheira dum sábado em que folgava. Aproveitando as poucas horas que me são livres e minhas, descansava em casa, deitada na sombra. Como qualquer outra pessoa jovem adulta, scrollava sem intenção nas histórias do Instagram. “Bilhete para Katharina Ernst, hoje na Gulbenkian, 5€”. Sem mais demoras, dei sentido ao meu dia.
Katharina Ernst era um nome novo para mim e fui ver o seu concerto sem qualquer impressão a priori. E, da já conhecida Fundação Calouste Gulbenkian, são do meu apreço o jardim, as exposições e, claro, os concertos. Já com o público, tenho tido alguns dissabores. Voltando à artista austríaca, convidada a participar na 37ª edição do Jazz em Agosto, vinha apresentar o seu álbum de estreia, Extrametric (2018). Quando entrei no Auditório 2, vi uma bateria e um gongo com cerca de 1 metro.
Katharina entra em palco, uma mulher caucasiana com cabelo preto e penteado à tijela, um casaco dourado brilhante. Começa o concerto: percebo que a baterista não só vai fazer um espetáculo de percussão, como vai controlar alguns sensores e componentes eletrónicos. A polirritmia criada pela interseção de elementos do jazz, do rock, do techno, do ambiente e ainda com influências da música concreta, dá origem a composições complexas, às quais denomina “estudos”, que exigem algum esforço e conhecimento por parte da pessoa que ouve.
Terminada a primeira música penso no quão brilhante é a artista que estou a ver e, para meu espanto, não se ouvem palmas. Mesmo não conhecendo a obra de Ernst, consigo perceber que não se tratava da mudança de andamentos (momento dos concertos de música clássica em que a conduta diz que não se devem bater palmas), mas sim do final da canção, contudo, segui o comportamento da restante audiência.
A cada segundo e batida marcadas pela baterista, eu me apaixonava mais pelo som que criava e, novamente, há um silêncio ensurdecedor no final da música performada. Não consigo confirmar o que a artista sentia, mas a ideia com que fiquei foi que havia alguma frustração no seu não olhar ao público. Houve uma mudança na energia de Ernst, que tocou a terceira música com mais ímpeto e aí, finalmente, uma alma corajosa de uma das filas da frente toma iniciativa e habemus aplauso! Esboçou-se um sorriso na cara da artista, que se dirigiu de seguida para o gongo.
Foi já tema para um artigo do Público, o habitus das audiências nos espetáculos, consoante a arte (teatro ou música) e o género (clássica, jazz ou rock). São várias as opiniões das pessoas que pertencem ao universo que Christopher G. Small apelidou de Musicking, relativamente às normas que devem ser tomadas nos concertos, no entanto, penso que todas concordamos com uma: o essencial é que haja respeito. Não digo que Katharina Ernst não tenha sido respeitada na tarde de sábado passado, contudo, a alguém que é licenciada em Belas Artes/Pintura, que compõe músicas e as interpreta, tocar uma música e não ouvir palmas é desmotivador, principalmente quando se é uma mulher numa indústria dominada por homens.
Na grande chapa de metal estavam penduradas algumas peças igualmente metálicas e as baquetas iam provocando vibrações que, progressivamente, iam não só aumentando a intensidade como ocupando todo o auditório. A exploração de sonoridades e da polimetria das mesmas, cria um jogo de frequências que sem darmos conta, estamos dentro dele. E quando as baquetas deixam de tocar e o som se vai dissipando, sentimos um vazio, que novamente se intensifica com a falta de aplausos.
É neste momento que me apercebo que da mesma maneira que é necessária coragem para enfrentar um público sozinha para apresentar as nossas próprias composições que quebram os cânones, é também necessária coragem para assumir que se gostou da performance, e que apesar do establishment e das normas pré-estabelecidas, temos o direito de expressar o nosso contentamento e homenagem à pessoa que se encontra em palco. Decidi então não deixar que houvesse silêncio após o término das músicas até ao final do concerto, que se aproximava do fim.
Fico com esperança que Katharina Ernst volte a Portugal e que tenha a sorte de experimentar um público diferente, numa sala de espetáculos ou palco diferentes. Até porque a Gulbenkian, apesar das extraordinárias condições, nomeadamente a acústica da sala, acaba por não atrair um público ou jovem ou aberto a novas experiências, explorações e criações, o que poderá não só comprometer a opinião des artistas para com o público português, mas também a sua auto-apreciação.
Penso que seja, então, necessário reconhecer o trabalho, a coragem, o conhecimento e a criatividade da pessoa que vemos em palco, assim como quebrar sistemas que de alguma forma acabam por nos cristalizar. É também isso o que a música de Ernst nos ensina.
Artigo de Sofia Seixo Garrucho
Dividindo o seu tempo entre estudos, produção musical, Djing e empregos precários, Sofia Seixo Garrucho vai encontrando tempo e espaço para se dedicar à escrita. O seu foco é a música, a cultura e a sociedade, procurando encontrar ordem no meio do caos.