Entrevista. João Monteiro (Motelx): “O primeiro desafio foi acabar com o estigma do cinema de terror em Portugal. Até é um género que dá dinheiro”
O Motelx, festival internacional de cinema de terror de Lisboa, tem já início amanhã, dia 7 de setembro. Estivemos à conversa com os dois organizadores do festival, João Monteiro e Pedro Souto, sobre o estigma do cinema de terror, a presença da Netflix e da Marvel no circuito dos festivais, e a representação da mulher enquanto realizadora e enquanto serial killer. Uma excelente conversa com muitas recomendações de filmes, tanto de terror como não.
No início, não havia Motelx, havia o Cineclube de Terror de Lisboa. E também não havia a grandiosa sala do Cinema São Jorge, mas sim um sótão. Como é que vêm o vosso percurso desde 1997 até aos dias de hoje?
JM: É um percurso maravilhoso, porque ainda estamos a fazê-lo passados quinze anos. Estamos a fazê-lo obviamente melhor, mas continuamos a sentir que fizemos um festival pelas razões certas e que continuamos apostados em tentar estimular o cinema de terror português. O esforço começa a dar alguns frutos. O primeiro desafio foi acabar com o estigma do cinema de terror em Portugal. Até é um género que dá dinheiro. Com esse sair do armário das produções do género fantástico em Portugal, o país começa a atrair produtores. Com a questão da pandemia e do teletrabalho, há muita gente que se está a estabelecer cá, não só atores famosos mas também produtores que estão interessados em trabalhar com talento local. O mais importante destes quinze anos – para além de trazer grandes mestres do terror — tem sido o trabalho com o cinema português, que nós começámos até antes do Cineclube de Terror de Lisboa. Antes não havia nada, não se falava sobre isto. Hoje o panorama cinematográfico está diferente.
Por falar na COVID-19, esta é já a vossa segunda edição em tempos de pandemia. Quão diferente foi a organização destas últimas duas edições? Sentiram que havia menos filmes por onde escolher?
PS: Este ano pelo contrário. Sendo o segundo ano de pandemia, houve uma série de adiamentos de filmes do ano passado para este ano. Também muitas curtas-metragens continuaram a ser produzidas, apesar das dificuldades do confinamento. Nesse sentido não foi difícil procurar e selecionar filmes este ano. O que foi mais difícil do que no ano passado foi o facto dos filmes estarem disponíveis todos em simultâneo. Como há uma concentração muito grande, não existem salas suficientes para tantas estreias. Além disso, as salas ainda estão a meio gás, portanto as estratégias de promoção e lançamento de alguns filmes mudam muitas vezes de uma semana para a outra. Por isso, continuaram a ser adiados muitos filmes, um mês ou dois ou três, o que nos dificultou muito a vida. Não só pelo facto de perdermos alguns filmes, mas pelo facto destes reagendamentos nos dificultarem o fechar da programação final e dos horários. Foi um segundo ano de mais stress e maior cansaço para a equipa. O cansaço de trabalhar em teletrabalho, as falhas de comunicação, etc. Em termos de cinema de terror, está a ser incrível. Muitas coisas boas hoje em dia.
Em termos mais gerais, qual acham que vai ser o impacto a longo prazo da COVID-19 na indústria do cinema? Na produção, na distribuição, na visualização em sala versus em streaming.
JM: A COVID só veio acelerar o processo que já estava a acontecer. Antes da pandemia já tinhas as grandes discussões: desde os festivais que não tinham filmes da Netflix, aos Óscares que não queriam admitir filmes da Netflix. A pandemia deu para estas pessoas mudarem de ideias e perceberem que a sobrevivência do cinema depende de aceitar que já não vivemos os tempos de antigamente. Os grandes festivais não serem só para cinema alternativo ou de autor, mas começarem a mostrar tudo, desde a Marvel até ao cinema de autor, para manter o cinema em sala. O próprio negócio está a mudar: agora os filmes já são pensados para sala e para streaming. É o novo modelo de negócio. As distribuidoras também começam a querer mudar as suas estratégias com a maior abertura dos chamados “festivais de classe A” para o cinema de género. Houve muitos filmes este ano que, estranhamente, não só não tivemos acesso, como nos foi dito que esse modelo de negócio acabou. Não consigo fazer grandes previsões como é que será para o ano, mas a diferença entre 2020 e 2021 foi grande. Só espero que não acabem totalmente as salas de cinema, que haja alternativas que não se restrinjam apenas à Cinemateca ou às cinematecas locais.
PS: Apesar de tudo, a questão do consumo de cinema em casa não nasceu com a Netflix. Já vem do tempo dos clubes de vídeo, portanto é perfeitamente natural este mercado e este tipo de consumo se expandirem. Adicionalmente, nunca houve tanta produção de cinema no mundo. É impossível escoar cinema só através das salas, mesmo se estivessem no auge da sua popularidade, o que infelizmente não estão. As poucas salas que existem acho que vão continuar a mostrar cinema. A apetência por conteúdo é enorme, portanto vai haver cada vez mais filmes. Pelo menos em termos de produção, as coisas não vão acabar. Agora que estão a mudar é um facto.
Passemos para a edição deste ano. A peça central é o novo filme de David Lowery, “The Green Knight”. Como foi o processo de assegurarem a estreia nacional daquele que é já um dos filmes mais aclamados do ano?
JM: Geralmente, as distribuidoras vêm ter connosco. A sessão de abertura de um festival significa promoção para o filme. Já no ano passado tínhamos procurado o “The Green Knight”, porque somos fãs da [produtora] A24. De repente deram-se todas estas mudanças de calendário e o “The Green Knight” veio parar a setembro. Fomos contactados e dissemos logo que sim. É um dos grandes filmes do ano e estamos muito contentes por abrir com uma obra do David Lowery. O filme não é aquilo que o trailer parece indicar, não é uma fantasia tipo “Senhor dos Anéis”. É algo completamente diferente. Consegue desconstruir uma fábula medieval, que acaba por se refletir muito nos tempos presentes, daí o filme ter sido tão bem recebido nos últimos tempos.
PS: Ao longo dos anos temos trabalhado com todas as distribuidoras portuguesas. Acho que podemos dizer que temos uma excelente relação com elas. Às vezes é mesmo ter sorte no calendário, como foi o caso do “The Green Knight”. O filme teve a sua estreia mundial no final de julho, mas tivemos a sorte de em Portugal ser só em setembro – o que também é um perigo, porque se o filme não tivesse recebido boas críticas, era o mês inteiro de agosto com más críticas [risos]. É o risco que temos de correr.
JM: A vida é assim.
Na vossa programação para este ano, houve uma secção que despertou o meu interesse, a “Fúria Assassina: Mulheres Serial Killer”. São seis filmes centrados em personagens femininas. O que esteve na base da criação desta secção especial este ano?
JM: Alguma saturação de programador. O trabalho de programação, como requer ver muitos filmes, pode provocar saturação, mas também dá outra perceção: quando se vê alguma coisa diferente, nota-se imediatamente. Têm vindo a aparecer filmes que essencialmente mudam as peças do xadrez. Por exemplo, um slasher em que é a mulher a assassina e os homens as vítimas. Este tipo de nova representação é a razão pela qual o cinema de terror está novamente a adquirir alguma importância, a estrear noutros festivais, e a ganhar prémios. Vem também com a mudança social que está a acontecer. Esta secção foi motivada por um filme que está na programação deste ano: “Black Medusa” (ismaël, 2021). Achámos extraordinário por ser um filme de um país muçulmano, pelo tema que tratava, por ter uma mulher assassina. Começámos a pensar “quantos filmes é que já vimos deste género?”. O “Monster” (Patty Jenkins, 2003) era o único, ou pelo menos o mais famoso. Quisemos fazer um exercício que recuperasse e relembrasse estes filmes. Desde o “Audition” (Takashi Miike, 1999) ao “Baise-moi” (Virginie Despentes e Coralie Trinh Thi, 2000). Desde a figura da Condessa Bathory em “The Countess” (Julie Delpy, 2009) ao filme da Cindy Sherman, “Office Killer” (1997), que é sobre uma assassina de escritório. Quisemos tentar perceber porque é que o papel de “assassino” não tem foco sobre as mulheres. São geralmente os homens – não só no cinema, como na vida real. As mulheres não são alvo do culto dos serial killers que os homens são. Não há nenhuma famosa ao nível do Ted Bundy ou do Charles Manson. É interessante pensar sobre isso e depois ver os filmes. Cada um tem a sua história, mas são todos filmes furiosos [risos].
[risos] Como o título indica.
JM: São quase todos realizados por mulheres, acho que isso quer dizer alguma coisa. Acabam por ser filmes exatamente sobre essa impossibilidade da representação da mulher enquanto serial killer.
PS: Sim, essa associação à representatividade da mulher enquanto realizadora é algo que também queremos discutir, porque nota-se muito facilmente os pontos de vista diferentes e as abordagens diferentes quando é uma realizadora. Estamos perante um género que não tem dado espaço às autoras de continuarem, de progredirem, de se expressarem, no fundo. Nem sequer têm hipótese de começar muitas vezes. Está a mudar obviamente e mudou muito nos últimos anos, mas não deixa de ser uma discussão pertinente. É isso também que vamos fazer num painel que vai acompanhar esta secção.
Há algum filme particular, de entre as 70 curtas e longas que apresentam este ano, que queiram realçar? Algum título que possa estar na sombra de toda a atenção que o “The Green Knight” tem recebido.
PS: Eu vou destacar um filme chamado “After Blue” (2021), do Bertrand Mandico, realizador muito famoso e muito conceituado a nível de cinema experimental e a nível dos universos que cria: muito ligados à fantasia, aos monstros, às texturas. Esteticamente, é muito rico. Esta longa metragem apresenta-nos um planeta onde só as mulheres conseguem sobreviver. É uma aventura erótica, com um ligeiro retro sci-fi, quase tribal, tribal futurista. Sendo um planeta alienígena, teria que ter um pouco esse surrealismo. É acompanhado de um erotismo muito suis generis neste tipo de filmes, quase já em desuso, que nos leva para universos como “Barbarella” (Roger Vadim, 1968) e Mario Bava, mas com a personalidade muito vincada e forte do Bertrand Mandico.
JM: Eu gostava de destacar um filme tailandês chamado “The Maid” (Lee Thongkham, 2020). Temos mostrado bastantes filmes tailandeses nos últimos tempos. É interessante ver as diferenças entre as cinematografias asiáticas: a japonesa é muito mais iconoclasta, a coreana é mais realismo social, e a tailandesa parece absorver tudo. [No caso do “The Maid”], para além da representação feminina, há uma grande metáfora acerca das classes sociais e da ascensão social. É um filme com uma premissa que parece ser o habitual “jovem vai trabalhar para uma mansão como criada e começa a perceber que é uma casa assombrada e que há um grande segredo”, mas depois a resolução do filme apanha-nos de surpresa. Tem um comentário social muito acutilante e que faz lembrar os filmes do Harold Pinter, como “O Criado” do Joseph Losey. Isto é uma espécie de versão gore de “O Criado”, mas com mulheres tailandesas. [risos]
Em 2019, trouxeram o Ari Aster ao Motelx, por ocasião do “Midsommar”. Que outros realizadores de cinema de terror é que gostariam de trazer ao festival?
JM: Gostávamos de trazer realizadoras, que é uma coisa que nos tem faltado. Adorava trazer a Jennifer Kent, que fez o “The Babadook” (2014) e um grande segundo filme, o “The Nightingale” (2018). Também estivemos quase para trazer a Jennifer Lynch, a filha do David Lynch, mas à última da hora por uma questão profissional não deu. Nós já atingimos aquela fase em que alguns dos nossos convidados já cá não estão no planeta. São aquelas oportunidades que aparecem. Se alguém me diz “Queres o ‘Midsommar’ do Ari Aster?”, digo “sim, claro”. Aliás, achávamos que nunca conseguiríamos o Ari Aster no pico da sua força. Deste tipo de novos criadores, o Ben Wheatley do “In the Earth” (2021) também gostávamos de trazer.
PS: Há um realizador que seria muito interessante pelo seu percurso que é o Alexander Aja, um francês que foi para os Estados Unidos depois do “Haute Tension” (2003) e que tem uma filmografia no mínimo suis generis porque mistura um pouco de tudo. O último que eu revi foi o “Piranha 3D” (2010), que é absolutamente hilariante. Tem feito um percurso completamente louco. Às vezes um terror mais sério, mais assustador, mais fantasmagórico; outras vezes mais a cair para o surrealismo ou para a comédia gore. Além de que fez parte desse grupo – mítico já – da nova vaga do terror francês. Neste caso, ele fez muito mais filmes que os outros, pelo menos em quantidade e talvez em variedade. Acho que era interessante conhecê-lo e trazer uma das suas últimas obras.
JM: Takashi Miike é outro que está sempre a trabalhar, nunca conseguimos [trazê-lo]. Já agora acrescentar um que gostamos muito, que está ligado à primeira edição do festival, que é o Bong Joon-ho. Passámos o “The Host” em 2007, não fazendo ideia que ele um dia iria tornar-se no cineasta coreano mais conhecido do mundo.
Nem ele fazia ideia!
JM: O maior vencedor, o maior papa-prémios que existe. É alguém cuja carreira nós seguimos. Também passámos o “Snowpiercer” (2013).
Ainda esta semana vi o “Memories of Murder” (2003), que a dada altura se torna num filme de terror.
JM: Sim, também o “The Host” e o próprio “Parasitas” (2019). O Guilherme del Toro é outro realizador de terror que ganha muitos prémios. Já tivemos alguns contactos com ele. Nós tentamos sempre, mas estas coisas estão sempre dependentes de fatores que nos ultrapassam, nomeadamente agendas. Em geral, estas pessoas gostam de ir a festivais e gostam de interagir. Ainda por cima, Lisboa continua a ser uma vantagem para atrair. Vamos esperar que o Bong Joon-ho venha viver para Lisboa!
[risos] Para terminar, gostava de vos perguntar que filmes têm visto recentemente. O melhor filme, que não seja de terror, que tenham visto nos últimos tempos e que recomendariam aos nossos leitores.
PS: Essa é difícil. Temos que mudar um bocado o chip.
JM: Quando é que foi a última vez que vimos um filme que não fosse de terror? [risos] Eu vi dois documentários que achei alguma graça. Um deles é do Edgar Wright, o “The Sparks Brothers” (2021). Não é perfeito, mas pelo menos introduz-te à obra dos Sparks. No mínimo ficas com vontade de ir ouvir os discos deles. O outro documentário é também da parte musical – é aquilo que eu faço para além dos filmes de terror: ver documentários sobre música para relaxar [risos]. Começa com o próprio realizador a dizer que queria fazer um documentário sobre música e acabou por fazer um filme de terror. É o “Woodstock 99” (Garret Price, 2021), sobre essa mítica edição de 1999. É um bocado como um outro filme que vamos passar, o “Fukushima 50” (Setsurô Wakamatsu, 2020). Lembramo-nos de qualquer coisa ao de leve, de que correu mal, mas não fazemos exatamente ideia do que aconteceu. A história de porque é que aquela edição acabou com tudo a arder é absolutamente assustadora. É mesmo um filme de terror.
PS: Eu gostei bastante do “Nitram” (2021) do Justin Kurzel, que esteve agora [no Festival de] Cannes. É um filme que se adequa perfeitamente ao nosso programa. É um realizador de quem eu gosto muito já desde o primeiro filme, o “Snowtown” (2011). Em termos de captar a parte social, a vida das personagens, a família, ele é incrível. O ator principal [Caleb Landry Jones] é fenomenal.
Até ganhou o Prémio de Melhor Ator em Cannes com esse filme.
JM: Lembrei-me de mais um, o “Vitalina Varela” do Pedro Costa. Um filme que tem aspeto de filme de terror. Não há ninguém a fazer filmes como o Pedro Costa no mundo, nem digo em Portugal.