“Sombra”, de Bruno Gascon: grande interpretação de Ana Moreira em filme baseado no caso Rui Pedro
Rui Pedro tinha 11 anos quando, em 1998, desapareceu sem deixar rasto. O caso correu o país inteiro e até aos dias de hoje, vinte e três anos volvidos, mantém-se impresso na memória dos portugueses. Novos e velhos, todos conhecem Rui Pedro, bem como Filomena Teixeira, a definição de mãe-coragem.
A segunda longa de Bruno Gascon, depois de “Carga” (2018), tem como inspiração maior este trágico caso e é dedicado a Rui Pedro e a outras crianças desaparecidas em Portugal. “Sombra” apresenta um elenco de peso. Encimado por Ana Moreira (ler entrevista à atriz), conhecida de filmes como “Tabu” (Miguel Gomes), “Os Mutantes” (Teresa Villaverde) ou “Os Maias” (João Botelho), destaca-se também Tomás Alves no papel de Inspector Santos da Polícia Judiciária. O filme conta ainda com Vítor Norte, Ana Cristina Oliveira, Joana Ribeiro, Miguel Borges, Ana Bustorff, João Cabral, Lúcia Moniz, e até Sara Sampaio.
“Sombra” é, inevitavelmente, angustiante pelo tema que retrata. Um filme que é menos sobre Pedro do que é sobre Isabel, a sua mãe. Pior que a morte de um filho talvez só mesmo o seu desaparecimento sem paradeiro. Na sua ausência, fica apenas um vazio e a dúvida se se encontra vivo ou não. Como diz Isabel no início do filme, “em tempos de guerra, os pais enterram os filhos. Eu não tenho ninguém para enterrar”.
É impossível falar de “Sombra” sem destacar Ana Moreira, que dá a cara em praticamente todas as cenas. A atriz é o rosto do filme, rosto este que espelha a dor insuportável e insuperável de Isabel. Rosto que luta contra o luto que lhe insistem que tome. Rosto que não abandona a esperança que lhe tentam tirar. A busca de Isabel por Pedro estende-se ao longo de vários anos, de 1998 a 2013, e Ana consegue mostrar o impacto do passar do tempo no aspecto físico e mental da sua personagem. Ana Moreira é daquelas atrizes que diz mais com um olhar do que com uma fala.
Se se pode dizer que Gascon foi exemplar no casting de Ana Moreira para o papel principal, o mesmo não se pode dizer dos papéis secundários. A impressão com que se fica é que foram vários os atores que passaram pela rodagem durante um dia ou dois, para filmar as duas ou três cenas incluídas na versão final. O resultado é um desfile de personagens secundárias que surgem na narrativa tão rapidamente como desaparecem.
Um outro elemento de “Sombra” que pouco serve o filme é a banda sonora. Antes de mais, foi lhe concedido um volume excessivo, completamente desajustado com os restantes sons: são várias as cenas em que se ouve mais a banda sonora do que as falas dos atores. Acresce que esta é talvez a banda sonora mais intrometida possível, i.e., não faz falta à cena e ainda assim ei-la. Numa entrevista em 1961, o realizador Michelangelo Antonioni dizia “em certos filmes (…) uma cena triste é sempre acompanhada com música de violino porque se sente que os violinos criam uma atmosfera de tristeza. Isso parece-me uma forma totalmente errada de usar a música (…). Tenho suficiente fé na eficácia, no valor, na força, na sugestividade da imagem”. Ora o que falta a “Sombra” é precisamente fé em si mesmo e nos espectadores. Confiar que não precisarão de violinos tristes para se emocionarem. Veja-se a cena em que Isabel assiste a vídeos de pornografia infantil. A banda sonora reina suprema. Não bastava o horror desenhado na cara de Isabel e os gritos perturbadores das crianças? A música não só nada acrescenta à cena, como retira o espectador do momento.
A montagem do filme também merece umas palavras. Há várias cenas que podiam ter sido eliminadas no processo de edição. Numa das mais flagrantes, o Inspector Santos abre o seu caderno para escrever em letras gordas o nome “Patrícia” e fecha-o de seguida, fim de cena. Adicionalmente, em diversas ocasiões, o plano é interrompido por um corte que retira o peso à cena. A título de exemplo, quando Isabel lê a composição que Pedro escreveu sobre si – um momento comovente e uma bonita alusão ao laço inquebrável entre mãe e filho –, há um corte durante a leitura do texto que em nada serve senão para mostrar Isabel de um ângulo diferente.
Tudo somado, “Sombra” recomenda-se pelo seu tema tão marcante na sociedade portuguesa, pela interpretação tão sentida de Ana Moreira, e pela oportunidade tão rara que é assistir a uma produção portuguesa desta dimensão.