SZA perdeu o ‘Ctrl’ e conquistou
Depois de inúmeros avanços e recuos, o álbum de estreia de SZA foi finalmente dado a conhecer ao público em geral. Por mais que uma vez, a rapper já havia manifestado o seu profundo desagrado face aos recorrentes atrasos concernentes ao projeto. As redes sociais chegaram a servir de palco ao pequeno beef entre a artista e o co-presidente da T.D.E. – a mesma label que representa Kendrick Lamar, Schoolboy Q e outros astros do hip-hop americano – com a mesma a declarar, em Outubro passado, “I actually quit” e responsabilizando indiretamente o superior pela longa demora.
Porém, e mais de meio ano volvido, o contencioso parece ter sido ultrapassado e os ânimos serenados. Face ao que seria de esperar – despoletado pelo seu anúncio, tido como um ato repentista e irrefletido – SZA não abandonou a música. Tomou-a de assalto, um pouco à imagem do que vem fazendo desde o lançamento do primeiro EP.
Culpa ou não deste complexo processo de criação, o seu 1ª longa-duração foi divulgado ainda na primeira quinzena de Junho. E regozijemos, pois a frequente colaboradora de Rihanna e Isaiah Rashad é autora de um dos mais frescos projetos de R&B dos últimos tempos, num registo que é tão maduro como ousado, ao atrever-se a extravasar as barreiras de género sem que a experimentação musical caia em moléstia.
A mãe da artista é a primeira interveniente no mais recente sucesso da filha: ainda Supermodel não deu a ouvir os primeiros acordes e escutamos a progenitora de SZA abordar a questão do controlo, ou falta dele, como principal fonte de medo. Referência ao título da obra? Talvez: a sigla Ctrl dá pouca margem a erros. E por oposição, o título do álbum não podia estar em maior desacordo face ao seu conteúdo: liberdade e libertinagem femininas. Na verdade, estamos perante o relato pessoal das mais variadas aventuras emotivo-sexuais creditadas a Solána Rowe, nome real da cantora.
Há espaço para considerações de índole pessoal – até algumas revelações exclusivas – sempre visando a odisseia sexual no feminino, num registo pouco ortodoxo e deliciosamente inesperado.
Ainda em Supermodel – primeira faixa do projeto – chocamos com os seguintes versos: “Let me tell you a secret / I been secretly banging your homeboy / Why you in Vegas all up on Valentine’s Day?”. Há algo profundamente exposto de forma sub-reptícia. Como a própria confidenciou no passado, em entrevista, um seu ex-namorado deixou-a no dia de S. Valentim para rumar a Vegas. O que fez SZA? Deitou-se com o seu melhor amigo, em jeito de vingança envolta em revolta. Nada de extraordinário, não tivesse a autora garantido ser esta a primeira vez que o próprio ouviria sobre o assunto.
As colaborações efetivas também têm lugar cativo neste álbum. São cirúrgicas e apenas três, com Travis Scott a abrir as hostilidades. Love Galore e respetivo vídeo já eram conhecidos do grande público, embora nos mereçam igual escrutínio. Nela, trocam-se ideias sobre… comodismo sentimental. Ambos cantam “Why you bother me when you know that you don’t want me?”. O verso e o tema no geral ganham importância redobrada, não estivéssemos nós na época da interactividade digital, do combate à solidão através de dedos contra os ecrãs, ao invés de olhos contra olhos.
Kendrick Lamar intervém noutro dos momentos altos (este álbum tem momentos baixos?):
“(…)Pussy can be so facetious, the heavyweight champ / Pussy is so undefeated, let’s amen to that / I mean, the pump fakes on the Facebooks / And the screw face when the bae look(…)”
Doves in the Wind é o pretexto ideal para nos lembrarmos que este jogo de ritmos, lírica e som – pelo menos no que ao hip-hop concerne – tem um rei que reina como poucos o fizeram antes dele. Não ofusca ou obstrói a autora, antes se complementam numa simbiose perfeitamente calibrada, quase fazendo questionar se na vida a dois se entenderiam tão bem como na senda musical.
A faixa anteriormente referida representa a skill, o show-off e é um hino a todos os niggas que se deixam comandar pelo desejo sexual, assim como aos verdadeiros homens que merecem bem mais que puss*, como nos vai dizendo SZA.
The Weekend é diferente: há fragilidade e sentimento, amor e ódio, resignação e inquietude. A partilha de um homem com outra mulher obriga a que se engulam e processem mixed feelings. E como sempre a voz que nos acorda do transe provocado pela produção (qualquer adjetivação pecará por escassa) é suave, escorrega pelos canais auditivos e provoca um bem-estar inexplicável.
Sobretudo sente-se uma reflexão dos tempos, com base na progressão e emancipação do género feminino. Uma análise às relações sexuais vigentes, ao pára-arranca sentimental de que vamos sendo vítimas e perpetradores. Estamos perante o relato do preço pago por elas, que se atrevem a desafiar estigmas e concepções estereotipadas. Este é um disco de – e para – mulheres que ousam.
É interessante que a artista tenha preenchido um vazio pouco perceptípel, algures entre o pedantismo lamuriante de Kehlani e a emancipação forçada, histérico-plástica e nauseante de Nicki Minaj. Há uma voz, um modo próprio com que se dirije ao ouvinte. Um estilo de storytelling muito próprio da TDE – Schoolboy Q, Jay Rock e K. Dot são disso os principais bastiões – ainda que pouco visível em intérpretes femininas. SZA quer contar uma história que é sua, sendo de todos – e que não sendo nova – é relato de vital importância.
Fazendo isso por via da música, a conquista é excelsa. Há um arrojo excitante nas letras, até na delicadeza com que os tópicos são abordados, maioritariamente correspondido por produções que fazem lembrar obras-primas como Blonde, editado há sensivelmente um ano atrás.
Mesmo as sonoridades mais trap-oriented são prontamente alternadas, ora por guitarras melódicas e outros artifícios próprios de indie rock, ora pelo boom bap mais selecto até ao soul mais relaxante. Essa mistura exótica consubstancia-se numa peça musical de incontornável valor, definidora do modo disruptivo com que SZA faz música desde sempre, ainda que esse resultado só agora ouse atingir os ouvidos das massas. A qualidade de Ctrl torna óbvio que só uma desatenção gritante poderá explicar a ausência deste belíssimo álbum das listas de melhores do ano. Afinal, quantos artistas se podem gabar de ter acertado no alvo ao primeiro tiro?