Está tudo bem?

por Romão Rodrigues,    1 Fevereiro, 2021
Está tudo bem?
Fotografia de Noah Silliman / Unsplash

O facto de Gaspar ter algo – e sublinho “algo” por ser uma palavra pela qual nutro um sentimento execrável – preparado para acender o rastilho de mais um desassossego desvaneceu. E desvaneceu bem, de modo voraz. Visto que já teve a oportunidade de afirmar vivamente a minha inaptidão em iniciar qualquer coisa. Textos incluídos. Ele prefere ser bem-educado ou parecer que o sou. Não seria de tom excelso – note a sobranceria, derivada da polissemia – cumprimentar primeiro quem poderá estar a ler enquanto purga substâncias (falta um adjetivo)?

“Está tudo bem?”

Espero que sim – respondeu Gaspar. O mesmo pede que tentem reter alguma coisa destas palavras, antes do atirar das pedras metaforizadas em insultos. Porque é coisa que é capaz de doer. E toda a gente sabe que o ser humano não está preparado para sofrer.

O inesperado aconteceu: experimentou-se um apagão das redes sociais mais utilizadas recentemente, capaz de colocar o vapor de água em estado líquido de milhões de pessoas. Por mero acaso, na altura devida, o autor deste texto não se apercebeu pelo facto de estar a laborar. Contudo, as notícias e os dizeres das horas posteriores à fatalidade despiram as dúvidas e vestiram o autor com análises do espetro integral da existência.

Volvidos uns dias, sucedeu o apagão pessoal. O blackout interior. O protesto defronte de uma comunidade dentro de uma comunidade ainda maior. O desapego a uma automatização aparentemente fraternal.

Altura das questões requerida. Façam o favor!

“Mas este gajo vem dizer que apagou as redes sociais porquê? Alguém lhe perguntou alguma coisa? Por que razão falam estes abutres de redes sociais quando não as têm ou as eliminam? Qual é a necessidade de trazer este tema à baila? A pandemia veio acicatar estupidez? Mas está tudo bem com esta gente?”

Gaspar prometeu não dar uma de Umberto Eco. Como tal, não aflorará tais temas de debate. O impensável foi transportado de vários ecrãs e atracou em dispositivos semelhantes. Ecrãs, portanto.

Várias foram as mensagens depois do reparo. “Está tudo bem? Passa-se alguma coisa? O que é aconteceu?”

Ingenuamente, Gaspar devolveu a primeira pergunta e ficou a ruminar as outras duas com uma estranha perturbação. Porém, rapidamente olvidou a inóspita sensação que o preenchia e retomou a atividade que anteriormente realizava.

As introspeções, a partir daquele momento, malearam o tempo, ajustando para valores estratosféricos o decurso dos ponteiros. Subitamente, tudo era drama e comédia trágica – termo empregado para hermenêutica futura, preferencialmente na caixa de comentários – voltas à cadeira e mãos na fronte, olhares distantes e fixos.

No livro Recordações da Casa dos Mortos, absorvem-se passagens de teor espiritual acentuado, de esdrúxula investigação pessoal e íntima, da demanda pelas razões do verbo ser com letra capital, aquele com significado filosófico e capaz de enlouquecer qualquer alma que (sobre)viva. Nas redes sociais, acontece algo bem semelhante.

“Está tudo bem?” – perguntaram outra vez.

Gaspar ripostou que dependia da definição de cada um daquilo acerca do que era o bem. A discussão germinou e, até agora, novidades escasseiam. Consta-se que a sua saúde não foi afetada.

Os outros ecrãs escreveram posts a expressar preocupação. Dirigiam-se a Gaspar, segundo vários printscreens e não segundo o que se diz (expressão em desuso).

No fundo, são recordações que o comum leva da sua insignificante estadia.

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