A perda da humanidade em ‘The Lost City of Z’

por João Miguel Fernandes,    11 Julho, 2017
A perda da humanidade em ‘The Lost City of Z’

Quando em 1899 Joseph Conrad escreveu o livro Heart of Darkness nunca seria capaz de adivinhar a influência que a sua obra iria ter no cinema, muito menos que essa influência iria durar pelo menos até 2017.

O tema do livro Heart of Darkness é o paralelismo entre sociedade moderna avançada e as profundezas da escuridão de uma outra sociedade enigmática e, teoricamente, mais primitiva. Esse paralelismo resulta num confronto natural entre a situação política actual do imperialismo e do racismo, mas acima de tudo do confronto pessoal entre humanidade e natureza, a humanidade vista, inicialmente, como luz, e esta natureza enigmática como completa escuridão. O que acontece ao longo do livro é um desenvolvimento natural destes dois temas, criando a ideia de que a sociedade moderna (Império Inglês) é no fundo a verdadeira escuridão e que o homem moderno é o verdadeiro mal, ao invés dos indígenas e povos circundantes do Congo. A floresta e rio servem como metáfora para a descida do homem ao inferno, o twist prende-se com essa metáfora, onde o verdadeiro inferno está dentro de cada um de nós, da nossa cultura e mentalidade e não do que à primeira vista aparenta ser o pior do ser humano, o lado mais primitivo e selvagem.

A obra de Joseph Conrad é susceptivel de várias interpretações e esta é apenas uma delas, mas mais objectiva é a sua influência em filmes como Aguirre, The Wrath of God (1972), de Werner Herzog, ou Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. No caso de The Lost City of Z , realizado por James Gray, estamos perante o mesmo caso, onde as temáticas do livro são transpostas para o ecrã e para os seus personagens, embora este filme seja uma adaptação do livro de David Grann de 2009 com o mesmo nome. A parte curiosa desta introdução está relacionada com o facto do livro ser uma biografia, baseado numa histórica veridica que ocorreu em 1925. As grandes questões que se colocam são: terá o explorador britânico Percy Fawcett lido a obra de Joseph Conrad? Terá essa obra inspirado a sua viagem até ao coração da Amazónia? Ou será tudo apenas uma grande coincidência?

James Gray é actualmente um dos grandes realizadores do nosso tempo. Este prodígio da realização e da narrativa teve a sua estreia em 1994 com o incrível Little Odessa, que lhe valeu vários louvores e aplausos internacionalmente, já que se trata de uma obra bastante madura e dura para um jovem que tinha apenas 25 anos! A partir daí Gray tem tido uma carreira repleta de qualidade, mas com alguma dificuldade comercial, embora o seu filme Two Lovers, com os actores Joaquin Phoenix, Gwyneth Paltrow, Vinessa Shaw, tenha tido grande sucesso.

Chegamos a 2016 e ao primeiro filme que não vem directamente da cabeça de Gray (embora nos anteriores tenha tido a ajuda de outros argumentistas). The Lost City of Z, a adaptação da obra de David Grann, viu alguns problemas de comercialização, assim como a sua obra anterior: The Immigrant, com os actores Marion Cotillard, Joaquin Phoenix ou Jeremy Renner. Contudo, após alguns meses conturbados de distribuição, o filme viu a luz do dia por todo o mundo e, no geral, tem sido bem recebido.

The Lost City of Z retrata assim a obsessão da descoberta de uma possível nova civilização por parte do explorador britânico Percy Fawcett (Charlie Hunnam) e mais tardiamente do seu filho. Pelo meio temos muita intriga, uma narrativa romântica ao estilo de Terrence Malick e um personagem que se vai isolamento cada vez mais na sua própria obsessão, bem ao estilo da obra de Conrad.

 

Se do ponto de vista técnico o filme não tem qualquer falha, sendo até dos filmes com maior qualidade e atenção ao detalhe do ano passado e deste ano, pelo menos até agora. Darius Khondji, o director de fotografia, o mesmo de Amour, Se7en ou Midnight in Paris, contribuiu imenso para este sucesso visual. Já de um ponto de vista narrativo e de construção de personagens o filme fica um pouco aquém. Embora tenhamos sido habituados nos filmes de Gray a personagens repletos de problemas interiores, em The Lost City of Z tudo fica um pouco aquém das expectativas. Não é certo se a culpa vem da adaptação ou do próprio Gray, mas a verdade é que o personagem de Fawcett nunca chega convincentemente a mergulhar na escuridão que o seu personagem exige. Fica a ideia de que a culpa não é de Charlie Hunnam, nem de Robert Pattinson, que interpreta um guia de terreno meio apagado, algo incomum para o seu carácter. Pelo contrário, Sienna Miller brilha na sua esplendorosa actuação, com a melhor presença de todo o filme, fruto de uma maturidade adquirida em filmes como Foxcatcher, American Sniper ou High-Rise, onde trabalhou com grandes realizadores preocupados com o desenvolvimento de personagens.

O arco narrativo de The Lost City of Z é instável e desconstrói o possível suspense que a história original possui. O facto de estarmos sempre a sair do cenário da Amazónia e a regressarmos confortavelmente a “casa”, sem que o personagem principal esteja realmente mais afectado, torna toda a narrativa meio volátil e leve, algo contrário ao tom que o filme deveria ter. Do ponto de vista técnico é genial ver James Gray a fundir um filme de exploração com um filme de guerra, além da forma como aquele final consegue acarretar tantas emoções sem que explore directamente o sofrimento dos personagens envolvidos. Conseguimos sentir a obsessão de Fawcett em encontrar a sua cidade de Z, uma alegoria da noção de civilização avançada, uma crença tão marcada na sua personalidade que o leva a enfrentar essa própria civilização, pondo em causa a sua própria vida.

The Lost City of Z é uma bela viagem até às profundezas da Amazónia, onde o pior da humanidade se reflecte na sociedade mais avançada, ao contrário da sociedade primitiva, que à primeira vista é cruel, mas que no fundo é muito mais avançada em vários aspectos sociais e humanos. Este confronto é sem dúvida a melhor questão desenvolvida na narrativa do filme e o aspecto mais Heart of Darkness, embora o personagem principal pudesse encaixar no protagonista do livro de Conrad. Fica a ideia de que com mais profundidade e desenvolvimento de personagens este filme poderia ter sido uma obra prima. Contudo, até o “pior” Gray é um bom filme.

Nota final: o filme coloca-nos uma questão que atravessa o tempo até aos dias de hoje: Quem é realmente a sociedade mais evoluída?

 

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