O Baudelaire de Llansol: a flor traduzida

por Pedro Lopes Adão,    20 Dezembro, 2021
O Baudelaire de Llansol: a flor traduzida
Capa do livro

O trabalho do tradutor presume-se monótono, repetitivo, tendo por base a “simples” tarefa de transpor as palavras de uma determinada língua para outra, procurando não desvirtuar o significante e o significado dum referente; por tais motivos, X, que conotaremos como hipotético substantivo em inglês ou francês, terá de ter em português o seu valor equivalente, X-1, ou, na impossibilidade de transpor diretamente os códigos das linguagens, um valor sinonímico, X-2, ou, em última instância, metonímico-metafórico, ou seja, X-3; a tradução de X em Y só deve acontecer no caso de uma excecional incompatibilidade na coexistência de estruturas paralelas e estáveis correspondentes entre si.

Agora que tal está esclarecido, tratemos daquilo que verdadeiramente importa.

Maria Gabriela Llansol, finíssimo, porém menosprezado, vulto literário português, ímpar tradutora dos mais altos colossos da poesia, recebeu do público coevo e moderno todo um desdém injusto e o olhar indagador e desconfiado dos linguistas pouco formados. A tradução de “Les Fleurs du Mal”, de Baudelaire, constitui o caso mais pertinente, e mais sagaz, inclusive polémico.

Uma pergunta logo foi levantada pela crítica: Serão as traduções de Llansol lícitas? : infelizmente mal respondida por todos os que tentaram tratar deste assunto, pretendo rematá-la já: As traduções de Llansol tornam-se lícitas pelo contexto em que ocorrem, isto é, o seu génio apenas se dedicou com tamanha veemência e novidade a poetas cujas obras, previamente, tinham tradução em língua portuguesa, não atacando, portanto, o nexo primordial e virgem de um autor alheio cujo verbo não tivesse ainda representação.

Quanto à passagem da sua pena por Baudelaire, vale notar que estas Flores do Mal, colhidas no jardim de Llansol, mostram terem sido traduzidas (e interpretadas) para além da simples metáfora, assentando num sistema muito profundo e trabalhado de nexos, o qual encontrei, estou crendo, a título de novidade, como sendo de Derivações Poéticas: derivação poética simples, moderada, substancial e, por fim, complexa; a derivação simples ocorre com o uso da metáfora e/ou analogia, colocando X num valor remetível ou aproximável, contrariando os modelos “ipsis verbis” da literalidade; a derivação moderada, mecanismo que, arbitrariamente, poderá englobar o outro, dá-se quando o sintagma sofre uma alteração na sua ordem gramatical usual; a derivação substancial, por sua vez, constitui-se no exato momento em que o leitor vislumbra um verso português que, no brilho que emana, não é a imagem exata ou aproximada do seu modelo francês, mas um corpo que já tem substancial autonomia a partir do qual se originou, mantendo apenas propriedades mínimas do precedente; a derivação complexa, por fim, o mais forte dos processos, ganha vida aquando da máxima autonomia do verso, ou seja, ao contrário do substancial, o verso francês deu origem a um outro que, sem a possibilidade contextual ou comparativa, jamais seria considerado como proveniente daquele – o verso português respira sem auxílio e com um oxigénio muito próprio.

Exposta a estrutura, vejamos onde sucede:

“Sisina”, quinquagésimo nono poema d ́As Flores do Mal (in Spleen e Ideal, págs.140-3), fala de uma guerreira impetuosa que, semelhante em artifício à deusa Diana, não obstante da constante carnificina, manifesta laivos de misericórdia para com os suplicantes. No verso “(…) Mais la douce guerrière/ A l ́âme charitable autant que meurtrière (…)”, os adjetivos que a caracterizam[charitable/meurtrière = caridosa/ mortífera] são transformados, por força da analogia – enquadrada numa derivação poética simples –, nas profissões que exalam estas qualidades por excelência: “(…) Com alma de assassina e de freira (…)” [cf. Llansol].

“Les Aveugles” [= Os Cegos], nonagésimo segundo poema (in Instantâneos Parisienses, págs.212-3), paradoxal, simbólico e filosófico, principiando como matéria de escárnio para depois mostrar a sua faceta comungante, ajudar-nos-á com duas derivações – a moderada e a substancial. A moderada acontece na terceira estrofe llansoliana [=2a francesa], com a inversão acentuada da sintaxe, recurso a figuras de estilo e a aplicação de um particípio presente de sentido ativo: ao trecho “Leurs yeux, d ́où la divine étincelle est partie,/Comme s ́ils regardaient au loin, restent levés/Au ciel; on ne les voit jamais vers le pavés/Pencher rêveusement leur tête appesantie.”, corresponde “A centelha divina vista não lhes deu/Se bem que os olhos continuem voltados para um céu distante/Nunca vemos/Que os voltem sonhantes/Para o chão do chão” (sic); a substancial, por sua vez, pode ser retirada do 1o verso francês que, sofrendo grande dose de emancipação, foi elevado por Llansol a isolar-se como uma estrofe independente: “Contemplons-le, mon âme; ils sont vraiment affreux!”, um verso sugestivo de desdém, foi colhido como “Vê-los comoexemplo”, verdadeira mensagem deste poema.

“Une Charogne” e “Hymne à la Beauté” – qual o melhor para exemplificar a derivação complexa? – não posso apresentar um exemplo axiomático sem me sentir culpado de laxação: se, por um lado, a estética é o grande escudo e espada de uma mensagem – e nesse sentido: “Une Charogne” [“Corpo que apodrece” (sic)], vigésimo nono poema do livro (in Spleen e Ideal, págs.78-83), relato do encontro de uma carcaça, poetização peculiar do amor e do feminino, e de idealismo bucólico macabro, visto por Llansol como uma carta-poema-prosado, dividido em duas interpelações à “Minh ́alma”, sendo a primeira um englobar de experiências e a segunda um reportório de tristezas do “eu-poeta” para o “eu-poeta-alma” – por outro, o léxico e a semântica são igualmente importantes – “Hymne à la Beauté [“Hagiográfica Beleza” (sic)], vigésimo primeiro poema (ibidem, págs.66-7), sofreu nas mãos de Llansol uma potente interpretação (re)construtiva, novidade na totalidade, formando um novo universo: à contraposição baudelairiana infernal/divino, altruísmo/crime, abismo/astros, Satanás/Deus, sucede-lhe uma justaposição de valores e realidades llansolianas, sobretudo de dimensão mais erótica e estética (infernal/divino = Hermafrodita/Extrema; abismo/astros = lixeira cósmica/fragmento estelar), como, por exemplo, in extremis: “ Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques,/Sur ton ventre orgueilleux danse amoureusement.” = “Matas como quem agita guizos e a morte dança sobre teu pénis clítoris langorosa” (sic).

Sim, leitor, já deves ter percebido. Se procuras o mundo onde o verbo é verbo, estas flores não são para ti. Se, porventura, fores audacioso e entusiasta da linguagem, deixa Llansol agarrar-te a mão e levar-te a ver o que é feito desse filho insolente, Baudelaire.

Este texto foi originalmente publicado na revista Devaneio, tendo sido aqui divulgado com a devida autorização do autor.

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