Do início ao fim, respirou-se Milhões
O último dia do Milhões Festa é sempre motivo de luto antecipado: o que é bom, deixa saudade mesmo antes de ter terminado. E não poderia ter acabado de maneira melhor.
Chegado o dia que todos previam, alguns temiam e ninguém desejava, a festa fez-se de enchentes e emoções mistas. A primeira foi registada na Piscina do MdF, ainda as 14h30 não tinham batido. O certame de Ghost Wavvves + Mike El Nite atraiu público de toda a tez, sexo e idade, num atestado de competência às skills de produção de um, às rimas e lírica do outro e à destreza de ambos como dj’s. Entre clássicos da música de dança, músicas do rapper (“Mambo Nº1” e “Time-Lapse”) e faixas do produtor (“Shibuya” e “Skirt”), a plateia foi engrossando e anuindo aos apelos de Miguel Caixeiro, que ia pedindo amor e barulho para o homem com quem partilhava palco. O par de artistas soube estar à altura da fasquia e as expectativas não saíram goradas.
Da Piscina ao Palco Taina são cinco minutos de agradável caminhada, ainda mais se soubermos ao que vamos. As galegas BALA, uma na bateria e outra na guitarra (ambas na voz), fazem daquele rock que dilata veias por vir das profundezas do ser. Numa tarde calma, os urros de ambas escutavam-se por todo o recinto, soando surpreendentemente bem.
Entre comentários laterais, ia-se ouvindo dizer que talvez tivesse sido aquele o melhor concerto do Taina. No meio de todo o ruído – e só cá entre nós – foi delicioso ver duas mulheres cheias de talento, a render um bando de homens com cara de mau. Afinal, o rock toca-se com instrumentos, não com barbas e traços másculos.
De regresso à Piscina para o último concerto da temporada estival, ninguém estava preparado para o que ouviríamos e veríamos a seguir. Saberia, caso o trabalho de casa estivesse feito. Mea culpa. De qualquer forma, aí seguem os apontamentos: Hieroglyphic Being é o ortónimo de Jamal Moss, homem a que alguns atribuem o mérito de ter reinventado o techno. Como soa exagerado, preferimos reconhecer-lhe o mérito de ter trazido o jazz para o mundo dos 140bpm’s: escrito parece doce, embora a tarefa seja hercúlea. E tudo se engrandece pela mestria com que Jamal o faz.
É certo que o homenzarrão tinha à sua espera a maior enchente da Piscina, numa demonstração clara do seu valor em cabeças dançantes, mesmo que ninguém esperasse aquele nível de comunhão. Nem vento, nem água, nem a queda do guarda-sol que o protegia dos ultimos raios do dia. Nada perturbou o gigante que foi esvaziando a piscina de gente, para prontamente a colocar diante dele, aos seus pés.
No fim, entre os aplausos que teimavam em não cessar e o vídeo que o próprio ia gravando para posterior recordação, saiu-nos o brinde. “Vou tocar outra vez, às 3h da manhã” disse, enquanto apontava para o recinto.
Mais tarde e via app, seríamos notificados do cancelamento do concerto de Powell, sem que qualquer explicação adicional fosse entregue.
Pouco depois, o Palco Milhões abria hostilidades num exercício de nostalgia: os Pop Dell’Arte justificavam a pequena multidão que se ia aglomerando no centro do recinto, maioritariamente composta por fâs da velha guarda e ouvintes da primeira hora. A potência foi boa, a destreza a mesma de sempre e o rock a roçar no experimental. Os mais velhos ainda têm algo para ensinar às gerações que se lhes seguiram.
De seguida, foi a vez dos Pixvae, mistura híbrida entre música com traços colombianos e tocadores de rock puro. Fazer conviver cumbia e riffs de rock, por via de amplificadores gritantes? Sim, eles fazem-no. A dose certa de influência cultural e postura tropical, numa junção que desagua em sonoridades que fazem sentir, mais do que fazer dançar.
O maior trunfo do festival ainda é dizer-se eclético: em bom rigor, esta é uma mais-valia que ninguém saberá refutar. Se o mote da década de aniversário era “derreter fronteiras”, o conseguido foi uma mistura de géneros nem sempre frutífera.
A bandeira de festival de música alternativa mais badalado do país foi hasteada. Basta saber se o método utilizado pela equipa, na hora de captar artistas, não poderá ser usado pelo público na hora de escolher festivais alternativos. Porém, repetimos e reiteramos: as Gentes do Milhões… disso falaremos adiante.
Fotografias de: Joana de Sousa / CCA