‘Everything Now’: os Arcade Fire continuam a querer dar-nos tudo
Quando os Arcade Fire se estrearam em 2004 com uma das melhores debuts da história da música, ‘Funeral‘, talvez não esperassem que treze anos depois as atenções permanecessem voltadas para eles. O anúncio do lançamento do novo álbum da banda canadiana – os heróis do indie da última década – foi recebido com expectativa. Isto porque o trabalho de 2013, ‘Reflektor‘, apesar de ter sido motivo de reacções mistas por parte dos fãs e da crítica, tinha conseguido aguentar a fasquia da qualidade e inovação que eram bandeiras da banda desde o primeiro momento. Mesmo que, naturalmente, a frescura não fosse já a mesma, notavam-se toques de génio: com a ajuda de James Murphy (LCD Soundsystem) como co-produtor; e, imagine-se, a participação de David Bowie na faixa-título, padrinho de longa data do projecto canadiano.
É importante recordar o impacto que o colectivo teve no panorama musical deste milénio. Um ano após a edição de um EP que, à data, passa relativamente despercebido, lançam ‘Funeral‘. Para além de ser considerado um dos mais importantes álbuns da década passada, o álbum constituiu um statement de um grupo de sete músicos que entravam de rompante na cena indie para darem início a uma idade de ouro do género. Alguns anos depois, ‘Neon Bible‘ e ‘The Suburbs‘ viriam a consagrar uma banda que em pouco tempo fora catapultada para os lugares cimeiros dos cartazes dos festivais em que marcava presença – sempre com grandes e épicos concertos, frequentemente concluídos com o canto em uníssono do hino ‘Wake Up‘. Os Arcade Fire são um nome incontornável; por isso, o lançamento de “Everything Now” também o foi.
Este estatuto acarreta consequências: logo após o lançamento do single, no primeiro dia de Junho deste ano, e do concerto surpresa no Primavera Sound Barcelona, choveram reacções de quem foi ouvir por que caminhos se aventurava a banda desta vez, após a viragem mais electónica e dançável introduzida em ‘Reflektor’. Continuidade relativamente a esse som: mas este surge aparentemente ainda mais expansivo, a roçar o kitsch, com toques de ABBA e Bee Gees, o synth pop e o disco dos anos 70 e 80, com um grau de ambição palpável, e uma força performática à altura dos grandes sucessos dos Arcade Fire. Desta vez, em vez de Murphy, temos Thomas Bangalter (Daft Punk) como co-produtor do álbum; de mito para lenda, estávamos bem entregues, à partida. A campanha publicitária que se seguiu ao lançamento do single deu-nos a entender que a temática do álbum seria uma reflexão sobre o dominador sistema consumista e corporativo que se interpõe na vida do cidadão contemporâneo.
‘Everything Now‘ não nos dá tudo; seria difícil que assim acontecesse, embora casos como os Radiohead continuem a desafiar as leis das probabilidades e a produzir excelentes álbuns atrás de álbuns excelentes. Mas é um feito: os Arcade Fire voltaram a querer dar-nos tudo, e essa tentativa é já reveladora da ambição artística que injectaram na sua criação. O espectro de sonoridades é vasto. A nível vocal, a intensidade e emoção aventura-se por caminhos que ainda não tinham sido experimentados a este nível pela banda. Régine está mais estridente do que nunca (curiosamente, no bom sentido, ou pelo menos é assim que o interpretamos); quer nas canções em que dá apoio, quer no seu grande destaque em “Electric Blue“, atinge agudos impressionantes que nos atingem em força, e nos desacomodam. Teríamos alguma dificuldade em imaginar que uma canção cantada histericamente e cujo refrão tem por letra “na-na-na-na-na” pudesse ser um dos pontos altos de um álbum que não é desprovido de uma série de méritos. Mas “Electric Blue” conseguiu-o. A entrega e a concretização harmónica, assim como o sucesso das experimentações que têm levado a cabo com o sintetizador, ajudam a explicar o momento de catarse que se forma ao longo da música. É uma canção ao nível dos grandes clássicos interpretados por Régine nos álbuns anteriores da banda, e que sempre se destacam na lógica interna de cada trabalho.
O álbum volta a repetir um truque que os Arcade Fire utilizaram nos dois últimos: o princípio e o fim apontam um para o outro, sugerindo uma circularidade e singularidade narrativa. Assim, a última faixa – “Everything Now (Continued)” cola com o início de “Everything_Now (Continued)“. Assim como, sensivelmente a meio do álbum, “Infinite Content” é contígua a “Infinite_Content“. São usadas outras técnicas de auto-referência, quer na lógica estrutural do disco quer numa retrospectiva da própria carreira. Ora vejamos faixas como “Creature Comfort” e “Good God Damn“: ambas citam um mesmo cenário, em que uma personagem à beira do suicídio enche uma banheira e coloca o seu disco preferido a tocar. Que disco é esse, conforme revela “Creature Confort“? “Filled up the bathtub and put on our first record“.
As palavras que vamos ouvindo ao longo de quase todas as músicas estão repletas de cinismo – num certo sentido, não estamos distantes da atitude com que nos últimos anos Father John Misty nos tem presenteado. Há uma crítica mais que óbvia – caricaturalmente explícita – à sociedade corporativa e consumista. As passagens que o exemplificam são mais que muitas, entre elas: “Everything Now / ‘Til every room in my house is filled with shit I couldn’t live without“, “God, make me famous / If You can’t, just make it painless“, ou “Put your money on me / Or tuck me into bed, and wake me when I’m dead“. A linha entre o estarmos conquistados por um sistema gasto e corrupto e o estarmos revoltados contra o mesmo é muito ténue – os Arcade Fire brincam com isso, apresentando cenários distópicos que são já reais, e dando voz a estes sentimentos esquizofrénicos que nos viciam e frustam ao mesmo tempo: “I’m in the dark again, can’t make it back again…“. O álbum expõe as suas ideias sem ser particularmente brilhante ou inspirador na forma como as trata. Poderíamos dizer, quase estabelecendo um paralelo com o contexto que reflecte: antes por meio do zapping, agora do scroll down, somos bombardeados de conteúdos infinitos mas desinspirados; no limite, inconsequentes.
Há alguns momentos particularmente fracos, entre as doze faixas. “Chemistry” será talvez o mais evidente, ao ponto de questionarmos se se trata de uma piada privada, à semelhança do que os Alt-J fizeram com “Left Hand Free” em “This is All Yours”. As letras sofríveis e um funk de qualidade questionável parecem interromper o fluxo do álbum, que volta e meia tornam a disparatar num ou outro momento. A banda pode alegar que estas incursões arriscadas fazem parte da caricatura geral que pretendem montar, mas o álbum acaba mesmo por pecar em determinadas passagens. Não é o caso de “Peter Pan“, uma das faixas mais atacadas por parte de quem não gostou deste novo trabalho: o piano que pontua a música, e as intensas incursões do baixo percussivo, salvam uma canção que se apresenta como estranha mas que consegue conservar o seu brilho.
Mas “Everything Now” tem os seus momentos de glória, que nos revelam a força de uma banda que não deixa de se desafiar criativamente; é este o trunfo dos Arcade Fire, que continuam a querer dar-nos tudo, ainda agora. A faixa título é uma música que nos enche as medidas, uma espécie de “The Suburbs” mais expansiva e dançável, desprendida; “Creature Comfort” estranha-se e entranha-se, os sintetizadores apresentando-se on point; “Electric Blue“, que já referimos atrás; “Put Your Money On Me” é a aproximação mais clara a ABBA, e talvez uma das experiências melhor conseguidas deste novo trabalho. O álbum encerra com “We Don’t Deserve Love“, uma estranha e envolvente balada, sofrida, com uma das performances vocais mais interessantes de Win Butler, em falsetes magoados a rasgarem o último minuto. Pelo menos estes cinco momentos parecem-nos ser suficientes para justificar que o trabalho dos Arcade Fire, não tendo sido um tiro no porta-aviões, também não foi inútil. Iluminou o céu, e vimos a frota.
A maior parte da crítica musical acolheu “Everything Now” como o patinho feio da carreira dos Arcade Fire; também foi a sensação com que ficaram muitos dos antigos fãs da banda. Os ouvintes mais recentes, da era Reflektor, apreciaram sensivelmente mais esta nova tentativa, que segue a mesma onda dançável e electrónica. Mas o mais recente álbum dos canadianos não é a obra falhada que muitos sentenciaram – é uma indicação clara de que a banda continua a não ter medo de arriscar, e de fazer o que lhe vai na gana. A música que nos ofereceram este ano é motivo suficiente para acreditarmos que vão continuar a querer dar-nos tudo – mesmo que já não tenham tudo para dar.