Entrevista. Inês Homem de Melo: “Já vi pessoas completamente apagadas, que não falavam, e que depois da exposição à música se iluminavam”
Qual é a relação que a música estabelece com as nossas memórias e de que forma a memória e a música se interligam? A música parece, meramente, cheesecake auditivo, mas a verdade é que uma pessoa pode recordar-se de ambientes ou memórias se ouvir uma música que, de certa forma, tenha feito parte da sua vida e esteja ligada à sua história. Que implicações terá na linguagem, também, uma vez que parece ser bem mais instintiva e anterior? É curioso, caso seja levado em conta, por exemplo, que lirismo — uma palavra que actualmente se aplica à poesia — deriva de lira, um instrumento musical. A música será ou não, portanto, essencial à espécie humana? A Comunidade Cultura e Arte abordou todos estes conceitos, sem esquecer o primordial factor da regulação emocional, com Inês Homem de Melo — médica interna de psiquiatria no Hospital Magalhães Lemos, no Porto, trabalhando também no Centro de Respostas Integradas (CRI) Porto Ocidental — que avisa que “a música é uma autêntica bomba atómica no cérebro! Activa-o por inteiro”. Tal como está expresso na entrevista que se segue, formal e informalmente, a música sempre fez parte da vida da Inês. Prova disso mesmo vai ser a sua participação no Festival da Canção da RTP, já no próximo dia 7 de Março, com o poliglota e “benigniano” tema, em forma de chorinho, “Fome de Viagem”.
Como começou a tua relação com a música?
Dentro do útero! A relação com a música começa, em todos os seres humanos, in útero, e a minha não foi excepção a essa regra, de certeza! Os estudos mostram que os bebés conseguem reconhecer como familiares canções que ouviram, frequentemente, durante o terceiro trimestre da gravidez. Por isso, posso dizer que a minha relação com a música começou nessa altura.
Vi, uma vez, num documentário sobre bebés, uma coisa interessante. Segundo esse documentário, um bebé que fosse habituado a ouvir, por exemplo, heavy metal no útero, já não iria estranhar e iria, até, acalmar ao som desse estilo musical. Isto faz sentido para ti?
Para acalmar bebés, fala-se muito em White Noise, que é um conjunto de sons que replicam os sons ouvidos dentro do útero. Se ligares um secador de cabelo ou um aspirador, os bebés pequeninos acalmam quase instantaneamente! Associam esses sons aos que ouviam no conforto da barriga da mãe e ficam serenos. Mas não nos esqueçamos que, para além desses sons e da própria voz da mãe, há também a música que a mãe ouviu durante a gravidez. Tudo o que é familiar a um bebé, tem o potencial de o acalmar. Por isso é que as crianças que ouviram heavy metal sossegam com esse estilo de música.
Mas dizia eu que a minha relação com a música começou, então, durante a gravidez. A minha família nem é uma família particularmente musical mas, como em todas as famílias, ouve-se música, dança-se, brinca-se e faz-se a festa com ela. Os meus avós foram professores primários, e estavam habituados a ensinar música aos seus meninos. E eu, como todas as crianças, fui embalada e consolada com canções, e lentamente fui demonstrando apetência para a música. Pelo menos aos olhos da minha mãe, que por volta dos oito anos, mais ao menos, me inscreveu num coro. Chamava-se Círculo Portuense de Ópera e tinha uma divisão de coro adulto e outra de coro infantil. Eram tempos áureos das óperas aqui, no Coliseu do Porto. Nessa altura havia muitas óperas! Tive, então, a minha estreia em palco, e num estilo em que a música já andava, paredes meias, com a representação, porque a ópera é posta em cena. Para mim, enquanto criança, tudo aquilo era o admirável mundo novo: tínhamos de cantar mas não só! Tínhamos de vestir roupas de época e interagir com outras personagens em cena. Foi um primeiro contacto com a performance musical muito interessante.
“A música tem vários componentes — o ritmo, o timbre, a intensidade, a altura, o contorno melódico — e todos eles se reforçam mutuamente para que a informação se mantenha viva. São muitos estímulos no cérebro — se um se perder, os outros reavivam a memória, evitando que a informação se perca ou seja adulterada.”
E tocas um instrumento, guitarra, certo?
Depois disso, acabei por entrar para o Conservatório. Entrei no 12.º ano — ou seja, comecei a estudar, seriamente, música, um ano antes de entrar para a faculdade. Foi um timing que acabou por ser muito exigente, mais tarde, quando tive de fazer o curso de medicina a par e passo com o Conservatório. O tocar um instrumento, começou um bocadinho antes de entrar para o Conservatório. A minha mãe achava que eu devia aprender a tocar guitarra, por ser um instrumento muito portátil, e acreditava que iria ser bom para mim. Eu, um bocadinho contrariada na altura, porque queria estudar e tirar boas notas para ir para medicina, lá fiz esse “sacrifício”. Hoje em dia, considero que foi a melhor coisa que me aconteceu, porque torna-me muito versátil, realmente, como cantora. Posso levar a guitarra para qualquer sítio e, para o estilo de música que eu toco – canções intimistas, de raiz tradicional – é o instrumento mais indicado.
E em que áreas achas que a música mais te ajudou, ao longo do teu percurso escolar? Começaste a estudar música, formalmente, mais tarde, como disseste, mas, de certa forma, como explicaste, sempre estiveste exposta a música.
Era muito focada na escola, e na música sentia-me com menos travões, mais livre, criativa e sem pressão. Não tinha qualquer peso de avaliação, sobretudo antes de entrar para o Conservatório. Depois, há também o facto de o coro ser uma actividade de grupo — já agora, aproveito para dizer que cantar em coro liberta oxitocina, uma hormona que nos faz sentir em comunhão com os outros — e isso foi muito importante para ser mais sociável, até, e para aprender outras línguas. No coro cantávamos em italiano, francês e alemão, às vezes noutras línguas ainda. Talvez o meu gosto pelas línguas estrangeiras tenha começado aí! Mais tarde, quando fui para a faculdade, o meu estudo da música teve um sabor agridoce. A música, por um lado, era imprescindível para manter a minha saúde mental — o curso de medicina, para mim, foi tirado a ferros, foi muito custoso estudar tanto — mas, por outro lado, também me fazia sentir a síndrome do impostor. Queria dedicar-me de corpo e alma às duas áreas, e sentia que o facto de estar metida em ambas me impedia de o fazer. Quando estava no conservatório pensava, “ah, se eles soubessem que eu passo a vida a estudar medicina”, e na medicina, o inverso, “ah, ninguém pode descobrir que eu estudo muito, mas música!” — foi sempre assim. Acho que só resolvi verdadeiramente este conflito quando comecei a trabalhar como médica e a cantar profissionalmente. Só nessa altura, de alguma forma, é que desbloqueei, e comecei a assumir as duas coisas, a não sofrer da síndrome do impostor — aceitei que era possível sermos “múltiplos”.
E nunca utilizaste mnemónicas musicais para te ajudar a decorar, a estudar ou a lembrares-te de algo durante o teu curso?
Era uma boa ideia, por acaso [risos], no entanto, não. Nunca fui de criar mnemónicas do tipo musical, pelo menos no curso de medicina. Eu criava muitas mnemónicas em forma de cartoon. Inspirei-me num livro que as minhas irmãs, que também estudaram medicina, me ofereceram — Microbiologia Fácil — onde os autores faziam isso. Achei muito engenhoso e estimulante para a criatividade — tinhas de puxar pela tua cabeça. Eles personificavam os vírus, bactérias ou parasitas! Desenhavam um bonequinho e, nesses cartoons, incluíam todos os seus atributos — tal como se fosse um filme da Pixar, estilo Cars, que atribui uma personalidade a cada modelo de carro — era assim que esse livro fazia. Comecei, depois, a fazer o mesmo com outras matérias. Para uma determinada patologia, por exemplo, eu desenhava um doente com as alterações físicas que a caracterizam e, depois, punha balões de fala com as informações a memorizar. Durante o curso tentei, sempre, injectar um bocadinho à força alguma veia criativa em tudo o que eu tinha de estudar porque, caso contrário, as matérias não me cativavam tanto. Em todas as épocas de exames, em todas, eu sentava-me e dizia: “Mãe, pai, isto acabou, não aguento! Quero ser cantora e acabou.”. Mas depois lá acabava por continuar sempre. Agora, mnemónicas com música, por acaso, nunca fiz. Isso é uma coisa que associo mais à infância, às tabuadas e aos alfabetos, às aulas de inglês dos pequeninos, [começa a cantar] “Head and shoulders, knees and toes, knees and toes”, do que, propriamente, ao estudo da medicina. Há, no entanto, uma banda do Reino Unido que se chama “Amateur Transplants” que inclui nas canções, matéria de medicina — não com intuito de decorar, mas mais como uma paródia.
“Ao longo da minha vida profissional, fui tendo várias experiências de cruzamento da música com a psiquiatria, mas essa foi uma das mais emocionantes. E vi isso, tal como tu descreveste: pessoas que estavam completamente apagadas, apáticas, não falavam, e que depois da exposição à música se iluminavam!”
Mas esses aspectos ajudam-nos a perceber como a música surge, depois, ligada à palavra e como é importante trabalhar isso também, a oralidade, antes de um aspecto mais formal como a escrita.
Claro. Os primeiros textos que memorizamos são-nos passados por via oral. E mais do que isso, através da música! Porque se forem só palavras ditas, sem música, é-nos muito mais difícil de as decorar. A forma mais fácil de percebermos isto é questionando-nos a nós mesmos, quantos poemas sabemos de cor. Um ou dois, vá! Aqueles que repetimos muitas vezes na escola, como alguns excertos dos Lusíadas, por exemplo. Mas quantas canções sabemos de cor? Dezenas, centenas! Tendo em conta que as canções têm poemas lá dentro, então, na verdade, sabemos muitos poemas de cor. Mas só se eles estiverem casados com uma melodia! Aqui, no Porto, por exemplo, só em músicas da dupla Rui Veloso e Carlos Tê, são poemas atrás de poemas que os portuenses sabem de cor. E sem nunca terem feito um esforço consciente para os memorizar!
Mas é engraçado como a própria poesia deriva da música. O próprio lirismo vem de lira, um instrumento musical.
Sim: primeiro música, depois escrita! Numa altura em que a espécie humana não tinha ainda maneira de escrever — a escrita terá aparecido há, mais ou menos, 5 mil anos — era necessário arranjar uma forma de transmitir o conhecimento de geração em geração. Não sendo possível escrever, como é que se havia de fazer, então? Se as descobertas que os antepassados iam fazendo, a custo e devagarinho, não ficassem registadas, as novas gerações iriam ter o mesmo trabalho para as descobrir — isso não faria sentido. As primeiras canções, portanto, hão-de ter sido sobre como fazer um poço, como cozinhar certas plantas de maneira a inactivar os seus venenos, como construir um abrigo, qual o melhor sítio na aldeia para escapar aos predadores, coisas deste género. Era imprescindível que estas informações ficassem registadas e, associando-as à música, ficavam tatuadas nas canções. A música tem vários componentes — o ritmo, o timbre, a intensidade, a altura, o contorno melódico — e todos eles se reforçam mutuamente para que a informação se mantenha viva. São muitos estímulos no cérebro — se um se perder, os outros reavivam a memória, evitando que a informação se perca ou seja adulterada. Se acrescentarmos a isto as dinâmicas de rima, é mais difícil que, de geração em geração, a informação fique diferente do que era no princípio.
“A música recruta partes saudáveis que conseguem compensar a falta das partes doentes (que no caso da demência de Alzheimer corresponde à casca do cérebro, a parte de fora — o córtex). Com a música, os velhinhos apáticos iluminam-se e, o contrário, também acontece — pessoas agitadas podem ficar mais calmas.”
Por exemplo, um poema vai buscar muitos aspectos à música — tem cadência, ritmo, entoação — as rimas ajudam muito nisso. Isso não ajudará, também, numa melhor memorização?
Isso já ajuda, sim, mas ao acrescentarmos a melodia fica tudo ainda mais fácil de memorizar. É mais uma área do cérebro que vai ser recrutada — quando uma falha, temos a outra. Às vezes a pessoa não se lembra de uma canção, mas se pensar sobre o que ela fala, pode conseguir recordar uma expressão, ou palavra, e a partir daí reconstruir a melodia. Ou, então, vice-versa — consigo lembrar-me apenas de uma parte da melodia, começo a cantar e já me aparecem as palavras. Quanto mais estímulos diferentes fizerem parte da informação, mais fácil vai ser recuperar a sua memória. Era isso que eu fazia com os cartoons: conjugava um estímulo visual com um estímulo emocional (dependendo da emoção que eu atribuía ao cartoon ou a emoção que tinha tido ao idealizá-lo) e com o texto escrito. Essa conversa entre os estímulos era-me mais fácil de memorizar.
E já te aconteceu ouvir uma música e despertar, em ti, uma memória ou transportar-te para um espaço do passado?
Claro que sim! Constantemente! A música tem esse poder. A música agrega, em toda a sua estrutura, todas estas características das quais estivemos a falar — timbre, tonalidade, ritmo — mas agrega também uma forte componente emocional. Muitas vezes, essas emoções estão associadas às circunstâncias exactas em que ouvimos uma determinada canção. Um verdadeiro cocktail de elementos: o local, com quem estávamos, o que estava a ser dito e o que sentimos. Pode ser, também, algo mais lato, como uma determinada altura da vida em que ouvimos muitas vezes uma canção porque vivemos um dissabor ou tínhamos um dado problema em mãos. Sim, é um estímulo muito poderoso, do ponto de vista da memória.
Acaba por se dar um click emocional!
Tem esse carácter de click, mesmo! É algo muito diferente da experiência que temos quando, por exemplo, tentamos lembrar-nos da matéria que estudámos para um exame. Nesse caso, temos de fazer um esforço para extrair as informações da nossa memória: temos de fazer esse trabalho de forma consciente. Por outro lado, a memória que vem da música é, totalmente, independente da nossa vontade — ouvimos e somos transportados.
Já vi o documentário Alive Inside e é extremamente interessante a vários níveis. É impressionante como pessoas idosas que padeciam de Alzheimer ou outro tipo de demência, já com graves problemas de memória e, até, já num estado apático, conseguiam despertar com música e lembrarem-se de vários momentos da sua vida.
Tive a imensa sorte de ter experienciado essa descrição com os meus próprios olhos, quando passei pelo serviço de psicogeriatria do Magalhães Lemos. Tive oportunidade de participar em actividades de música com os idosos, na sua grande maioria com quadros graves de demência — e foi das experiências mais emocionantes que tive enquanto médica. Ao longo da minha vida profissional, fui tendo várias experiências de cruzamento da música com a psiquiatria, mas essa foi uma das mais emocionantes. E vi isso, tal como tu descreveste: pessoas que estavam completamente apagadas, apáticas, não falavam, e que depois da exposição à música se iluminavam! Começavam a interagir umas com as outras, cantavam e conseguiam até cantar uma letra inteira. Estamos a falar de algumas pessoas que, fruto da doença, já nem tinham linguagem, porque a demência é como se fosse uma segunda infância. A pessoa vai perdendo competências até ficar como um bebé — a certa altura, já não sabe andar bem, ou falar bem, não se lembra das coisas e não consegue fazer as suas tarefas sem ajuda. O que acontecia com a música era esse milagre — uma pessoa que já mal falava, podia, de repente, cantar a letra inteira de uma música. Lá está, porque a música é uma autêntica bomba atómica no cérebro! Activa-o por inteiro. A música recruta partes saudáveis que conseguem compensar a falta das partes doentes (que no caso da demência de Alzheimer corresponde à casca do cérebro, a parte de fora — o córtex). Com a música, os velhinhos apáticos iluminam-se e, o contrário, também acontece — pessoas agitadas podem ficar mais calmas. Como disseste, algumas pessoas também conseguem ter acesso a alguns dados autobiográficos só pelo simples facto de terem estado a cantar músicas do seu tempo. Mas atenção, que isto é muito importante! A música certa na demência não é uma música qualquer: deve ser escolhida a dedo para aquela pessoa. No meu caso, tenho sorte a nível de repertório. Como toco músicas do tempo da minha avó, músicas muito antigas, acabo por tocar músicas que funcionam bem — fados antigos, cante alentejano e músicas do cancioneiro tradicional (tipo Laurindinha ou Ó rama, ó que linda rama, por exemplo).
“A música cantada em coro ou produzida em contextos grupais assume uma carga emocional maior. Contextos grupais como uma banda, ou simplesmente uma família a cantar os parabéns a um filho, ou os adeptos de um clube a entoarem o seu hino no estádio, ou uma marcha militar. Tudo o que é feito em grupo tem potencialmente maior peso emocional, e o correlato neurobiológico disso é a libertação de oxitocina.”
Mas a música tradicional tem alguma especificidade que proporcione esse efeito ou é, apenas, pelo facto de terem sido as músicas da juventude dos idosos?
É a segunda opção. Quando queres despertar uma pessoa com demência através da música, tens de lhe dar músicas com as quais ela tenha muita familiaridade — idealmente do início da vida adulta. Essas memórias são as que estão mais sedimentadas no cérebro. Imagina que, quando a pessoa iniciou o quadro demencial, o que mais tocava na rádio era, por exemplo, Jorge Palma — já não dá. Tem de ser uma coisa mais lá para trás, longe do processo de doença. Não é que a música tradicional tenha algo em específico. A questão é que a maior parte dos velhinhos de hoje conhece, desde criança, essas canções.
Tem, então, de ser uma música escolhida a dedo porque tem de estar relacionada com a vivência da pessoa. Tem de haver uma memória associada àquela música!
E de uma fase da vida não muito tardia. Mas sim, têm maior impacto, músicas associadas a eventos de vida emocionalmente muito carregados — por exemplo, canções que tocaram no próprio casamento. Os musicoterapeutas — técnicos que se dedicam profissionalmente a esta área — normalmente entrevistam os familiares do doente para fazerem essa playlist. Fazem perguntas como: “Olhe, que música é que a sua mãe lhe cantava quando você era pequeno?”. Para escolherem, assim, músicas emocionalmente carregadas, porque quanto mais carregadas de emoção, maior o efeito do tipo Alive Inside.
Mas quando a memória associada à música é em contexto grupal, assumirá uma carga maior do que, por exemplo, se a música for ouvida, apenas, pela pessoa sozinha?
Diria que sim, porque a música cantada em coro ou produzida em contextos grupais assume uma carga emocional maior. Contextos grupais como uma banda, ou simplesmente uma família a cantar os parabéns a um filho, ou os adeptos de um clube a entoarem o seu hino no estádio, ou uma marcha militar. Tudo o que é feito em grupo tem potencialmente maior peso emocional, e o correlato neurobiológico disso é a libertação de oxitocina. Há estudos que provam isso, o que é fascinante.
A música pode ajudar a recuperar a linguagem?
Algumas lesões cerebrais podem provocar alterações ao nível da linguagem. Dizemos que o doente fica afásico — não consegue falar muito bem, as palavras ou expressões certas não lhe vêm à cabeça ou, então, não se compreende quase nada do que diz. Mas, lentamente, com terapia da fala, outras áreas do cérebro que, habitualmente, não eram recrutadas para a função da linguagem, vão assumi-la. Isto é um processo que é fascinante. Chama-se a isto a neuroplasticidade. Curiosamente, esta é uma das aplicações da música na medicina: a afasia. Pessoas que tenham perdido a fala, por lesões da área da linguagem (AVC, tumores, etc) podem, por incrível que pareça, conseguir cantar uma canção com letra. Este fenómeno é explorado pelos terapeutas da fala que fazem exercícios com os doentes afásicos, e é um grito de esperança para quem está a sofrer de afasia. Ouvindo-se cantar, as pessoas percebem que a linguagem perdida terá de estar escondida algures no cérebro, caso contrário, como é que a pessoa conseguiria cantar palavras? É impressionante! Há várias aplicações da música nas doenças neurológicas. É o caso das doenças do movimento. Algumas doenças fazem com que os movimentos que fazemos de uma forma espontânea, como por exemplo caminhar, percam essa espontaneidade, ritmo e fluidez orgânicos. A doença mais comum e mais falada neste capítulo da neurologia é a doença de Parkinson, que dá tremor, movimentos lentos e rigidez. A marcha é, quase sempre, bastante afectada: os doentes têm grande dificuldade em começar a andar e, começando, dão passos curtos e arrastados. Se lhes deres música, pode parecer impossível, mas com treino, conseguem andar quase normalmente, desde que, ao ritmo da música.
“Uma das funções que a música desempenha em todos os seres humanos é a função de regulação emocional. Da mesma forma que há quem tome café para acordar ou quem beba para descontrair, há também quem use música para esses e outros propósitos.”
A música tem ritmo, aí seria aliar a música à coordenação motora.
Também já tive a sorte de ver isto em acção! O que acontece é que a música empresta o ritmo ao doente, da mesma forma que outros estímulos externos podem pôr o doente em movimento. Se puseres, por exemplo, uma linha no chão e disseres ao doente para pisar a linha, ele consegue pisá-la, porque é algo que vem de fora para dentro. O problema do Parkinson está na zona do cérebro responsável por iniciar o movimento. Mas se a ordem para iniciar vier de fora, como é o caso da música, que dá um ritmo, o doente consegue segui-lo. Se tu, no entanto, parares a música, nesse preciso momento o doente para também. Como é que podes usar isto sem teres de obrigar a pessoa a andar com música constantemente atrás? Tens de ensinar o doente a pensar na música, a cantar dentro da sua cabeça, a música certa para a marcha. Mas a relação da música com o movimento não se esgota no Parkinson — pode ser também num pós-AVC, paraparesia ou, então, mesmo em situações de plena saúde. Os atletas olímpicos, por exemplo, estão, muitas vezes, de phones.
Já tinha reparado nisso, sim!
O que é que acontece? Quando tu ouves música num determinado ritmo, o cérebro dispara, exactamente, ao mesmo ritmo da música. Toda a gente já fez uma aula de ginásio! Quando a música acaba, ficamos todos sem fôlego até o professor pôr, novamente, música. E aí voltamos à carga alegremente, porque o cérebro começa a disparar àquele ritmo. Os atletas olímpicos põem uma música que tenha um ritmo que seja ligeiramente acima dos tempos que fazem habitualmente. Assim, naturalmente, vão conseguir uma performance um bocadinho melhor do que a usual deles.
Mas de que forma um estudante poderá utilizar a música para descansar após um estudo intensivo ou como poderá utilizar a música para auxiliar na matéria?
Uma das funções que a música desempenha em todos os seres humanos é a função de regulação emocional. Da mesma forma que há quem tome café para acordar ou quem beba para descontrair, há também quem use música para esses e outros propósitos. Uma música para conseguir sair da cama de manhã, uma para fazer exercício, uma para adormecer, uma para quando se está triste e uma para quando se está eufórico. Isto é uma coisa que o ser humano faz, de forma intuitiva, para regular as suas emoções. Onde é que eu quero chegar com isto? Os estudantes podem tentar encontrar a música certa para descansar ou para potenciarem a sua concentração durante o estudo — mas não há uma receita universal para todos. A música certa para a regulação emocional, em cada momento, deverá ser escolhida individualmente pela pessoa. Eu não posso dizer, “Olha, estás triste? Então toma dois Rui Velosos e amanhã de manhã tornamos a falar!”.
“Mesmo quando está muito doente, o ser humano mantém uma surpreendente reactividade e sensibilidade para a música. Por vezes, pessoas em profundo desânimo, desistentes e alheadas, começavam lentamente a querer participar. Mas atenção, há que casar o tipo de música com o estado de espírito da pessoa e nunca o inverso, ao contrário do que muitas pessoas pensam.”
Aquele mito da música clássica, é mesmo um mito?
Para quem gosta de música clássica, não é mito! Não há receitas universais. A própria pessoa é que sabe o que funciona consigo. No fundo, todos nós sabemos qual é a música certa para cada ocasião. E já agora, a propósito da regulação emocional, e puxando a brasa para a psiquiatria: é uma coisa que eu recomendo imenso aos doentes, e tenho tido um óptimo feedback.
Utilizas, frequentemente, a música com os teus pacientes?
Prescrições musicais, soa muito bem! Já fiz música com os meus doentes em actividades grupais. Fiz com doentes com demência, mas também no estabelecimento prisional, e no internamentos psiquiátrico de doentes agudos — com doença bipolar, esquizofrenia ou depressões graves, maioritariamente. Guardo todas estas experiências, em que levei a música para o meu contexto médico, como momentos muito emocionantes na minha prática clínica. Mesmo quando está muito doente, o ser humano mantém uma surpreendente reactividade e sensibilidade para a música. Por vezes, pessoas em profundo desânimo, desistentes e alheadas, começavam lentamente a querer participar. Mas atenção, há que casar o tipo de música com o estado de espírito da pessoa e nunca o inverso, ao contrário do que muitas pessoas pensam.
Por exemplo, não se pode aconselhar música alegre a alguém triste!
Pois não, é proibido! Isso resulta em grande mau estar para a pessoa. É a mesma coisa que estares a lamentar-te a uma amiga e ela dizer-te “Oh, põe-te bem, sai dessa.” Isso é irritante, não dá! A música tem de casar com o estado de espírito de quem a ouve. Já se deres, por exemplo, uma música triste a quem está triste, a pessoa vai encontrar o seu estado de espírito reflectido na canção e irá sentir empatia. Empatia essa que poderá ser acompanhada de admiração pelos frutos que a emoção sentida teve no artista: “Bolas, esta pessoa estava a sentir o mesmo que eu e conseguiu produzir esta coisa maravilhosa!”. Essa empatia, em última instância, também se encontra espelhada na parte rítmica e melódica da música. O ritmo de uma música triste espelha os movimentos de uma pessoa triste. Senão vejamos: uma pessoa deprimida tem menos energia, anda devagar, de cabeça baixa, e a própria voz pode ficar mais grave. As músicas tristes têm notas longas, são lentas, e tendencialmente, têm notas mais graves. Por outro lado, quando estão felizes, as pessoas têm mais movimento e falam mais depressa e mais alto. E quando se fala mais alto, a voz fica mais aguda. Assim também a música alegre tem notas curtas, ritmos rápidos e notas mais agudas.
Voltando, agora, à pessoa triste — se lhe dermos uma música lenta e com notas graves, ela vai sentir as suas emoções reflectidas em alguém, empatia. É o que sentimos quando contamos um problema a alguém e somos verdadeiramente acolhidos e entendidos, sentindo que a outra pessoa se pôs no nosso lugar.
Muitas pessoas que têm esta experiência dizem “chorei ao ouvir aquela canção, fez-me mesmo bem”. Podem ser pessoas que se sentem muito tristes mas que não estão capazes de expressar as suas emoções ainda.
“A música instrumental não tem limites. Tu sentes o que sentes e não há explicação. A maior parte das pessoas diz: “olha, não consigo pôr em palavras”. Então, escreva-se uma música, não necessariamente com palavras!”
Oferece a possibilidade da pessoa exteriorizar!
Vai ser a abertura dos diques emocionais.
A pessoa está a ouvir o que ainda não foi capaz de dizer…
O que ainda não foi capaz de dizer, ou mesmo emoções que ainda não se permitiu sentir.
E acaba sempre por ser uma ponte de comunicação!
Sim, e pode mesmo desbloquear uma emoção que esteja, ali, congelada ou inibida. Nós estamos a pensar muito na música com letra, mas isto é tudo válido mesmo quando não há palavras — essa é uma das belezas da parte emotiva das canções! Quando queres pôr uma emoção em palavras, tens um limite. O teu limite é a semântica das palavras. Há um exercício que se faz para ensinar as emoções às crianças, usando um cartãozinho para cada uma delas — o da tristeza, o da raiva, o da alegria, o da vergonha, etc. Mas todos sabemos que aquilo que sentimos é, muitas vezes, uma mistura complexa de emoções, que nunca poderia ser traduzida por uma só palavra.
A música instrumental é mais abrangente!
A música instrumental não tem limites. Tu sentes o que sentes e não há explicação. A maior parte das pessoas diz: “olha, não consigo pôr em palavras”. Então, escreva-se uma música, não necessariamente com palavras! Se, mais tarde, a pessoa quiser acrescentar palavras, óptimo. Esse é um dos exercícios que os musicoterapeutas também fazem.
Lá está, é mais uma prova de como a música é mais instintiva do que a palavra.
Muito, mas muito mais instintiva do que a palavra. Um bebé pequenino, muitos meses antes de dizer a sua primeira palavra, já é muito sensível à música. Isso é uma coisa que todas as mães do mundo sabem. Os bebés são adormecidos com música, acalmados com música, entretidos e distraídos com música. As primeiras formas de comunicação com a criança — em inglês diz-se “motherese”, que significa a língua da mãe — são muito musicais. Quando se fala com uma criança que não percebe ainda as palavras, o que fazemos? Desenhamos contornos melódicos exagerados, a nossa voz faz inclinações até caricaturais. E essa é a primeira coisa que a criança faz, muito antes de ter linguagem.
São as inflexões musicais.
Este é um dos argumentos usados pelos investigadores para defender que a música tenha precedido a linguagem. Propõem que as etapas do desenvolvimento do ser humano, desde bebé até adulto, possam ser uma réplica dos marcos alcançados ao longo da história da espécie.
Mas a música será essencial à espécie humana? Porque é que existe?
Ora aí está um debate científico muito interessante, aberto depois de um psicólogo e linguista chamado Steven Pinker ter feito declarações bastante polémicas a esse respeito. Ele disse que a música não seria mais do que cheesecake auditivo, ou seja, algo que é prazeroso mas que não serve nenhum propósito para a sobrevivência ou reprodução da espécie. O mundo seria o mesmo, não havendo música na humanidade. Isto gerou uma grande celeuma na tribo dos neurocientistas que estudam os efeitos da música no cérebro! Instigados pela polémica, surgiu assim um corpo de investigação destinado a provar o seu contrário. Os argumentos que foram aventados para que a música tenha, de facto, uma função, são muito engraçados. Um deles já tinha sido mencionado por Darwin – ele dizia que a música estava para o ser humano como a cauda está para o pavão. Ou seja, a música é um atributo que faz com que as pessoas que o têm pareçam, geneticamente, mais apetecíveis aos seus possíveis parceiros, tal como as penas coloridas do pavão macho atraem as fêmeas.
Isso foi focado na série “Deus Cérebro”, por acaso.
Maravilhosa essa série! E o segundo episódio foca-se bastante na música, e explica esta teoria do Darwin.
Como funciona, afinal, esta técnica de mostrar ao sexo oposto que se tem bons genes através de actividades e atributos que, na verdade, não servem nenhum propósito? A cauda do pavão não serve para sobreviver, mas a fêmea, ao ver a sua exuberância, pensa, “caramba, este macho deve alimentar-se mesmo bem porque estas penas têm bom aspecto.” — (tudo isto inconscientemente, claro) — “logo, se eu tiver filhos com ele, os meus filhos vão ser saudáveis, e ele poderá ajudar-me a arranjar alimentos para eles.”. Estes mecanismos também existem no ser humano. No nosso caso, poderia ser algo como: “olha, sei tocar música, por isso sou inteligente, criativo, não tenho nenhum problema neurológico, consigo mexer-me bem e sem ficar cansado.”
Outra mensagem subliminar que fazer música poderá passar é a seguinte: “Olha que para me poder dedicar à música, é porque tenho mesmo muitos recursos disponíveis! Já tenho comida, já tenho dormida, já tenho dinheiro, e por isso posso dedicar-me a algo que é, completamente, inútil. Devo ter, portanto, óptimas características.”. Posso dizer que tenho doentes músicos que confirmam esta teoria! Contam que, no fim dos concertos, sentem que despertam muito mais interesse em eventuais parceiros do que nos restantes dias, imagina!
Foi, exactamente, isso o que foi dito na série da RTP, quando abordaram a música!
Mas ainda há outras importantíssimas funções da música, como a de registar informação, de que já falámos …
E o aspecto da coesão social!
A coesão social, sim! E esse é um argumento muito intuitivo. Se pensares bem, quando estão, por exemplo, quatro pessoas a conversar em grupo, só pode falar uma pessoa de cada vez porque, senão, ninguém se entende. Através da música, no entanto, tu podes ter quatro, cinco, dez mil pessoas a “falar” ao mesmo tempo! Milhares de pessoas envolvidas simultaneamente numa mesma forma de comunicação. Isso transporta-nos para as canções que os marinheiros cantavam para se manterem juntos e empenhados numa mesma tarefa. Esta coesão é necessária nos grandes empreendimentos da espécie humana, mas também em coisas mais quotidianas, como unir os adeptos de um clube. Todos estes exemplos exaltam o valor da música do ponto de vista evolucionário e do ponto de vista pessoal — o valor é inestimável! Na minha área, a música tem um papel na regulação emocional, como já falei, nas perturbações de ansiedade e na reabilitação da doença mental grave. Outros exemplos de aplicações da música na medicina são: a doença de Parkinson, a demência, as afasias, a dor crónica e cuidados paliativos.
Mas numa dor crónica uma música de que gostes pode ajudar-te a aliviar a dor?
Pode! Essa é uma parte que aparece no “Deus Cérebro” só como um apontamento. A música estimula o centro do prazer e da recompensa no cérebro — uma parte chamada “Núcleo Accumbens”. É esse núcleo que é activo quando comemos uma coisa muito boa ou após o consumo de certas drogas, durante uma aposta a dinheiro ou no orgasmo. Essa zona também se acende quando a pessoa ouve uma música prazerosa. Isso pode ser parte da razão pela qual a música consegue melhorar o estado de ânimo das pessoas e fazer sentir menos intensamente as coisas indesejadas, como a dor e a tristeza.
Para terminarmos, de que forma a música te ajuda a ti, na tua vida pessoal?
A mim em particular, a música ajuda-me a fazer regulação emocional! O meu trabalho é muito carregado do ponto de vista emocional. As pessoas não vêm a um psiquiatra no seu melhor dia…
Como é lógico!
Vêm pedir ajuda para alguma forma de sofrimento psíquico e têm histórias tristes para contar, muitas vezes com aspectos traumáticos. Ao final do dia, especialmente quando uma pessoa se entrega mesmo e cria empatia a sério, tudo isto acaba por pesar. Então, a música, para mim, é uma forma de depositar as emoções noutro lugar. Além disso, as canções que eu canto, são todas bastante narrativas. Canções que contam histórias que poderiam ser, não ipsis verbis, é claro, mas muito semelhantes às histórias dos meus doentes. Os compositores das canções, raramente as escrevem para dizer o quão felizes estão. Grande parte das canções que eu toco, a maioria delas retiradas do cancioneiro da música tradicional e baladas, são canções que cantam a dor. Por isso, faço quase uma transferência de emoções e isso, para além de me ajudar a estar bem, dá-me imenso prazer. Sinto que, ao cantar estas canções, mantenho vivo o testemunho de sofrimento que me foi confiado. Há emoções que são tão valiosas que sinto que mais pessoas devem ser testemunhas!
Lá está, as histórias vão-se repetindo porque os sentimentos são transversais às gerações — a tristeza e a alegria.
Totalmente! São, sempre, variações em ré menor dos dramas do ser humano, que se repetem seja em que língua for. Eu canto canções de vários sítios do mundo e as dores da alma são as mesmas em todo o lado. Se não for fado, é flamenco ou tango, mas a chama é igual.