‘The Autobiography’ espelha a jovialidade de Vic Mensa
Victor Mensah é um rapaz com ambições e essa atitude resoluta já deu frutos. Aos vinte e quatro anos de idade, o rapper mais conhecido como Vic Mensa conta com colaborações com gigantes do hip-hop actual como Kanye West ou Chance the Rapper, conterrâneo de Vic e membro da colectiva de hip-hop que Mensa fundou, Savemoney. O rapper de Chicago irrompeu pela indústria musical como membro da banda Kids These Days mas o sucesso só surgiu depois do término da banda, com o lançamento da sua mixtape INNANETAPE, um projecto acelerado e jovial. Nesse trabalho, Vic Mensa demonstrou que tem garra, misturando o canto com o rap de uma maneira interessante, de certa forma emulando J. Cole, com uma voz mais apelativa que o rapper da Carolina do Norte.
O seu EP de estreia There’s Alot Going On mostrou um artista empenhado na consciencialização da sua audiência sem descurar a boa produção instrumental, levada a cabo maioritariamente por Papi Beatz mas contando também com Vic na mesa de produção. “16 Shots” discute a brutal morte de Laquan McDonald às mãos da polícia de Chicago e “Shades of Blue” fala sobre a recente crise de contaminação por chumbo do abastecimento de água de Flint em Michigan. O título do EP é bastante explícito, e reflecte a atitude de Vic na sua música: há metáforas e jogos de palavras mas sem a acutilância que outros artistas de hip-hop demonstram. Há urgência no que Vic transmite mas falta-lhe profundidade. The Autobiography, o seu álbum de estreia, sofre do mesmo problema.
O projecto almeja em ser grandioso, algo que é claro olhando apenas para o elenco estelar de artistas envolvido na sua construção. O sábio No I.D., conhecido e aclamado produtor de Chicago que já trabalhou com Kanye West, Common ou Jay-Z, é um dos produtores executivos do projecto e sente-se a sua influência no meio dos beats. Convidados como The Dream, Pharrell Williams ou Ty Dolla $ign mostram uma receita para o sucesso mas a realidade é diferente. Como o próprio título indica, The Autobiography é um projecto pessoal e “Didn’t I (Say I Didn’t)”, a faixa de introdução, honra o título do álbum. É a prova sonora da resolução de Mensa, com uma batida soul mostrando a glória das samples, uma música sobre chegar ao pináculo da vida depois dos tempos mais sombrios. Na épica “Rage”, Vic volta a pegar neste assunto e fala sobre lutar contra as adversidades, acompanhado por um instrumental magnânimo. Mas as emoções que Vic tenta incutir no ouvinte acabam por não resultar em músicas como “Homewrecker”, em que Vic pinta a namorada que traiu como uma mulher raivosa e zangada, uma reacção compreensível tendo em conta as atitudes de Mensa. Em “Gorgeous” vai ainda mais longe e sob uma batida sensual e electrificante transmite uma mensagem amoral (“Call me selfish, but I want you both”). Mais tarde, quando em “Coffee and Cigarrettes” Vic se arrepende do seu passado e da namorada de longa data que deixou escapar, é difícil sentir empatia pelo artista tendo em conta a sua visão dos acontecimentos e as suas acções.
Além do seu estado de espírito, Vic discute a sua infância e crescimento na cidade de Chicago. “Memories on 47th Street” surge ameaçadora e com influências trap, com um refrão arranhado e um verso particularmente constrangedor (“16, I was shinin’ just like a Stanley Kubrick scene”). A história mais interessante ouve-se em “Heaven on Earth”, uma troca soturna de palavras sob a forma de carta entre o rapper, um amigo recentemente assassinado, e o suposto assassino, com um refrão melódico cantado de The Dream. É uma abordagem interessante à criminalidade, e uma acção catártica que resulta num dos momentos mais emocionais do álbum. “Down for some Ignorance” também toca em alguns dos mesmos assuntos, acompanha por uma batida misteriosa e críptica, cortesia de uma sample de uma música de Saul Williams (que também participa no álbum em “Wings”) “conspurcada” por um negrume trap. “Rollin’ like a Stoner”, um dos bangers do projecto, de tarola rebelde e sintetizadores abrangentes, é outro momento interessante. A melodia de teclas apelativa aloja-se na mente e há uma ironia associada ao contraste entre o clima de festa transmitido pela grandiosidade do beat e a letra destrutiva e dolorosamente sincera (“I am a disaster, I don’t need a recipe/ Tried to be sober, that didn’t work for me).
Apesar de alguns bons momentos líricos, a destreza de Vic ainda não é a melhor. Ao longo de The Autobiography somos confrontados com versos básicos que não escapam a um revirar de olhos constrangido (“Fist in the air like Rocky/ Bitch I think my name Sylvester” em “The Fire Next Time”, “I can’t smoke witchu everyday, I ain’t Nate Dogg” em “Didn’t I (Say I Didn’t)” ou “Bitch, I’m the ticket, you just hit the lotto” em “OMG”). Aliado a isso está a sensação de que muitas vezes o que o rapper descreve é genérico, com a intenção certa mas sem a força necessária à mensagem. “We Could Be Free” é um exemplo disso, é uma música positiva que se assemelha a uma mescla de todas as músicas que já se fizeram sobre perdoar os inimigos e olhar para o lado bom da vida. É salva por uma bela contribuição de Ty Dolla $ign que conclui a música de forma respeitosa e adequada. A organização das músicas na parte final do álbum também não é a melhor. Depois de três músicas com um sentimento conclusivo (“The Fire Next Time”, “We Could Be Free” e “Rage”) a finalizarem a tracklist e honrando o conceito de álbum pessoal e biográfico que parece estar na origem deste projecto, Vic escolhe acabar com “OMG”, um bom banger mas péssimo para fechar o projecto conceptual que Vic parece abordar, abafando qualquer réstia de coesão e conceito ao longo do álbum.
É impulsivo e talvez imprudente escolher a tenra idade de vinte e quatro primaveras para abraçar um projecto biográfico mas Vic Mensa não chegou a um dos lugares de destaque no hip-hop por tomar decisões seguras. Chegou através do seu ímpeto e de uma vontade enorme de mostrar as suas valências musicais e líricas. Em “The Fire Next Time” ouvimos Vic dizer “On my darkest days, I’m still a star, I shine regardless”, reforçando essa ideia de determinação. Mas algures entre a tradução dessa atitude para música o conteúdo perdeu-se e The Autobiography espelha a jovialidade de Mensa. Uma produção instrumental competente e apelativa não chega para afastar os erros que o projecto apresenta. Vic ainda tem muito para aprender, há arestas por limar, há um ou outro “senão” que denigre o álbum de estreia do rapper nativo de Chicago. Mas fica a garantia de que o seu percurso nunca será aborrecido.
Músicas preferidas: “Rollin’ Like a Stoner”, “Heaven on Earth”, “Down for some Ignorance”, “Didn’t I (Say I Didn’t)” e “OMG”
Músicas menos apelativas: “Coffee and Cigarettes” e “Wings”