O ensino artístico especializado em congresso: perspectivas de futuro ou cá dentro inquietação?

por Marta Moreira,    1 Março, 2022
O ensino artístico especializado em congresso: perspectivas de futuro ou cá dentro inquietação?

Uma resenha crítica sobre o 2.º Congresso do Ensino Artístico Especializado.

Poucas coisas terão tamanho potencial transformador na nossa sociedade como o Ensino Artístico. Talvez por isso se tenha transformado no que tantos vêem como campo de batalha nos últimos anos (desde 2015, para ser mais precisa), e desengane-se quem pensa que as motivações revolvem exclusivamente em torno de interesses financeiros: há coisas muito mais valiosas, como este capital humano capaz de operar autênticas revoluções na forma como olhamos e pensamos o mundo. 

Participei no 2.º Congresso do Ensino Artístico Especializado, promovido pela Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP) a 11 e 12 de Fevereiro. Depois de um programa rico e vasto, sobra-me a inquietação de um futuro incerto para o sector, à medida que continua em expansão (e bem, como por exemplo com a recente inclusão do Teatro na oferta formativa) sem que se avistem soluções para os problemas que se vêm agudizando já há vários anos. 

Se é certo que este congresso apresentou um programa frutífero, com vários painéis de discussão em torno de questões bastante pertinentes e diferentes sessões científicas (inclusive com espaço para o conhecimento produzido nos mestrados em ensino que pululam por este país fora), não podemos escamotear alguns sinais de alarme que também deixou latentes. Um dos mais relevantes, creio, é a tímida participação dos professores: de facto, todo o discurso institucional foi direccionado para directores, e se é certo que muitos oradores nos diferentes painéis procuraram colocar a tónica no trabalho dos professores, esse esforço não pareceu ser partilhado pela organização, na medida em que conseguiu habilmente falar da necessidade de “motivar os professores” sem mencionar o que eventualmente (?) os “desmotiva” (arredando de toda a discussão os problemas que estes enfrentam no desenvolvimento do seu trabalho). 

Aparentemente, subsiste o pensamento nocivo de que os professores não estão (ou são?) capazes de criar, estimular e desenvolver boas práticas pedagógicas sem quem lhes aponte o caminho. Talvez porque estão muito (demasiado?) focados no que diz respeito às suas condições laborais? Ficou a dúvida, implícita, mas clara. E como qualquer pastoreio que se preze, ovelhas tresmalhadas só precisam é de um bom pastor que as oriente. 

Honra seja feita aos que procuraram recentrar a discussão naquilo que é inegável: boas práticas pedagógicas ou temerárias mudanças de paradigmas, começam ambas na sala de aula, pela mão dos professores. E, tal como referiram os directores das academias de Óbidos e Elvas, boas escolas são-no não só por causa de bons modelos de gestão, mas também (e sobretudo) quando têm professores em situação estável, motivados e empenhados. 

Vi também uma transversalidade nas temáticas abordadas que me agradou: avaliação, aprendizagens essenciais, internacionalização, criação contemporânea, novos modelos de ensino-aprendizagem, articulação com a Academia, referencial de boas práticas (e escolas). Contudo, há mensagens subliminares nestas escolhas que importa descortinar. Ao optar por apenas um dia dedicado a tantos painéis, alguns deles com tantos temas encafuados uns em cima dos outros, a organização não está a promover real debate ou um conhecimento duradouro. Esta opção condiciona as intervenções, tornando-as superficiais e pouco eficazes, como aliás foi referido por diferentes oradores. Para que serve, então? 

Eu respondo: para demarcar um posicionamento no sector (um que visou, claramente, responder às muitas críticas tecidas nos últimos anos e que estão na origem do “boicote” dos professores) e para marcar agenda face à tutela. Agitaram-se bandeiras como o incremento do financiamento ou o reforço da autonomia à medida que se procurou demonstrar, por A mais B, como é bom e democrático o nosso ensino. Houve até quem declarasse que estamos a atravessar uma “guerra”; se existe, esta terá certamente mais a ver com a apropriação e consequente alienação dos meios de produção (no caso, o trabalho desenvolvido pelos professores nestas escolas) para garantir a salvaguarda dos interesses das grandes corporações de ensino, do que propriamente com a necessidade de, em pleno 2022, demonstrar os benefícios neurológicos da aprendizagem artística a uma tutela que manifesta uma clara vontade de a expandir. 

Foi confrangedor perceber que tantos ainda ali ficaram nos anos 90 (pessoas com responsabilidades acrescidas, porque tutelam instituições e assumem cargos associativos), quando era preciso provar o  “valor” da Música (quiçá, inclusive, em detrimento de outras manifestações artísticas — como a Dança e o Teatro) e continuam a propalar a nada inocente confusão entre a “utilidade” da Arte e as funções que pode e deve assumir na construção duma sociedade melhor. Eu percebo: é muito mais confortável dizer que a Arte se basta a si própria (e basta) e que por isso perceber que funções pode assumir na vida em sociedade é reduzi-la, do que ter cidadãos realmente cultos para quem a Arte não é objecto para embelezar prateleiras e antes forma de olhar o mundo (forma essa que se constrói, nomeadamente através da educação artística); é que esses não votam em modelos de sociedade construídos para proteger o grande capital, o que é uma chatice para alguns. 

Numa altura em que se discute com bravura, nomeadamente no ramo científico, que funções pode o ensino artístico assumir na construção duma sociedade mais igualitária, mais crítica e interventiva, mais atenta e actuante, mas também mais sensível, empática e comunitária, é assinalável que a organização deste congresso tenha preferido confundir isso com utilitarismo, por um lado, e por outro, tenha procurado recuar décadas nessa discussão. 

Talvez seja mais importante referir o que não vi neste congresso do que o que vi: não vi falar-se de didática, essa coisa obscura que só os professores parecem conseguir descodificar. Quando deixou de ser importante discutir a forma como aprendem os alunos Música e aprendem a dominar um instrumento (por exemplo)? Talvez quando se passou a adoptar uma posição clientelista, digo eu. Falou-se imenso da democratização no acesso ao nosso ensino, mas pouco ou nada dos desafios que esta nos impôs: se uma das discussões mais relevantes nos dias de hoje é a coesão territorial (com o necessário aumento da rede pública, que, aliás, o próprio Secretário-Adjunto da Educação frisou na abertura deste congresso) e o trajecto desenhado por esta dicotomia especializado-genérico, tais temáticas foram notoriamente omissas neste congresso. São só as preocupações mais evidenciadas pelos professores, quem está efectivamente no terreno, mas aparentemente pouco importantes para quem se dedica a aconselhar estas escolas. 

Nada que não fosse expectável, tendo em conta que a omissão mais evidente e mais gritante de todo este congresso foi precisamente a discussão em torno da situação vivida pelos professores nas escolas. Como se as boas práticas nas escolas do EAE se resumissem a estimular uma oferta formativa multifacetada e a criação artística, assim como a imprimir novas dinâmicas culturais nos territórios, a AEEP varreu completamente para debaixo do tapete as crescentes críticas e denúncias de que tem sido alvo nos últimos 7 anos. Relembro: os professores do EAE no ensino particular e cooperativo enfrentam uma situação sem paralelo no nosso país, onde é a própria legislação (subvertida numa concertação social totalmente manietada por interesses corporativos obscuros) a roubar-lhes os seus direitos. 

A AEEP apostou tudo neste congresso para conseguir um grande spin mediático: óptimas escolas, com óptimos resultados, alcançados milagrosamente não se sabe bem por quem. Nada contra: fica devidamente anotado o seu posicionamento e explicado o boicote dos professores. 

Ainda assim, não posso terminar sem assinalar a nota mais optimista de todo este congresso. De entre os oradores, houve quem frisasse que não dá para mascarar a realidade com uma boa camada de marketing: continuamos a recorrer a um modelo conservatorial (aulas individuais, centrado no professor, no currículo e nos programas, na reprodução e na estafada “receita” mestre-discípulo) que não serve os objectivos da democratização, e por isso mesmo, continuamos com baixas taxas de conclusão de cursos ou prosseguimento de estudos, e apoiados numa noção de sucesso que se baseia na excepção, como diagnosticava Domingos Fernandes há mais de uma década. Nesse sentido, destaco as comunicações do Professor Gilvano Dalagna (Universidade de Aveiro), Mário Azevedo e Paulo Perfeito (ESMAE), três entre várias que ainda me encontro a escutar (porque mesmo não tendo o dom da ubiquidade, é possível fazê-lo agora, uma vez que todas as intervenções estão disponíveis no canal de Youtube da organização) que conseguiram em tão pouco tempo desmontar completamente a narrativa aqui imposta: de forma subtil, demarcaram aspectos extraordinariamente importantes, como que “não há um esforço colectivo bem organizado para compreender as [novas e emergentes] necessidades educativas”, que urge “descolonizar o ensino artístico” e que temos à nossa frente a escolha entre ver a “Arte como capital simbólico ou como remédio civilizacional”. 

Sim, deixemo-nos de spin para político ver, por favor: falar de inovação pedagógica implica conhecer o trabalho que tantos professores se têm dedicado a fazer, construindo de raiz novos modelos de ensino-aprendizagem que recusam deliberadamente o modelo conservatorial, não é encafuar quatro crianças numa aula de instrumento do curso de iniciação musical, com exactamente os mesmos modelos, apenas porque é mais barato. Falar de ter uma oferta formativa diversificada e abrangente implica articular diferentes manifestações artísticas em torno de critérios objectivos e com propósito, não é tocar Xutos & Pontapés num concerto porque os pais dos alunos gostam muito e assim no ano seguinte há mais inscrições.

Retenho comigo algo que o professor Mário Azevedo disse e que resume estas minhas considerações: urge perceber a “Educação Artística como uma fabulosa metáfora sobre nós próprios”. Uma em que a “desobediência programada” de que falava na sua extraordinária comunicação se estenda aos que nos representam (será?) perante a tutela, em que recusar a Arte inócua (e por conseguinte, a Educação Artística despropositada) é o maior antídoto para os tempos perigosos que vivemos. 

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